MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Pejotização e o projeto de desmonte da Justiça do Trabalho: O que está em jogo no STF

Pejotização e o projeto de desmonte da Justiça do Trabalho: O que está em jogo no STF

A pejotização desfigura vínculos e ameaça direitos. Justiça do Trabalho vive desmonte travestido de modernização.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Atualizado às 15:30

Tem certos dias
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
(Chico Buarque - Gente Humilde)

Projeto de desmonte

A crise da Justiça do Trabalho no Brasil não é uma crise1. É projeto. O que se apresenta como disfunção institucional revela, na verdade, uma estratégia articulada de desmonte das garantias trabalhistas. Sob o pretexto de modernização, avança um modelo que enfraquece os direitos sociais, fragiliza a proteção legal do trabalho e desmonta, peça por peça, a estrutura construída ao longo do século XX. 

A gravidade desse cenário motivou o Conselho Pleno da OAB a aprovar, por unanimidade, o ingresso como amicus curiae no ARE 1.532.603, Tema 1389 da Repercussão Geral no STF2. A nossa atuação institucional busca defender a competência da Justiça do Trabalho para julgar alegações de fraude na contratação civil de prestação de serviços.

A pejotização, prática de contratar trabalhadores como pessoas jurídicas, é um dos principais instrumentos dessa ofensiva. Apresentada como alternativa moderna e flexível às formas tradicionais de contratação, ela desfigura a essência da relação de emprego ao disfarçar o vínculo jurídico-trabalhista por meio de contratos civis ou societários. Embora sejam mantidos os  elementos centrais do vínculo empregatício -  subordinação, habitualidade e pessoalidade -, o enquadramento formal em moldes empresariais permite a supressão dos direitos previstos na CLT, em esvaziamento da função protetiva do Direito do Trabalho.

O Direito do Trabalho vive uma crise de identidade, de legitimação e de efetividade3, justamente porque os instrumentos normativos tradicionais têm sido sistematicamente contornados por práticas fraudulentas como a pejotização O contrato de trabalho, baseado em subordinação jurídica e dependência econômica, é substituído por uma relação simulada de autonomia, em que o trabalhador é tratado como empreendedor de si mesmo, isto é, "são as empresas do 'eu sozinho' ou 'PJs' ou 'pejotização'"4, sem qualquer respaldo na realidade5. 

Nova morfologia do trabalho

Ricardo Antunes6 analisa essa conjuntura à luz do que denomina nova morfologia do trabalho, uma reconfiguração estrutural da classe trabalhadora marcada por clivagens e heterogeneidades de gênero, raça, geração, nacionalidade, qualificação, mas também por um traço comum: a precarização generalizada. Enquanto um contingente reduzido atua em áreas hiper-especializadas do setor informacional, um número crescente de trabalhadores se insere em formas instáveis de ocupação, como a uberização, a intermitência e a terceirização.

A pejotização, nesse contexto, não é um fenômeno isolado. Ela se insere em um léxico mais amplo que inclui práticas como a "uberização", a "walmartização" e a expansão do trabalho intermitente, compondo um novo padrão de exploração laboral caracterizado pela informalidade institucionalizada, pela corrosão de direitos e pela ausência de limites claros entre o tempo de vida e o tempo de trabalho. Como alerta Antunes7, esse modelo anuncia um futuro em que a "escravidão digital" deixa de ser metáfora e se aproxima da realidade cotidiana de milhões de trabalhadores brasileiros.

Essa precarização estrutural, embora apresentada como adaptação às exigências do mundo contemporâneo, opera sob uma lógica regressiva. Aquilo que classificam como "projeto de futuro" é, na prática, o retorno à ausência de amparo normativo que marcou a condição dos trabalhadores no século XIX. A liberdade contratual, nesse cenário, é um privilégio retórico que só se realiza com o sacrifício dos direitos coletivos e individuais do trabalho.

A decisão do STF no julgamento do ARE 1.532.603/PR, objeto da atuação da OAB como amicus curiae, exemplifica de forma concreta essa tensão institucional. Em discussão está a competência da Justiça do Trabalho para julgar contratos civis de prestação de serviços quando houver indícios de fraude na configuração do vínculo empregatício. A Corte já havia decidido, na ADPF 324 e no RE 958.252, que nem toda relação de trabalho está sujeita à CLT. Agora, o risco é a consolidação da tese de que as relações civis, ainda que marcadas por subordinação de fato, escapem da jurisdição trabalhista, o que, na prática, legitimaria a pejotização como estratégia de fraude e comprometeria ainda mais a função garantista da Justiça do Trabalho.

