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A duração razoável do processo e o tempo como juiz invisível: Reflexões a partir da ação penal originária 623/DF

A morosidade processual compromete a efetividade da Justiça, favorece a impunidade e fragiliza a confiança social na legitimidade das decisões judiciais.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Atualizado em 25 de junho de 2025 15:43

Introdução

A reflexão sobre a temporalidade no contexto do processo penal assume uma importância singular, especialmente ao se considerar a intersecção entre a expectativa de justiça e a sensação de impunidade que permeia a sociedade atual. O tempo, em sua inexorável passagem, se torna um dos protagonistas mais influentes nas dinâmicas que regem a responsabilização criminal. Ele tem o poder silencioso de fortalecer a força simbólica da legislação vigente, assim como pode diluir os laços que conectam a sociedade à memória coletiva dos delitos cometidos.

A recente decisão na ação penal originária 623/DF, que se prolongou por longos 17 anos até alcançar seu desfecho no STJ, nos convida a uma reflexão profunda sobre a questão - muitas vezes negligenciada - da duração razoável do processo. Nesse contexto, a Justiça, ao reconhecer a prática de crimes como corrupção ativa, corrupção passiva e desvio de receita cartorária, envolvendo autoridades, impôs condenações que, apesar de contundentes, vieram acompanhadas da perda de cargos públicos.

Todavia, a morosidade desse processo suscita uma reflexão ainda mais profunda, que vai além das consequências imediatas da decisão judicial: qual é realmente o significado de proferir uma condenação quando a memória do ato ilícito já se esvaiu ou se transformou na percepção social?

No fim das contas, essa questão não apenas desafia os operadores do direito, mas também convida a sociedade a ponderar sobre a verdadeira eficácia de um sistema que, ao se arrastar no tempo, pode acabar por distorcer o próprio conceito de justiça.

O tempo como critério de legitimidade

A questão do direito à duração razoável do processo, no cenário do sistema judiciário brasileiro, exige uma análise atenta sob a ótica dos princípios fundamentais consagrados pela Constituição. Esses princípios são também respaldados por diversos tratados internacionais de direitos humanos, que realçam a importância deste direito indispensável.

É essencial reconhecer que, apesar de a norma constitucional delinear claramente esse direito, sua efetividade é frequentemente comprometida por obstáculos significativos. A morosidade crônica que permeia a estrutura do Judiciário se destaca como um dos maiores desafios, caracterizada por um emaranhado complexo de rotinas recursais que se assemelham a um ciclo interminável. Para agravar a situação, existe uma cultura enraizada que aceita a lentidão, especialmente em casos que atingem tribunais superiores.

Ademais, o foro por prerrogativa de função, que teoricamente poderia atuar como uma proteção institucional, muitas vezes se transforma em um impeditivo para a agilidade processual. Isso dificulta a rápida apuração de delitos que, por sua natureza, afetam a confiança pública nas instituições. Nesse contexto, é imprescindível refletir sobre o impacto dessa dinâmica no direito à justiça. A lentidão não atinge apenas os diretamente envolvidos nos processos; ela também deslegitima o sistema judiciário como um todo, prejudicando a efetividade do Estado de Direito.

Portanto, torna-se urgente buscar reformas que promovam a eficiência e a celeridade na tramitação dos processos. Ao fazer isso, asseguraremos o respeito ao direito fundamental à duração razoável do processo, conforme preconizado em nossa Constituição e nas normas internacionais. Por conseguinte, um reexame crítico das práticas judiciais vigentes se torna essencial, com vistas à construção de um sistema de justiça que não apenas funcione, mas que também seja percebido pelos cidadãos como ágil e eficaz.

Impactos sociais e psíquicos da Justiça que tarda

Sob a ótica da teoria crítica e da filosofia do direito, é fundamental reconhecer que a temporalidade do processo judicial não é neutra. Ela afeta de forma direta a maneira como indivíduos e a sociedade, em sua totalidade, compreendem a complexidade da criminalidade.

Para a coletividade, a duração dos procedimentos judiciais gera um desgaste simbólico significativo. A energia social que sustenta a indignação legítima se dispersa, esvaindo-se na inércia da lentidão. Quando uma sentença é proferida tardiamente, a eficácia do ato punitivo em restaurar a confiança na ordem jurídica se torna questionável.

No que diz respeito ao réu, a lentidão do processo dilui o significado da pena. Uma sanção aplicada após um intervalo excessivo em relação aos eventos em questão perde sua capacidade de promover a reeducação e de restabelecer o equilíbrio entre o ilícito e suas consequências. Além disso, muitas vezes o acusado se encontra em um estado de incerteza que pode se prolongar por anos, configurando assim uma violação à sua dignidade.

Para o sistema judiciário, a morosidade cria um ambiente de descrença. Essa descrença se manifesta como um patógeno silencioso, capaz de contaminar todos os demais rituais processuais, corroendo, por conseguinte, a legitimidade das decisões tanto no presente quanto no futuro.

Corrupção e resposta penal: quando o tempo favorece o ilícito

No que diz respeito aos crimes cometidos contra a Administração Pública, é fundamental destacar a importância do aspecto temporal. A má utilização de recursos públicos e o abuso de funções de confiança exigem, por sua própria essência, uma resposta que seja, de fato, exemplar. Aqui, a questão não se limita a punir o infrator, mas, muito mais que isso, busca transmitir à sociedade a mensagem de que o pacto social conta com garantias mínimas que permitem sua autocorreção.

