MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Migalhas de peso >
  4. Convenção de Montreal e declaração de valor: Nova decisão do Supremo

Convenção de Montreal e declaração de valor: Nova decisão do Supremo

STF decide que, no transporte aéreo internacional de cargas, a prova do valor da mercadoria dispensa formalismo e garante indenização integral.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Atualizado em 25 de junho de 2025 15:40

Nos litígios de transporte internacional de cargas, poucos assuntos hoje são tão debatidos quanto a extensão da responsabilidade do transportador aéreo; discute-se se, em caso de avaria ou do extravio de carga, ele terá de indenizar todo o prejuízo ou apenas uma parte.

A controvérsia é antiga, mas se acentuou a partir de 2017, quando o STF julgou o RE 636.313/RJ e definiu o Tema 210 de repercussão geral. Com a tese, a Convenção de Montreal passava a ter prevalência tanto sobre o CDC quanto sobre o CC. 

Isso acabou trazendo consequências para os casos em que se discute o descumprimento de contrato de transporte, uma vez que os dois Códigos são muito mais claros em sua defesa do princípio da indenização integral; já a Convenção dispõe de regras para limitar a responsabilidade do transportador a valores tarifados. 

No Brasil, antes do Tema 210, as convenções internacionais não costumavam reger o transporte aéreo1; nem de passageiros, nem de cargas. Prevalecia, em ambos, o princípio da reparação integral. Se causou R$ 1 milhão em dano, o transportador pagaria R$ 1 milhão em indenização. Com o Tema 210, o STF declarou: no transporte de passageiros, pode ser que a indenização tenha de ser reduzida.

Levando-se em conta a decisão que o gerou, o Tema 210 parecia se destinar a isto: extravio de bagagem. E fazia sentido. Nem sempre é fácil saber o que há dentro de uma mala extraviada, e independentemente disso, quando acionado pelo consumidor, o transportador arcava com tudo. Por outro lado, no transporte de cargas, a coisa transportada é documentada, tem descrição precisa e valor declarado; a lógica é outra.

Com o tempo, porém, o STJ passou a aplicar a ratio decidendi do precedente a todo tipo de transporte internacional; de cargas também. Em paralelo, o STF seguia caminho próprio - até coerente com o que havia dito desde o início -, isolando o Tema 210 do transporte de carga, em que se mantinha intacto o princípio da reparação integral2

Logo depois, o STJ deu sinais de retorno ao entendimento anterior, especialmente nos casos em que figurava seguradora sub-rogada no polo ativo3. Mas foi o STF que, no fim das contas, mudou de posição: passou a considerar que o transporte de cargas também se submete à Convenção de Montreal. Nascia ali o Tema 1.366, encerrando (por ora) a instabilidade hermenêutica4.

Ficou acertado, enfim, que a Convenção de Montreal se aplicava ao transporte de carga. Isso não significa que a discussão acabou na Suprema Corte (ainda há ministros que entendem ser inadequado deixar que a Convenção comande o transporte de cargas). Nisso tudo, porém, o que mais importa é compreender que aplicar o Tema 210 não significa, e jamais significou, limitar obrigatoriamente a responsabilidade do transportador.

Dentro da Convenção de Montreal, a limitação tarifada sempre foi uma possibilidade, apenas; não uma necessidade. Dito de outro modo: a limitação está na Convenção, mas ela não é a Convenção. A distinção parece razoavelmente simples, mas nem sempre é vista desse jeito. De vez em quando, surgem interpretações até mais favoráveis aos transportadores do que a prevista pelo legislador. 

Para se ter uma ideia: o próprio art. 22.3 da Convenção de Montreal, que dispõe sobre a limitação tarifada no transporte de cargas, também admite que ela seja excluída; para isso, basta que haja uma "declaração especial de valor" ao transportador.

A questão toda então passa a ser: o que, na prática forense, seria essa declaração de valor? 

Desde que o Tema 210 chegou aos processos de transporte aéreo de carga foram surgindo dúvidas a esse respeito: não se sabia se seria necessário um documento intitulado 'declaração especial de valor' (interpretação literal), ou se bastaria que o transportador tivesse ciência do valor da carga por qualquer meio (interpretação teleológica).

Sobre isso já houve alguma discussão; juízes, tribunais estaduais e até o STJ se pronunciaram, mas sem a esperada uniformidade: em algumas decisões se admitia que qualquer prova de ciência valia e era suficiente para atingir a finalidade da norma; noutras se entendia que o transportador não estava ciente nem mesmo quando ele próprio informava o valor da carga no conhecimento de transporte - possibilidade esta que sempre nos pareceu um pouco curiosa. Mas até então não havia decisão do STF. 

Agora há; e a mais justa possível.