Esse quadro exige respostas jurídicas que dialoguem com a realidade social brasileira. Como ensina Warat, devemos enfrentar dilemas complexos com um senso comum teórico estritamente legalista8, criando espaço para o pensamento crítico e socialmente orientado. É necessário abrir espaço para uma hermenêutica crítica, que reconheça os conflitos concretos e o papel da norma como instrumento de transformação social.

Invisibilidades e resistências

A crescente substituição de vínculos empregatícios por contratos civis em setores tradicionalmente laborais, como motofretistas, entregadores por aplicativo, profissionais da saúde, da advocacia associada, do comércio e da cultura, evidencia que a pejotização atua também como mecanismo de invisibilização jurídica.

No caso dos entregadores por aplicativo, dados da Amobitec - Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia em parceria com o Cebrap - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento indicam que a maioria é composta por homens, negros, com idade média de 33 anos e ensino médio completo9. O racismo é um dos pilares dessa configuração. Esse perfil concentra diversas marcas da desigualdade estrutural que o Direito do Trabalho historicamente busca combater. Guy Standing, ao tratar da precarização global das relações laborais, denomina esse grupo de precariado10, junção do "proletário" com o "precário", como uma nova categoria de classe marcada por insegurança econômica, instabilidade contratual e ausência de proteção social.

Parafraseando Conceição Evaristo, a defesa das garantias trabalhistas não serve para "ninar os da casa-grande", mas para incomodá-los em seus sonos injustos11. Trata-se de uma trincheira contra a invisibilização do sofrimento social e a normalização de relações laborais marcadas por formas contemporâneas de servidão.

Nomear essa injustiça é etapa decisiva para sua inscrição no campo do reconhecimento jurídico. Como afirma Rita Segato, "quando nós nomeamos um sofrimento humano, nada é capaz de deter sua circulação dentro da sociedade"12; um sofrimento nomeado é, em potencial, um futuro direito humano a ser consagrado. Reconhecer a pejotização como mecanismo sistemático de desproteção jurídica impõe denunciá-la por sua função de invisibilizar sujeitos e reproduzir desigualdades estruturais no mundo do trabalho.

O futuro do trabalho como direito

É por isso que propostas legislativas como o PL 1.472/22, que visa garantir à Justiça do Trabalho a competência para julgar todas as relações laborais, inclusive as não regidas pela CLT, ganham relevância estratégica. O fortalecimento dessa Justiça especializada é condição para a preservação do trabalho como direito, e não como mercadoria.

Conceber o trabalho como atividade autoconstituinte, dotada de sentido social e emancipador, exige rejeitar formas que esvaziam sua dignidade e aprofundam a precarização. A pejotização, longe de ser mero ajuste contratual, opera como mecanismo de corrosão do pacto democrático que sustenta a proteção social do trabalho.

A Justiça do Trabalho, nesse cenário, é elemento central e não pode ser enfraquecida. A crise que a atinge não é neutra, nem fruto do acaso. E não se trata somente de uma crise. Em muitos aspectos, tem sido conduzida como um projeto. Nomeá-lo é o primeiro passo para enfrentá-la com responsabilidade histórica, rigor institucional e compromisso com o futuro do trabalho no país.

__________

1 Parafraseio a célebre declaração de Darcy Ribeiro: "A crise da educação no Brasil não é uma crise; é projeto." RIBEIRO, Darcy. Diagnóstico da educação brasileira. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 69, n. 170, p. 5-18, jan./abr. 1988.

2 CFOAB. CFOAB pedirá ingresso em ação no STF em defesa da Justiça do Trabalho. OAB - Notícias, Brasília, 16 jun. 2025. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/63181/cfoab-pedira-ingresso-em-acao-no-stf-em-defesa-da-justica-do-trabalho. Acesso em: 18 jun. 2025.

3 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 17. ed. São Paulo: LTr, 2018.