Dessa forma, uma condenação que ocorre 17 anos após a apresentação da denúncia, como exemplificado no caso da APn 623/DF, levanta questionamentos sobre a efetividade da estrutura de repressão penal. A simples existência de uma sentença não é suficiente; é crucial que esta ocorra em um tempo adequado, a fim de preservar sua relevância e eficácia. Assim, torna-se um desafio urgente para o sistema jurídico garantir que a resposta do Estado não apenas exista, mas que também se manifeste de maneira a ainda ressoar no contexto social e jurídico em que está inserida.

A inércia ao longo do tempo não pode ser considerada apenas uma falha; deve ser vista como um elemento que compromete a credibilidade das instituições e a confiança da população nas respostas do Estado frente à criminalidade que ameaça seus interesses fundamentais. Portanto, é essencial que este tema receba a atenção necessária, para que possamos revisar e aprimorar os mecanismos de justiça, assegurando que os valores sociais e legais sejam respeitados.

Duração razoável do processo: conteúdo funcional

A duração razoável do processo, longe de ser vista como um simples marco temporal fixo, manifesta-se, na realidade, como uma necessidade de harmonia entre a complexidade do litígio e a mobilização dos recursos institucionais disponíveis para sua solução. Esse princípio atua como um verdadeiro pilar de equilíbrio: ao proteger o réu de possíveis abusos dentro do processo, ao mesmo tempo garante à vítima e à sociedade uma resposta que seja efetiva, conferindo ao Judiciário a legitimidade necessária para decidir enquanto a questão ainda ecoa na memória coletiva.

Portanto, a violação desse princípio vai além de um mero erro técnico; trata-se, antes, de uma ofensa a direitos humanos fundamentais, pois desrespeita a dignidade das pessoas envolvidas e compromete a essência do próprio Estado de Direito. Diante disso, é crucial que se reconheça a importância da duração razoável não apenas como um conceito jurídico, mas como um componente essencial para a promoção da justiça e para a proteção dos direitos de todos os cidadãos.

Síntese: o tempo como critério de justiça

A reflexão sobre a celeridade processual no sistema judiciário atual nos convida a reavaliar não apenas a estrutura, mas também os procedimentos que orientam a atuação dos tribunais. Em uma era onde a rapidez da informação é um traço constante do nosso cotidiano, um Judiciário que se arrasta no tempo corre o risco de se tornar um mero espectador na história social, perdendo a relevância fundamental que lhe é atribuída. A necessidade de uma resposta judicial ágil se torna um imperativo ético para aqueles que desejam fomentar uma cultura de integridade e justiça.

Nesse sentido, a questão da temporalidade deve ser encarada como algo essencial, e não como um simples detalhe. Ela precisa ser integrada de maneira funcional no processo decisório. É inegável que a lentidão pode transformar o Judiciário em um juiz invisível, cujas decisões muitas vezes se revelam injustas e que, consequentemente, falha em sua missão de garantir direitos.

Tomando como exemplo casos emblemáticos, como o da APn 623/DF, é crucial que não nos restrinjamos a observar apenas a letra da lei, mas que também voltemos nosso olhar para as práticas judiciais, os hábitos enraizados e as prioridades que permeiam a administração da Justiça. Uma Justiça que não consegue responder de maneira rápida às necessidades da sociedade não apenas compromete sua própria essência, mas também abala a confiança daqueles que buscam apoio nas instituições.

Dessa forma, a reflexão crítica sobre a velocidade processual deve ser vista como um desafio urgente, que exige uma revisão minuciosa dos paradigmas que, até agora, têm orientado a condução dos processos judiciais.

Conclusão

A urgência na efetivação da justiça, especialmente no contexto do direito processual, demanda uma reflexão cuidadosa sobre a importância do princípio da duração razoável do processo, consagrado em nossa Constituição. Nesse sentido, é fundamental reconhecer que a necessidade de decisões rápidas não se limita a um aspecto administrativo; trata-se, acima de tudo, de proteger a dignidade do jurisdicionado e reforçar a confiança que a sociedade deposita nas instituições. Dessa forma, a lentidão na tramitação dos processos não pode ser encarada apenas como um simples obstáculo burocrático, mas sim como uma ofensa ao Estado de Direito. A morosidade processual não se traduz apenas na extensão dos prazos, mas, principalmente, na erosão da credibilidade do sistema judiciário.

Além disso, a utilização do tempo como uma estratégia defensiva ou como justificativa para a ineficiência organizacional provoca consequências que vão além dos gastos financeiros; impacta diretamente na legitimidade das decisões judiciais. A noção de que a duração do processo é um favor concedido pelo Estado revela-se um equívoco, visto que, na realidade, trata-se de um direito fundamental do cidadão, inerente ao devido processo legal. Portanto, assegurar a celeridade na prestação jurisdicional não é apenas um desejo, mas uma necessidade vital para a manutenção da ordem social e para a preservação da confiança nas instituições que integram o sistema de justiça.

Nesse contexto, é urgente a adoção de medidas eficazes que garantam não apenas a eficiência, mas também a agilidade na resolução dos conflitos, promovendo a justiça que todos desejamos em um estado democrático de direito. A transformação dessa realidade é fundamental para que possamos avançar em direção a um sistema judiciário mais justo e eficaz, que atenda verdadeiramente às expectativas da sociedade.

Fábio Medina Osório

Fábio Medina Osório

Advogado do escritório Medina Osório Advogados, ex ministro da AGU.

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