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Você tem orgulho de quê?

Ser LGBTI+ é existir com dignidade em um país que insiste em nos apagar. Orgulho é memória, resistência e um chamado à transformação.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Atualizado às 12:02

O Dia do Orgulho LGBTI+, celebrado mundialmente em 28 de junho, não é apenas uma data comemorativa. É um marco de resistência, memória e afirmação de existência. A origem está nos levantes de Stonewall, em 1969, quando pessoas LGBTI+ enfrentaram a violência policial em Nova York e iniciaram um movimento global por igualdade. Desde então, essa data nos convoca a refletir: você tem orgulho de quê?

Para pessoas LGBTI+, sentir orgulho é, antes de tudo, sobreviver em meio a uma sociedade que muitas vezes insiste em invisibilizar, marginalizar ou apagar suas identidades. Ter orgulho é resistir ao medo, é existir com dignidade, é amar sem pedir licença. É afirmar que nossos corpos, afetos e histórias têm valor.

Apesar de o Brasil ainda ser um dos países que mais mata e agride pessoas LGBTI+, temos muito do que nos orgulhar e comemorar. Nos últimos 15 anos avançamos na conquista dos direitos da população LGBTI+ devido às decisões do STF e STJ, que são garantias de cidadania, humanidade e pertencimento. Cada avanço foi conquistado com dor e coragem.

Vejamos a linha do tempo das conquistas dos direitos da população LGBTI+ no STJ e STF:

2011 - STF reconhece a união estável homoafetiva (ADIn 4.277 e ADPF 132)

  • Decisão unânime: O Supremo Tribunal Federal reconhece que casais do mesmo sexo têm direito à união estável, com os mesmos efeitos das uniões entre homem e mulher.
  • Impacto: Decisão histórica que equiparou os direitos das uniões homoafetivas, permitindo acesso a direitos previdenciários, sucessórios, inclusão em planos de saúde, entre outros.

2013 - CNJ, com base na decisão do STF, determina o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo

  • Resolução 175/13 do CNJ: Proíbe cartórios de recusarem a celebração de casamento civil homoafetivo.
  • Impacto: Na prática, autoriza o casamento igualitário em todo o Brasil, sem necessidade de judicialização.

2017 - STJ autoriza mudança de nome e sexo no registro civil sem necessidade de cirurgia

  • Decisão pioneira: O STJ entende que a retificação de nome e gênero no registro civil independe de cirurgia ou laudos médicos.
  • Impacto: Afirma o direito à identidade de pessoas trans com base na autodeterminação.

2018 - STF criminaliza a homotransfobia como forma de racismo (ADO 26 e MI 4733)

  • Decisão: O STF decide que a LGBTIfobia deve ser punida nos termos da Lei do Racismo (Lei 7.716/1989), até que o Congresso legisle sobre o tema.
  • Impacto: Marco histórico no combate à violência e à discriminação, equiparando a homofobia e a transfobia ao racismo.

2019 - STF autoriza pessoas trans a mudarem nome e gênero diretamente em cartórios

  • Confirmação da tese iniciada pelo STJ.
  • Decisão: O STF reafirma que não é necessário cirurgia, laudo médico ou ação judicial para alteração de nome e sexo no registro civil.
  • Impacto: Desburocratiza e reconhece plenamente o direito à identidade de gênero.

2020 - STF reafirma a ilegalidade de tratamentos de "cura gay"

  • Decisão: Rejeita ação que questionava resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe terapias de reversão sexual.
  • Impacto: Garante que a orientação sexual não é doença, e que práticas de "cura gay" são antiéticas e ilegais.

2020 - STF afirma que a proibição da doação de sangue por homens homossexuais é inconstitucional e discriminatória (ADIn) 5.543

  • Decisão: revogou a norma que impedia homens que tiveram relações sexuais com outros homens nos 12 meses anteriores de doar sangue. 
  • Impacto: avanço significativo na garantia dos direitos da população LGBTQIA+ e na promoção da igualdade no acesso à saúde. 

2023 - STF garante que pessoas trans podem ser incluídas na cota de pessoas negras em concursos

  • Decisão: Reconhece que mulheres trans negras podem disputar vagas reservadas a pessoas negras em concursos públicos.
  • Impacto: Avanço importante na interseccionalidade das políticas de ação afirmativa.

2024 - STJ reconhece o direito de crianças com duas mães ou dois pais a terem certidões de nascimento pluriparentais

  •  Decisão: O STJ afirma o direito de registro de filhos com mais de dois genitores, inclusive em famílias homoafetivas.
  • Impacto: Fortalece a proteção jurídica da filiação plural em contextos LGBTI+.

2025 - STJ reconhece o direito de pessoas trans não binárias de retificarem o registro civil

  • Decisão: pessoas não binárias têm o direito de retificar seus registros civis para incluir um gênero neutro, reconhecendo sua identidade autodeclarada.
  • Impacto: garante que pessoas que não se identificam como homem ou mulher possam ter seus documentos de identidade alinhados com sua identidade de gênero. 

Em que pese termos avançado muito juridicamente em virtude das decisões judiciais no STJ e STF, o Brasil ainda carece de legislação para a proteção dos direitos da população LGBTI+. O legislativo segue silente, tanto na alteração das leis anacrônicas pautadas na binariedade, quanto na criação de novas leis que protejam e garantam os direitos da população LGBTI+.

