Deep fakes e eleições: O desafio de ver, duvidar e disciplinar juridicamente
O TSE proíbe deep fakes em campanhas, mas decisões judiciais mostram incertezas sobre sátiras, liberdade de expressão e manipulação digital.
quinta-feira, 26 de junho de 2025
Atualizado às 12:06
Mesmo pessoas altamente informadas e dotadas de senso crítico não estão imunes à sedução de imagens falsas. Acreditam que são verdadeiras ou, ainda que mantenham certa desconfiança, essas imagens se instalam no imaginário individual e coletivo e influenciam a formação de juízos. Uma sociedade que, por séculos, se orientou pelo preceito "ver para crer", agora precisa, paradoxalmente, reeducar-se para ver e duvidar. Essa mudança comportamental na forma de avaliar a realidade, pensar e decidir suscita crescente preocupação, sobretudo pelos impactos em relações sociais sensíveis, como as que envolvem a dinâmica democrática.
A inquietação não é infundada. A experiência internacional demonstrou que o uso de deep fakes (vídeos ou áudios fabricados com tecnologias de inteligência artificial, capazes de imitar com impressionante precisão traços faciais, vozes e gestos) constitui um sério risco à integridade da informação em contextos eleitorais. Diante desse cenário, e antes mesmo que a banalização dessa técnica ganhasse escala no Brasil, o TSE adiantou-se, promovendo alterações normativas para disciplinar a questão com rigor.
Por meio da resolução TSE 23.732/24, que alterou a resolução TSE 23.610/19 sobre propaganda eleitoral, o Tribunal vedou expressamente o uso de deep fakes nas campanhas e previu que sua utilização configura abuso de poder, com consequências severas, inclusive a perda do mandato eletivo. O dispositivo normativo é categórico, sem margem para ambiguidades quanto à vedação do uso de deep fakes e às consequências jurídicas de sua eventual ocorrência.
Esse marco normativo produziu um efeito inicial de contenção. As campanhas, em sua maioria, demonstraram cautela. Ainda assim, o fascínio e a disponibilidade da tecnologia fizeram com que sua presença não desaparecesse do cenário eleitoral. O uso de recursos audiovisuais manipulados se incorporou, de forma pontual, às estratégias de comunicação, revelando que o disciplinamento, embora necessário, não é suficiente para eliminar a insegurança jurídica sobre o tema.
Casos recentes ilustram as dificuldades conceituais e hermenêuticas que envolvem a aplicação da norma. Em São Paulo, a deputada Federal Tábata Amaral divulgou vídeo satírico em que o rosto do prefeito Ricardo Nunes foi inserido no corpo do boneco Ken, da franquia Barbie. A montagem fazia alusão ao nome do personagem "Ken", pronunciado como o pronome interrogativo "quem", para sugerir a ausência de identidade política ou autonomia do adversário. O partido de Nunes ajuizou representação por propaganda irregular antecipada. A Justiça Eleitoral paulista, em decisão de primeiro grau, entendeu que não houve exposição vexatória capaz de atingir a honra do candidato. Ressaltou-se, inclusive, que a figura de Ken é culturalmente bem aceita. Ou seja, a análise recaiu sobre os efeitos concretos da montagem, e não sobre a mera utilização da técnica de manipulação digital.
Em outro episódio, o então candidato à prefeitura de Fortaleza, Evandro Leitão, publicou vídeo em que simulava apoio de celebridades como Taylor Swift e Bart Simpson. A decisão da 118ª Zona Eleitoral de Fortaleza considerou que houve infração à resolução TSE 23.610/19 (arts. 9º-B e 9º-C), aplicando multa de R$ 15.000,00, determinando a exclusão do conteúdo e estabelecendo sanção diária em caso de reincidência. Todavia, o TRE do Ceará reformou a sentença, afastando a penalidade ao entender que: (i) o vídeo não configurava deep fake com potencial lesivo real, apresentando tom humorístico e ausência de sofisticação técnica;
(ii) o material veiculado constituía sátira política protegida pela liberdade de expressão, sendo facilmente reconhecível como conteúdo ficcional; (iii) montagens gráficas grosseiras, sem pretensão desinformativa e claramente perceptíveis pelo eleitor médio, não caracterizam deep fake eleitoralmente ilícita. A tese firmada pelo TRE-CE estabelece, assim, que "montagens gráficas sem conteúdo desinformativo e facilmente identificáveis pelo eleitor médio não caracterizam deep fake".
As decisões demonstram que o conceito jurídico de deep fake tem sido interpretado com base na potencialidade de influência sobre a formação da vontade do eleitor, considerando, sobretudo, o dano à imagem e a percepção do homem médio. Essa abordagem, ainda que razoável, revela a ausência de uma definição normativa mais precisa e a necessidade de critérios técnicos para aferir gravidade, verossimilhança e intencionalidade.
