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A deliberação assemblear na ação de responsabilidade do administrador

Este artigo explora, de maneira teórcia e prática, a necessidade crucial da deliberação assemblear em ações de responsabilidade civil contra gestores.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Atualizado às 10:30

Introdução

No intrincado universo do Direito Empresarial, a figura do administrador ocupa um papel central, sendo o motor da gestão e o guardião dos interesses da sociedade. Contudo, essa posição de destaque vem acompanhada de responsabilidades complexas, que, quando descumpridas, podem gerar a sua responsabilização civil. Neste cenário, a ação de responsabilidade do administrador surge como um mecanismo crucial para a proteção do patrimônio social e para a manutenção da integridade da governança corporativa.

Entretanto, a aparente simplicidade da ideia de "responsabilizar o culpado" esconde uma trama de requisitos e formalidades que são essenciais para a validade e a justiça do processo. Dentre eles, um se destaca pela sua indispensabilidade e racionalidade: a prévia deliberação assemblear. Será que a ausência de uma decisão coletiva, tomada no foro máximo da sociedade, pode de fato inviabilizar a pretensão indenizatória? E qual a lógica por trás de uma exigência que, à primeira vista, pode parecer um mero formalismo?

É exatamente sobre essas questões que o presente artigo se debruça: faremos uma análise aprofundada e prática da indispensabilidade da deliberação assemblear na ação de responsabilidade do administrador, explorando não apenas seus fundamentos legais e a racionalidade que a justifica, mas também as consequências de sua inobservância. Percorreremos a robusta jurisprudência do STJ e dos tribunais estaduais, observando como o Poder Judiciário tem se posicionado diante desse requisito. Por fim, ofereceremos um panorama das tendências internacionais e, mais importante, traremos recomendações práticas para que sociedades, sócios e acionistas possam navegar por essa complexa paisagem jurídica com segurança e eficácia. Convidamos o leitor a desvendar os meandros de um tema que é pilar da boa governança e da estabilidade das relações empresariais.

Fundamentação legal e racionalidade

A responsabilização civil de administradores de sociedades empresárias encontra respaldo em normas que visam proteger tanto o patrimônio social quanto a estabilidade da governança corporativa. No caso das sociedades anônimas, o art. 159 da lei 6.404/76 (lei das S.A.) é categórico ao exigir a prévia deliberação da assembleia-geral para o ajuizamento de ação de responsabilidade civil contra administradores. Tal exigência não é mero formalismo: ela decorre da necessidade de evitar o uso do processo judicial como instrumento de retaliação, perseguição pessoal ou desestabilização da gestão.

A racionalidade desse requisito está na proteção do interesse social e na preservação da confiança dos administradores, incentivando a tomada de decisões de boa-fé e com razoável grau de risco empresarial. A deliberação coletiva, em assembleia, permite que todos os acionistas avaliem a conveniência, a oportunidade e a legitimidade da demanda, evitando decisões precipitadas ou movidas por interesses particulares.

Nas sociedades limitadas, especialmente as de grande porte (art. 3º, lei 11.638/07), a aplicação subsidiária das regras das S.A. é admitida, inclusive quanto à necessidade de deliberação assemblear para responsabilização dos administradores. O art. 1.078 do CC reforça a importância da prestação e aprovação de contas, presumindo-se regularidade da gestão na ausência de impugnação.

Ações individuais e legitimidade ativa

Além da ação social (ut universi), proposta pela própria sociedade mediante deliberação assemblear, a legislação prevê a ação individual (ut singuli), que pode ser ajuizada por acionistas ou sócios minoritários quando a assembleia se omite injustificadamente. O art. 159, §4º, da lei das S.A. dispõe que, caso a companhia não proponha a ação no prazo de três meses após a deliberação, qualquer acionista poderá fazê-lo em nome próprio, mas em benefício da sociedade.

Essa possibilidade é fundamental para evitar a impunidade de gestores em situações de controle abusivo ou conluio entre maioria e administração. Contudo, a ação individual exige demonstração de omissão injustificada da sociedade e, em regra, não confere ao acionista direito à indenização direta, mas sim ao ressarcimento do patrimônio social.

No âmbito das sociedades limitadas, a doutrina majoritária admite a aplicação analógica desse mecanismo, sobretudo em empresas com estrutura societária pulverizada.

Nesse mesmo sentido o autor Luiz Gastão Paes de Barros Leães, "(...) com o que requisito essencial para a propositura da ação "uti singuli" encontra-se ausente, porquanto a outorga de poderes à minoria para atuar no interesse da companhia ostenta um caráter eminentemente subsidiário, tendo a sociedade prioridade de atuação processual, o que impede seja possível aos acionistas se antecipar" (Luiz Gastão Paes de Barros Leães, A Prévia Deliberação Assemblear como Condição de 'Legitimatio ad Causam' na Ação Social, Pareceres, Singular, São Paulo, 2004, Vol. I, p. 463).