4 CARVALHO, Maria Amélia Lira de. Pejotização e descaracterização do contrato de emprego: o caso dos médicos em Salvador - Bahia. 2012. 154 f. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica do              Salvador, Programa de Mestrado em Políticas Sociais  e Cidadania, Salvador, 2010. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=193920. Acesso em: 3 jun. 2025. 

5 BATISTA, Isabel de Oliveira; SILVA, Patrick Luiz Martins Freitas. A pejotização sob o prisma dos princípios do direito do trabalho. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 83, n. 2, p. 171-194, abr./jun. 2017. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/110133. Acesso em: 4 jun. 2025.

6 ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

7 Idem.

8 WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, v. 3, n. 5, p. 48-57, 1982.

9 CALLIL, Victor; PICANÇO, Monise Fernandes (Coord.). Mobilidade urbana e logística de entregas: um panorama sobre o trabalho de motoristas e entregadores com aplicativos. São Paulo: Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), 2023. Disponível em: https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2023/05/Estudo-Cebrap-Amobitec.pdf. Acesso em: 4 jun. 2025.

10 STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Tradução de André Nassar. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

11 EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. Revista Z Cultural, n. 1, out. 2010. Disponível em: https://revistazcultural.pacc.ufrj.br/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-dos-lugares-de-nascimento-de-minha-escrita/. Acesso em: 3 jun. 2025.

12 SEGATO, Rita Laura. La crítica de la colonialidad en ocho ensayos. Buenos Aires: Prometeo, 2015, p. 272.

________

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

BATISTA, Isabel de Oliveira; SILVA, Patrick Luiz Martins Freitas. A pejotização sob o prisma dos princípios do direito do trabalho. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 83, n. 2, p. 171-194, abr./jun. 2017. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/110133. Acesso em: 4 jun. 2025.

CALLIL, Victor; PICANÇO, Monise Fernandes (Coord.). Mobilidade urbana e logística de entregas: um panorama sobre o trabalho de motoristas e entregadores com aplicativos. São Paulo: Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), 2023. Disponível em: https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2023/05/Estudo-Cebrap-Amobitec.pdf. Acesso em: 4 jun. 2025.

CARVALHO, Maria Amélia Lira de. Pejotização e descaracterização do contrato de emprego: o caso dos médicos em Salvador - Bahia. 2012. 154 f. Dissertação (Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania) - Pontifícia Universidade Católica do Salvador, Salvador, 2010. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=193920. Acesso em: 3 jun. 2025.

OAB. CFOAB pedirá ingresso em ação no STF em defesa da Justiça do Trabalho. OAB - Notícias, Brasília, 16 jun. 2025. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/63181/cfoab-pedira-ingresso-em-acao-no-stf-em-defesa-da-justica-do-trabalho. Acesso em: 18 jun. 2025.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 17. ed. São Paulo: LTr, 2018.

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. Revista Z Cultural, n. 1, out. 2010. Disponível em: https://revistazcultural.pacc.ufrj.br/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-dos-lugares-de-nascimento-de-minha-escrita/. Acesso em: 3 jun. 2025.

MELLO, Lawrence Estivalet de. Crise do contrato de trabalho e ilegalidades expandidas [meio eletrônico]. 2020. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2020.

MELLO, Lawrence; VEIGA, Alexandra et al. Trabalho livre e espoliativo no Brasil contemporâneo. In: BOSCHETTI, Ivete; GRANEMANN, Sara et al. Os direitos não cabem no Estado: trabalho e política social no capitalismo. São Paulo: Usina Editorial, 2023. p. 156. (No prelo).

RIBEIRO, Darcy. Diagnóstico da educação brasileira. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 69, n. 170, p. 5-18, jan./abr. 1988.

SEGATO, Rita Laura. La crítica de la colonialidad en ocho ensayos. Buenos Aires: Prometeo, 2015. p. 272.

SOLDERA, L. M. Entrevista com o professor Dr. Ricardo Antunes (UNICAMP - Campinas-SP). Psicologia em Estudo, v. 25, p. e48193, 2020.

STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Tradução de André Nassar. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, v. 3, n. 5, p. 48-57, 1982.

Rose Morais

Rose Morais

Advogada. Secretária-Geral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Pós-graduada em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca