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Responsabilidade de clínicas e planos: o dever inafastável de proteção à vida

Decisão do STJ reafirma o dever de vigilância contínua de instituições psiquiátricas e operadoras diante do risco de suicídio de pacientes internados.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Atualizado em 26 de junho de 2025 08:22

O STJ, ao julgar o Resp 2.166.585, trouxe à tona um tema de extrema relevância social e jurídica: a responsabilidade civil das clínicas psiquiátricas e operadoras de planos de saúde diante do suicídio de paciente internado em tratamento por quadro grave de depressão e ideação suicida.

O caso: Uma tragédia anunciada

O caso envolve o falecimento de uma jovem diagnosticada com transtorno depressivo grave e transtorno de identidade de gênero, com histórico de múltiplas tentativas de suicídio. Internada na Clínica Psiquiátrica no Estado de Goiás, a paciente cometeu suicídio em 26/12/2016, dentro das dependências da instituição.

O histórico médico era alarmante: ideação suicida relatada em ao menos 12 ocasiões e quatro tentativas anteriores de suicídio durante o mesmo período de internação. Mesmo diante desse quadro, a clínica permitiu que a paciente permanecesse sozinha, desassistida, sem cumprir a ordem médica de observação reforçada. A omissão, como reconheceu o STJ, foi determinante para o desfecho trágico.

Identidade de gênero, transtorno depressivo e dignidade humana: A urgência da equidade no cuidado

O caso também exige um olhar atento à interseccionalidade entre saúde mental e identidade de gênero. A jovem diagnosticada com transtorno depressivo grave e transtorno de identidade de gênero, pertence a um dos grupos mais vulnerabilizados social e institucionalmente: pessoas trans.

De acordo com o Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras (ANTRA, 2023), o Brasil segue sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo, ao mesmo tempo em que apresenta índices alarmantes de exclusão social e institucional dessa população nos serviços de saúde. O impacto do estigma transfóbico sobre a saúde mental é evidente: a ANTRA aponta que mais de 90% das pessoas trans já sofreram violência psicológica, e mais de 80% apresentam histórico de depressão ou ideação suicida.

A dignidade da pessoa humana, princípio fundante da CF (art. 1º, III), demanda que os serviços de saúde sejam estruturados não apenas com base em critérios médicos padronizados, mas também com enfoque em equidade.

A resolução 348/20 do CNJ e os Protocolos para Julgamento com Perspectiva de Gênero (2021) reforçam que o Judiciário e as instituições de cuidado devem considerar as desigualdades estruturais e vulnerabilidades específicas das pessoas LGBTQIAPN+, particularmente as mulheres trans, em seus atos decisórios e administrativos. Isso inclui a atenção à forma como o preconceito institucional pode comprometer diretamente a qualidade e continuidade do cuidado, culminando, como neste caso, em falhas fatais.

Portanto, a responsabilização civil da clínica psiquiátrica e da operadora de saúde também deve ser compreendida dentro de um marco ampliado de responsabilidade social. O dever de guarda não é neutro: ele deve incorporar a equidade como vetor hermenêutico e operativo, especialmente em relação a grupos historicamente marginalizados.

Tal perspectiva está alinhada aos ODS - Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU, particularmente os ODS 3 (Saúde e bem-estar), 5 (Igualdade de gênero), 10 (Redução das desigualdades) e 16 (Paz, justiça e instituições eficazes), que impõem aos sistemas de saúde e justiça a obrigação de garantir o acesso universal, equitativo e digno à atenção psicossocial.

Nesse contexto, a inobservância da vulnerabilidade psíquica e da identidade de gênero da paciente, ao permitir sua permanência sozinha mesmo após recomendação expressa de observação intensiva, não representa apenas uma falha técnica: é a materialização de um desprezo sistêmico que compromete a dignidade da vida trans em seu sentido mais elementar.

É imperativo que os protocolos institucionais de cuidado reconheçam tais marcadores sociais da diferença como determinantes essenciais na formulação de políticas públicas e na responsabilização por omissões graves como a narrada neste caso.