Há quem diga que o judiciário tem legislado em suas decisões, entretanto, não fossem as decisões do STJ e do STF a população LGBTI+ seguiria desassistida. É importante ressaltar que somente no ano de 2024, 291 pessoas LGBTI+ foram assassinadas, sendo que delas 122 pessoas eram trans e travestis (fonte: Grupo Gay da Bahia - GGB).  A repetição desses dados ao longo dos anos aponta para a normalização da violência contra pessoas LGBTI+.

Em pesquisa, a ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transexuais - constatou que em pelo menos 89% dos casos os assassinatos demonstraram requintes de crueldade, como o uso excessivo de violência, múltiplos golpes, degolamento, esquartejamento, e a associação com mais de um método e outras formas brutais de violência, como arrastar o corpo pela rua e desferir golpes em regiões como cabeça, seios e genitais. (https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2025/01/dossie-antra-2025.pdf)

Esses dados deveriam assustar ou ao menos impressionar, e por fim, pressionar o legislativo em direção a solução da ausência de leis que tratem sobre a homotransfobia, por exemplo.

É importante destacar que o STF, o CNJ e a vasta jurisprudência já entendem que o direito a felicidade e a dignidade humana devem ser garantidas para todas as pessoas. O papel do judiciário e do legislativo é exatamente o de acompanhar as mudanças e evoluções da sociedade, garantindo a toda a sociedade os direitos descritos pela nossa Constituição Federal.

As grandes conquistas do judiciário fazem com que tenhamos orgulho das pessoas que vieram antes, que abriram caminhos enfrentando discriminações brutais, que nunca puderam segurar a mão do seu amor durante um passeio pela rua ou se quer dentro da própria casa. Orgulho das pessoas trans que desafiam os padrões que um dia foram traçados e constroem novas possibilidades de existência todos os dias. Orgulho das famílias LGBTI+, das mães e pais que acolhem, das escolas que respeitam, das empresas que promovem inclusão verdadeira.

Infelizmente muitas pessoas LGBTI+ não podem ser eles mesmos nos seus locais de trabalho. Sempre repito: se você trabalha num local inclusivo e seguro para a sua orientação sexual e identidade de gênero, você é privilegiado sim!

Ter o seu direito respeitado - ao uso do nome social, à licença maternidade sendo mãe homossexual não gestante ou pai homossexual, ou a simplesmente levar o seu marido ou esposa a festa de fim de ano - é um privilégio sim! A realidade no mundo corporativo mudou e avançou muito durante os últimos anos, mas ainda está longe do aceitável.

Neste 28 de junho, o orgulho também é um chamado à responsabilidade. Que empresas, governos, instituições e cidadãos perguntem a si mesmos: "Tenho orgulho do que faço para promover a diversidade e a inclusão?" Não basta postar a bandeira arco-íris uma vez por ano. É preciso garantir direitos todos os dias.

Ser LGBTI+ no Brasil é viver em um paradoxo constante. Somos um dos países com maior visibilidade LGBTI+ do mundo - temos Paradas do Orgulho gigantescas, artistas assumidamente LGBTI+ brilhando em todas as áreas, e uma produção cultural riquíssima que celebra a diversidade. Mas, somos também um dos países que mais mata pessoas LGBTI+, especialmente pessoas trans e travestis, e onde o preconceito ainda se faz presente em muitas casas, escolas, igrejas, empresas e políticas públicas.

É olhar para si, para sua trajetória marcada por descobertas, medos, rejeições, amores e conquistas, e entender que existe força na sua existência. É sobreviver onde disseram que você não poderia viver com dignidade. É amar apesar do ódio. É existir apesar da exclusão.

Mas não é unicamente sobre dor. Ter orgulho de ser LGBTI+ é também celebrar. Celebrar a liberdade de amar quem se ama. Celebrar o direito de se expressar com autenticidade. Celebrar a alegria que brota nas rodas de afeto entre pares, nas festas, nas marchas, nos palcos, nas famílias escolhidas.

É também uma responsabilidade: usar nossa visibilidade para transformar realidades, abrir caminhos para outras pessoas LGBTI+, principalmente aquelas que enfrentam múltiplas opressões - pessoas negras, indígenas, com deficiência, periféricas. É entender que nosso orgulho só é completo quando ele é coletivo.

Por isso, quando me perguntam: "Você tem orgulho de quê?", eu respondo com firmeza:

Eu tenho orgulho de ser LGBTI+ porque, apesar de todas as tentativas de nos silenciarem, nós seguimos criando, amando, educando, acolhendo, politizando, colorindo. Seguimos vivos. Seguimos inteiros. E seguimos fazendo história.

Tenho orgulho de quem eu sou, de quem está ao meu lado nessa luta e de quem ainda virá. Tenho orgulho de trabalhar pelo reconhecimento da dignidade de todas as pessoas, sem exceção. Porque ser LGBTI+ é, acima de tudo, ter orgulho de existir com dignidade, autenticidade, amor e muita cor.

Essa pergunta é íntima, mas também coletiva. É sobre quem somos, o que defendemos e que mundo queremos construir.

E você? Tem orgulho de quê?

Cíntia Cecilio

Cíntia Cecilio

Advogada especialista em Direito homoafetivo e de gênero.

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