Consequências da ausência de deliberação

A ausência da deliberação assemblear acarreta ilegitimidade ativa da companhia para propor a ação de responsabilidade, ensejando a extinção do processo sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, VI, do CPC. Trata-se de condição da ação, cuja ausência impede o prosseguimento do feito.

O STJ admite, contudo, a possibilidade de regularização posterior da legitimidade (art. 13 do CPC), desde que oportunizada pelo juízo e sanada a tempo. Caso não haja regularização, a demanda será extinta, comprometendo a efetividade da tutela jurisdicional e expondo a sociedade a riscos de prescrição.

Além disso, a ausência da deliberação pode gerar questionamentos sobre a real motivação da ação, abrindo margem para alegações de abuso de direito e litigância de má-fé.

Jurisprudência do STJ e do TJ/SP

STJ

O STJ consolidou entendimento sobre a indispensabilidade da deliberação assemblear:

REsp 1.778.629/RS (3ª turma, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 14/8/19):

"A ação social reparatória (ut universi) ajuizada pela sociedade empresária contra ex-administradores, na forma do art. 159 da Lei 6.404/76, depende de autorização da assembleia geral ordinária ou extraordinária, atendidos os requisitos legais. (...) Eventual irregularidade pode vir a ser sanada após o ajuizamento da ação, impondo-se que se oportunize a regularização na forma do art. 13 do CPC/73."

  • Tese principal: Este julgado reafirma que a ação de responsabilidade da companhia contra seus ex-administradores, com base no art. 159 da lei 6.404/76, depende de autorização da assembleia geral.
  • Ponto relevante (flexibilização): A grande contribuição deste precedente é a flexibilização quanto ao momento da comprovação dessa autorização. O STJ entendeu que, por se tratar de um pressuposto de capacidade processual (legitimatio ad processum), a irregularidade (ausência da ata de deliberação) pode ser sanada no curso do processo, em linha com o que previa o art. 13 do CPC/73 (correspondente ao art. 76 do CPC/15). Ou seja, o juiz deve oportunizar à empresa a juntada do documento antes de extinguir o processo.

REsp 157.579/RS (4ª turma, relator para acórdão ministro Cesar Asfor Rocha, DJ 19/3/07):

"A sociedade anônima tem legitimidade para o ajuizamento da ação de responsabilidade contra seus ex-administradores e ex-gerentes (...). Todavia, para tanto, exige o art. 159 da Lei das S/A que a assembleia geral delibere acerca da propositura da ação."

  • Tese principal: Este é um precedente mais antigo, mas igualmente fundamental. Ele estabelece de forma clara que a sociedade anônima tem legitimidade para ajuizar a ação de responsabilidade, mas, para tanto, o art. 159 da lei das S/A exige que a assembleia geral delibere sobre a propositura da ação.
  • Ponto relevante (saneamento do vício): Assim como no REsp 1.778.629/RS, este julgado também aplicou o art. 13 do CPC/73, afastando a extinção imediata do processo e determinando que fosse dada à empresa a oportunidade de regularizar sua capacidade processual, comprovando a deliberação da assembleia.

TJ/SP

O TJ/SP também possui farta jurisprudência:

Apelação cível 1007421-27.2018.8.26.0068, órgão julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, relator: desembargador Fortes Barbosa, Data do julgamento: 20/5/20:

"AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL. Administrador. Sociedade Limitada. Aplicação subsidiária da Lei nº 6.404/76. Art. 159 da Lei das S.A. Necessidade de prévia deliberação assemblear para o ajuizamento da ação. Ausência de comprovação. Ilegitimidade ativa configurada. Extinção do processo sem resolução do mérito. Sentença mantida. Recurso desprovido."

"A ausência de deliberação assemblear autorizando o ajuizamento da ação de responsabilidade contra administrador implica ilegitimidade ativa da sociedade, impondo a extinção do processo."

Apelação cível 1000840-77.2018.8.26.0068, órgão julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, relator: desembargador Sérgio Shimura, Data do julgamento: 15/6/20:

"AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL - Administrador de sociedade limitada - Aplicação subsidiária do art. 159 da Lei nº 6.404/76 - Necessidade de prévia deliberação assemblear para o ajuizamento da ação - Ausência de comprovação - Ilegitimidade ativa da sociedade - Extinção do processo sem resolução do mérito - Sentença mantida - Recurso desprovido."

"A regularidade formal da autorização assemblear é pressuposto indispensável para a propositura da demanda reparatória em nome da sociedade."

TJ-SP - AC: 10098535720158260562 SP 1009853-57.2015.8.26.0562, relator: Fortes Barbosa, Data de julgamento: 17/11/21, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de publicação: 19/11/21:

"Descaracterização, além disso, da hipótese prevista no art. 159, § 4º do Estatuto das Companhias, não tendo sido encaminhada proposta de deliberação à assembleia geral de acionistas quanto à responsabilidade dos administradores - A outorga de poderes à minoria para atuar no interesse da companhia ostenta um caráter eminentemente subsidiário, tendo a sociedade prioridade de atuação processual, o que impede seja possível aos acionistas se antecipar - Questão preliminar já aduzida em contestação acolhida - Extinção sem resolução do mérito decretada - Provido o apelo dos réus, prejudicado o apelo dos autores."