A Suprema Corte voltou recentemente a reequilibrar o debate, definindo com clareza a interpretação que dispensa apegos formalistas e privilegia a finalidade da norma. 

No ARE 1.186.944/SP, os ministros já haviam rejeitado a necessidade literal de um documento chamado "declaração especial de valor", afirmando que "a própria Convenção garante uma gama ampla de comprovação dos valores transportados" e indicando "observar a integralidade da Convenção, e não apenas o trecho contendo expressão específica que denomina um tipo de documento específico".

Mas foi no RE 1.525.098/SP que o STF - por meio do ministro Flávio Dino - enunciou, com todas as letras, que serve de prova da declaração de valor qualquer documento em que esse valor figure:

"[...] a comprovação do valor das mercadorias pode se dar por diversos meios, tais como o conhecimento de transporte, a invoice e o packing list, nos termos dos artigos 4º, 11 e 22 da referida Convenção [...] os documentos constantes dos autos (HAWB, Commercial Invoice e Packing List) não apenas comprovam os valores das mercadorias transportadas, mas também demonstram que a embargada tinha plena ciência desses valores no momento da contratação e execução do transporte. Afasta-se, assim, a aplicação da limitação tarifada prevista no artigo 22, item 3, da Convenção de Montreal, assegurando-se a integral reparação do dano apurado. [...] (STF - EDcl no RE 1.525.098/SP, Rel. Min. Flávio Dino, DJE 14/05/2025).

O próprio STJ já reconheceu, no EREsp 1.289.629/SP, que a declaração de valor pode constar de documentos típicos de transporte. Afinal, se o transportador sabe do valor que carrega, por que razão deveria indenizar quantia inferior à perda que sabe ter causado?

Como dito agora pelo ministro Flávio Dino: constando dos autos o valor da carga - no conhecimento de transporte (AWB), nas faturas comerciais (invoices), no packing list ou em qualquer documento cujo acesso foi franqueado ao transportador -, ficará garantida a indenização integral.

Isso se deve sobretudo aos arts. 4º, 11 e 22.3 da Convenção de Montreal:

O art. 4º admite que os dados do transporte, inclusive os essenciais à identificação da carga, constem não apenas do conhecimento aéreo, mas também de outros meios equivalentes, como recibos ou documentos eletrônicos. O art. 11, por sua vez, confere valor probatório a esses instrumentos, presumindo, salvo prova em contrário, tanto a existência do contrato quanto as informações neles contidas.

Já o art. 22.3 (iluminado pelos dois anteriores), ao prever a possibilidade de afastamento da limitação tarifada mediante declaração especial de valor, não exige forma específica: basta que o transportador tenha ciência do valor da carga, por qualquer documento idôneo a refletir o conteúdo da operação.

A tese - que eles defenderam e que há algum tempo também sustentamos - é simples: se os documentos da compra e venda da carga foram levados ao conhecimento do transportador, não há razão para exigir mais nada. Cumpre-se, assim, a exigência da Convenção, mesmo sem o chamado frete ad valorem. Além do mais, se o transportador recebe o frete originalmente estipulado e não exige nele qualquer ajuste, é porque reconheceu como justo, adequado e declarado o valor que lhe pagaram. 

Em suma, por meio dos documentos já indicados, notadamente a fatura comercial, o transportador sabe o que está sendo levado e o quanto vale. Não pode, portanto, alegar ignorância. Esse reconhecimento é suficiente para atender à finalidade da norma, afastar a limitação tarifada e garantir o ressarcimento integral; solução que, aliás, se alinha ao entendimento contemporâneo da responsabilidade civil.

Nada disso impede, é claro, que ao longo de um litígio se invoquem outras teses já consolidadas em favor da reparação integral, como a conduta temerária do transportador ou as circunstâncias próprias à sub-rogação, que podem excluir a seguradora do alcance da Convenção (o próprio art. 37, por exemplo, afirma que nenhuma de suas disposições afeta o direito de regresso).

Sobre uma das hipóteses, contudo, o STF acaba de ser suficientemente claro: quem sabe do prejuízo que causa não deve se surpreender ao ser chamado a arcar com ele.

_________________

1 Cf. REsp 1289629/SP, Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/10/2015, DJe 03/11/2015

2 Cf. Ag. Reg. No ARE 1.434.920/SP, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 25/09/2023, DJe 02/10/2023

3 Cf. EDcl nos Embargos de divergência em RESp nº 1289629/SP, Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 18/06/2024).

4 MINISTRO PRESIDENTE, RE 1520841 (Acórdão de mérito publicado). Aprovada em 04/02/2025.

Paulo Henrique Cremoneze

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado e Cremoneze - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

Leonardo Reis Quintanilha

Leonardo Reis Quintanilha

Associado de Machado e Cremoneze - Advogados Associados.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca