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Análise da subordinação algorítmica à luz das doutrinas francesa, brasileira, espanhola e italiana

A subordinação algorítmica desafia o direito do trabalho clássico. França, Brasil, Espanha e Itália buscam adaptar conceitos para proteger trabalhadores de plataformas.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Atualizado em 9 de julho de 2025 10:17

A emergência da subordinação algorítmica tem representado um dos mais complexos desafios contemporâneos ao direito do trabalho, quase que forçando uma reavaliação dos conceitos tradicionais de vínculo empregatício.

Ora, a análise das doutrinas francesa, brasileira, espanhola e italiana revela abordagens distintas porém convergentes, na tentativa de adaptar o jus laboris às novas realidades da so-called economia de plataforma.

Conceituação da subordinação algorítmica

A subordinação algorítmica pode ser definida como a forma de controle e direção da prestação de serviços exercida por meio de algoritmos e sistemas de inteligência artificial, que determinam as condições de trabalho, avaliam o desempenho, atribuem tarefas, definem remunerações e, em última instância, podem levar à exclusão do trabalhador da plataforma.

Diferentemente da subordinação dita clássica, que se manifesta na figura do superior hierárquico, aqui o controle é difuso, opaco e automatizado, a gerar uma "subordinação invisível" ou como se diz, "estrutural".

Análise doutrinária e jurisprudencial por jurisdição

A. Doutrina francesa:

Entre a "Subordinação Jurídica" e a "Subordinação Econômica"

A doutrina francesa, tradicionalmente, baseia a qualificação do contrato de trabalho na subordinação jurídica, caracterizada pelo poder do empregador de dar ordens, controlar sua execução e sancionar seu descumprimento.

Desafio da subordinação algorítmica: A Courts de Cassation (Corte de Cassação francesa) tem sido pioneira em reconhecer a subordinação em relações de plataforma. No caso Uber (Cour de Cassation, Chambre Sociale, 4 mars 2020, 19-13.316), a Corte considerou que a plataforma exercia um poder de direção e controle sobre o motorista, que não tinha autonomia para definir suas tarifas ou clientela, e estava sujeito a um sistema de avaliação e sanções que o impedia de desenvolver sua própria clientela.

A Corte deu ênfase a "inserção em um serviço organizado" e o "poder de controle digital" da plataforma.

Doutrina: Autores como Antoine Viala e Emmanuel Dockès argumentam que o algoritmo não seria meramente uma ferramenta neutra, mas sim um instrumento de gestão que materializa o poder diretivo do empregador.

Eles ressaltam a dependência econômica e a ausência de autonomia real do trabalhador como elementos que reforçam a tese da subordinação, mesmo que o controle não seja exercido por um superior humano direto.

A doutrina francesa explora igualmente a ideia de "subordinação tecnológica" ou "subordinação de plataforma" como uma nova faceta da subordinação jurídica.

Legislação: A França foi um dos primeiros países a legislar sobre o tema, com a lei 2016-1088 de 8 de agosto de 2016 (lei Travail), que introduziu um regime específico para trabalhadores de plataforma, garantindo-lhes direitos como a proteção contra acidentes de trabalho e a formação profissional, sem necessariamente qualificá-los como empregados.

Contudo, a jurisprudência tem ido além, e tem reconhecido o vínculo empregatício em casos específicos.

Doutrina brasileira: A flexibilização da subordinação e a dependência estrutural

No Brasil, o conceito de subordinação (art. 3º da CLT) é tradicionalmente atrelado à subordinação jurídica clássica, manifestada pelo poder diretivo, fiscalizador e disciplinar do empregador.

No entanto, a melhor doutrina e a jurisprudência têm buscado flexibilizar essa interpretação para abarcar as novas e importantes realidades.

Desafio da subordinação algorítmica:

A doutrina brasileira tem debatido a emergência da "subordinação algorítmica", "subordinação estrutural" ou "subordinação por plataformização". A ideia é que o controle algorítmico, a inserção do trabalhador na atividade essencial da empresa (plataforma) e a dependência econômica caracterizariam o vínculo.

Doutrina: Autores como Jorge Luiz Souto Maior e Adriana Calvo defendem que a subordinação não se restringiria ao controle direto e pessoal, mas sim abarcaria a organização e a inserção do trabalho na dinâmica empresarial.

Assim, para eles, a "subordinação estrutural" seria evidenciada pela essencialidade do trabalho do entregador/motorista para o modelo de negócios da plataforma, que não existiria sem essa força de trabalho.

Igualmente o mestre Maurício Godinho Delgado explora a "subordinação objetiva" ou "integrativa".

Enquanto alguns TRTs e varas do Trabalho têm reconhecido o vínculo empregatício para motoristas e entregadores de aplicativos, o TST e o STF ainda não chegaram a uma tese consolidada.

O STF tem proferido decisões que remetem a análise para a Justiça do Trabalho, mas também há decisões monocráticas que afastam o vínculo, realidade que gerou significativa insegurança jurídica.