Esses julgados reforçam a necessidade de observância rigorosa do procedimento, sob pena de nulidade e extinção do feito.

Comparativo internacional

Nos Estados Unidos, a responsabilização de administradores por meio de ações derivadas ("derivative suits") exige, em regra, a prévia tentativa de solução interna (demand requirement), ou seja, o acionista deve solicitar ao board a propositura da ação, e só pode ajuizá-la diretamente se houver recusa injustificada. O objetivo é evitar litígios temerários e proteger a autonomia da gestão.

Na União Europeia, a maioria dos países adota mecanismo semelhante, exigindo deliberação do órgão máximo da sociedade para legitimar a ação contra administradores, salvo em casos de fraude, abuso ou inércia injustificada.

Portanto, a exigência de deliberação não é uma peculiaridade brasileira, mas sim uma tendência internacional de proteção à estabilidade e à governança das sociedades empresárias.

Aspectos práticos e recomendações: O que sociedades, sócios e acionistas podem fazer para evitar a extinção do processo por falta de deliberação em assembleia (legitimidade ativa).

Procedimentos detalhado

  • Convocação regular da assembleia:

A pauta deve incluir expressamente a discussão sobre a responsabilização do administrador.

A convocação deve observar prazos e formas previstos na lei e no estatuto/contrato social.

  • Quórum qualificado:

Verificar o quórum legal ou estatutário para deliberação, evitando nulidades futuras.

Recomenda-se registrar a presença e votos de todos os sócios/acionistas.

  • Registro em ata:

A ata deve ser detalhada, consignando os fundamentos da decisão e a autorização expressa para o ajuizamento da ação.

A ata deve ser arquivada na Junta Comercial (limitadas) ou registrada na companhia (S.A.).

  • Aprovação de contas:

Antes da ação, analisar se houve aprovação tácita ou expressa das contas, o que pode prejudicar a legitimidade da demanda.

  • Assessoria jurídica especializada:

Recomenda-se que o procedimento seja acompanhado por advogado especializado em Direito Societário.

Previsão em governança

  • Cláusulas contratuais:

Incluir no estatuto/contrato social regras claras sobre o procedimento para responsabilização, quórum, prazos e formas de deliberação.

  • Políticas internas:

Adotar políticas de compliance e governança que prevejam fluxos para apuração de responsabilidade e tomada de decisão coletiva.

  • Treinamento de gestores:

Capacitar administradores e conselheiros sobre seus deveres e os riscos de responsabilização.

Como agir diante da necessidade de responsabilização:

  • Realizar auditoria interna para apuração dos fatos.
  • Convocar assembleia extraordinária, apresentando relatório detalhado.
  • Garantir direito de defesa ao administrador acusado.
  • Deliberar de forma transparente e registrar todos os atos.
  • Acompanhar o processo judicial e revisar procedimentos internos para evitar reincidências.

Responsabilidade objetiva x subjetiva

A responsabilidade dos administradores, em regra, é subjetiva, exigindo prova de culpa (negligência, imprudência ou imperícia) ou dolo (intenção de causar dano). Contudo, há hipóteses de responsabilidade objetiva, especialmente quando a lei impõe deveres específicos e a violação resulta em prejuízo direto ao patrimônio social, independentemente de culpa.

Exemplo: descumprimento de obrigações legais ambientais, trabalhistas ou fiscais pode ensejar responsabilidade objetiva, conforme legislação específica.

A distinção é fundamental para a defesa do administrador e para a estratégia da sociedade ao propor a ação.

Conclusão

A exigência de deliberação assemblear prévia para a responsabilização de administradores não é mero formalismo, mas sim instrumento essencial de proteção à governança corporativa, à segurança jurídica e ao patrimônio social. O procedimento garante que a decisão de litigar seja coletiva, refletindo o interesse social e evitando abusos. A jurisprudência do STJ e do TJ/SP é firme quanto à necessidade de observância desse requisito, admitindo regularização apenas em situações excepcionais.

Empresas que desejam fortalecer sua governança devem prever regras claras em seus atos constitutivos, adotar políticas internas de apuração de responsabilidade e capacitar seus gestores. Ao surgir a necessidade de responsabilização, o caminho é a transparência, o respeito ao contraditório e a observância rigorosa dos procedimentos legais.

Assim, a deliberação assemblear se revela não apenas uma exigência legal, mas um pilar de maturidade institucional e de proteção dos interesses de todos os envolvidos na sociedade empresária.

Marcus Vinícius Marcondes Buzanelli

VIP Marcus Vinícius Marcondes Buzanelli

Sócio da área de Corporate & Litigation, em DB Advogados. É certificado pelo ESOL/FLDOE e FCAT/FLDOE, nos EUA. Possui LL.M em D. Empresarial pela Escola de Direito do RJ e especializado em D. Público.

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