Ao proibir a aplicação de deep fake durante as campanhas eleitorais, o Tribunal vetou o seu uso tanto para beneficiar, quanto para prejudicar campanhas. Significa, em tese, dizer que os critérios de aferição seriam irrelevantes. A vedação engloba todo "o conteúdo sintético em formato de áudio, vídeo ou combinação de ambos, que tenha sido gerado ou manipulado digitalmente, ainda que mediante autorização, para criar, substituir ou alterar imagem ou voz de pessoa viva, falecida ou fictícia".1
A norma, pois, veda a utilização da deep fake. Não faz diferenciação quanto à gravidade, a intenção desinformativa, ou a finalidade do uso. Ao mesmo tempo, no entanto, permite manipulações ao impor a rotulagem da aplicação de inteligência artificial para, por exemplo, fabricar, manipular, sobrepor imagens ou sons (art. 9º-B) e autoriza o uso de avatares como artifício para intermediar a comunicação de campanha (art. 9º-B, §3º).
A incerteza jurídica permanece. É preciso ter em mente que as evoluções tecnológicas estão sendo apresentadas de forma muito rápida. A novidade de hoje já será obsoleta em alguns meses. As empresas de tecnologia investem muitos recursos para alcançar resultados cada vez mais precisos e o sucesso impressiona. Se na vida cotidiana as novidades trazidas pela inteligência artificial e os conteúdos audiovisuais exigem esforços dos nossos sentidos, no campo das campanhas eleitorais a demanda é ainda maior.
Para que se possa aplicar sanções de modo proporcional e coerente, é imperativo compreender o que configura deep fake no contexto jurídico-eleitoral, em sua diferença fundamental em relação à sátira, à paródia e a outras formas de crítica política, mas também à luz de critérios técnicos que permitam distinguir manipulações ilícitas de usos legítimos da tecnologia, não apenas como forma de proteção do eleitorado, mas também de segurança e previsibilidade para as candidaturas.
Além disso, embora a resolução TSE 23.732/24 afirme que o uso de deep fake caracteriza abuso de poder, essa previsão deve ser interpretada em harmonia com os demais dispositivos do ordenamento jurídico. Em especial, com o art. 22, inciso XVI, da LC 64/1990, segundo o qual: "para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam."
O Direito, especialmente no campo eleitoral, opera como um método de depuração: é chamado a distinguir o que é legítimo do que é manipulado, o que é crítica da democracia do que é fraude contra ela. A democracia não é apenas o resultado do voto, mas o processo pelo qual o eleitor forma sua convicção ao longo de todo o processo eleitoral. E esse processo exige que as escolhas se deem sob luz legítima, não sob sombras projetadas por algoritmos ou imagens que distorcem a realidade. A resposta jurídica ao fenômeno das deep fakes deve ser calibrada e tecnicamente criteriosa. É necessário evitar tanto a permissividade ingênua quanto o interdito absoluto. O risco está em duas frentes: de um lado, a manipulação dolosa, que distorce fatos e compromete a integridade do voto; de outro, a ampliação excessiva do conceito de deep fake, que pode inibir a criação crítica, a sátira política e até mesmo o uso lícito de recursos tecnológicos e audiovisuais com finalidades legítimas de comunicação eleitoral. Uma tecnologia já integrada ao cotidiano não pode ser tratada como inimiga em si mesma. O desafio é normatizar os usos abusivos sem interditar o potencial expressivo que, bem regulado, pode enriquecer o debate público. De todo modo, é importante que fique claro: a resolução parece ter dado um interdito absoluto não previsto em lei. Tal compreensão, para ser afastada, requer que o aplicador considere outras normas superiores do ordenamento jurídico, para que se compreenda qual construção hermenêutica está sendo realizada e com base em quais parâmetros valorativos constitucionais e legais. Dessa forma se questiona se a norma deveria banir o uso da tecnologia ou a intencionalidade com a qual é aplicada, ou seja: queremos que as campanhas eleitorais sejam ambiente asséptico e estagnado, ou buscamos vedar abusos e deturpações que colocam em risco a democracia? Nos parece que a resposta mais adequada está na segunda hipótese. A ver.
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1 BRASIL. Resolução n. 23.610/2019. Tribunal Superior Eleitoral. Art. 9º-C, §1º.
Raquel Cavalcanti Malenchini
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil. Integra o Observatório de Violência Política contra a Mulher.
Luiza Portella
Mestrado em Direito pela Universidade Federal do Paraná concluído aguardando emissão de diploma; Pós-Graduada em Direito Processual Civil pela Faculdade Cesusc; Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina; Graduada em Administração Empresarial pela UDESC/ESAG; Pesquisadora do Núcleo de Investigações Constitucionais da Universidade Federal do Paraná; Secretária da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SC no Biênio 2022/2023.