O Julgamento: Um marco para a saúde mental

A ministra Relatora Daniela Teixeira foi categórica: "A responsabilidade das clínicas psiquiátricas por suicídio de pacientes internados, em regra, é objetiva, sendo dever do estabelecimento zelar pela incolumidade física dos internos, especialmente quando ciente do risco real e concreto de suicídio".

Ainda segundo a decisão: "A omissão da clínica, ao permitir que a paciente permanecesse sozinha no quarto mesmo após ordem médica de observação reforçada, constitui falha grave na prestação do serviço, suficiente para caracterizar o nexo causal com o evento danoso".

O STJ também reafirmou a responsabilidade solidária da operadora de plano de saúde pelos serviços prestados por suas clínicas conveniadas, independentemente de culpa: "A operadora de plano de saúde responde solidariamente pelos danos decorrentes de falha de serviço prestado por clínica conveniada, nos termos da jurisprudência consolidada do STJ".

Responsabilidade objetiva: O dever de vigilância incessante

A decisão destaca que clínicas psiquiátricas são, por essência, instituições vocacionadas à proteção da vida de pessoas em sofrimento mental. Assim, seu dever de guarda é reforçado. Citando a doutrina de Nagib Slaibi Filho, a relatora relembra que há uma "obrigação de vigilância e segurança do paciente que, em última análise, vem a ser mais uma das facetas do dever de incolumidade".

Outro trecho marcante da decisão foi a rejeição de argumentos sobre o risco integral ou sobre suposta culpa exclusiva da vítima: "Ainda que o suicídio tenha sido um ato voluntário da paciente, não restam dúvidas de que a mesma, na ocasião dos fatos, estava psicologicamente doente, com quadro grave de depressão e ideação suicida, o que obviamente desnatura qualquer evidência de vontade livre".

Sobre o assunto, ainda, a decisão cita a doutrina de Clayton Reis e Guilherme Alberge Reis: "Assim, por se tratar de inequívoca relação de consumo, atrai-se a aplicação do art. 14 do CDC, segundo o qual 'o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos', a justificativa é de que a garantia de integridade física do paciente internado em clínica psiquiátrica decorre de risco inerente à própria atividade empresarial, além da teoria da guarda de quem assume o dever de cuidado da pessoa internada em suas dependências, consoante prescreve o art. 932, inciso IV (por se referir ao serviço de hotelaria da clínica em questão), combinado com o art. 933 do CC vigente". (Debates Contemporâneos em direitos médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022 - Responsabilidade Civil de Clínica Psquiátrica em Hipótese de Morte Decorrente de Tentativa de Suicido. Clayton Reis e Guilherme Alberge Reis)

Conclusão: A vida em primeiro lugar

O julgamento do STJ consolida uma mensagem clara e urgente: a saúde mental não pode conviver com omissão, descaso ou economias irresponsáveis por parte de clínicas e planos de saúde. Não basta apenas admitir o paciente e prescrever medicamentos. É imprescindível uma vigilância contínua, estruturada e humanizada.

Num país que enfrenta uma epidemia silenciosa de depressão e suicídios, decisões como essa reforçam que o cuidado com a saúde mental é obrigação legal, ética e social de todos os envolvidos na cadeia de prestação de serviços de saúde.

A sentença restaurada pelo STJ representa, mais do que uma reparação individual, um sinal para o sistema de saúde suplementar: não há espaço para falhas quando a vida está em risco.

Vitor Eduardo Tavares de Oliveira

Vitor Eduardo Tavares de Oliveira

Assessor de Ministra do Superior do Tribunal de Justiça. Defensor Público do Estado do Paraná. Ex-Defensor Público do Estado do Maranhão. Mestrando pela Universidade de Buenos Aires. Pós-graduado pela FESMPDFT e Unitar (ONU). Organizador da obra Faixa Verde no Júri.

Thayná Yared

Thayná Yared

Assessora de ministra do STJ.

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