Nesse contexto, o debate se intensifica sobre a necessidade de uma lei específica para trabalhadores de plataforma.

Doutrina espanhola: A presunção de laboralidade e a "lei Rider"

A Espanha tem sido uma das jurisdições mais proativas na regulamentação das relações de trabalho em plataformas digitais, com destaque para a chamada "lei Rider".

O conceito de subordinação é central.

Desafio da subordinação algorítmica: A jurisprudência espanhola, notadamente a do Tribunal Supremo (Sala de lo Social, Sentencia 992/20, de 25 de setembro de 2020), no caso Glovo, v.g., foi decisiva ao reconhecer a laboralidade dos ditos "riders".

A Corte argumentou que a empresa já não seria uma mera intermediária, mas sim uma verdadeira prestadora de serviços de entrega que se valia de uma plataforma digital.

Os elementos de subordinação incluíam o controle algorítmico sobre a prestação do serviço, o poder disciplinar e a organização da atividade.

A Corte destacou a "ajenidad" (alienidade dos meios e dos riscos) e a "dependencia" como elementos-chave.

Doutrina: Juristas como Jesús R. Mercader Uguina e Adrián Todolí Signes têm sido vozes bastante influentes na análise da subordinação algorítmica.

Eles argumentam que a tecnologia não elimina a subordinação, mas antes a transforma, tornando-a muito mais sutil e pervasiva.

A doutrina espanhola dá ênfase a dependência econômica e a inserção na organização empresarial como indicadores da subordinação, mesmo na ausência de um controle hierárquico tradicional.

Legislação: A Espanha promulgou o real decreto-ley 9/21, de 11 de maio (conhecido como "lei Rider"), que veio alterar o Estatuto dos Trabalhadores para estabelecer uma presunção de laboralidade para os entregadores que prestam serviços por meio de plataformas digitais.

A lei exige que as plataformas informem os representantes dos trabalhadores sobre os algoritmos e sistemas de IA que afetam as condições de trabalho. A Espanha possui uma das legislações mais avançadas no tema.

D. Doutrina italiana:

A "Parasubordinazione" e a Proteção dos Trabalhadores Autônomos Economicamente Dependentes

A Itália, a seu turno, possui uma categoria jurídica peculiar, a chamada "parasubordinazione", que se situa entre o trabalho subordinado e o autônomo, e tem sido um campo fértil para a discussão da subordinação algorítmica.

Desafio da subordinação algorítmica: A jurisprudência italiana tem explorado a aplicação da "parasubordinazione" aos trabalhadores de plataforma.

A Corte di Cassazione (Sezioni Unite, Sentenza 16601/20), em um caso envolvendo a Foodora, reconheceu que, embora não houvesse subordinação clássica, a relação apresentava características de coordenação e dependência que justificavam a aplicação de proteções trabalhistas.

A Corte enfatizou a organização da atividade por parte da plataforma e a dependência funcional do trabalhador.

Doutrina: Autores como Adalberto Perulli e Maria Teresa Carinci debatem a necessidade de expandir o conceito de subordinação para incluir o controle exercido por algoritmos.

A doutrina italiana tem se concentrado na proteção dos "trabalhadores autônomos economicamente dependentes" (lavoratori autonomi economicamente dipendenti), categoria que se encaixa bem na realidade dos trabalhadores de plataforma.

Legislação: A Itália tem avançado na proteção dos trabalhadores de plataforma.

O decreto legislativo 81/17 já previa a aplicação de algumas normas de proteção do trabalho subordinado aos trabalhadores "parasubordinados" que operam por meio de plataformas digitais.

A jurisprudência tem impulsionado a aplicação de normas de saúde e segurança no trabalho para esses trabalhadores, mesmo na ausência de um vínculo empregatício pleno.

Convergências e divergências nas abordagens

Convergências:

Reconhecimento do desafio:

Todas as doutrinas reconhecem que o modelo tradicional de subordinação é insuficiente para capturar a complexidade das relações de trabalho em plataformas digitais.

Foco na dependência:

Há uma tendência comum em enfatizar a dependência econômica e a inserção estrutural/organizacional do trabalhador na atividade da plataforma como indicadores de subordinação, mesmo na ausência de um controle hierárquico humano direto.

Busca por proteção: O objetivo subjacente em todas as jurisdições é garantir um nível mínimo de proteção social e trabalhista para esses trabalhadores, evitando a precarização.

Papel da jurisprudência: As cortes têm desempenhado um papel crucial na interpretação e adaptação dos conceitos existentes, muitas vezes antecedendo a legislação.

Divergências:

Grau de flexibilização:

O grau de flexibilização do conceito de subordinação varia.

Enquanto a Espanha e a França tendem a reconhecer o vínculo empregatício com base em uma interpretação ampliada da subordinação jurídica, a Itália explora a categoria da "parasubordinazione" como uma via intermediária.

O Brasil ainda busca uma tese consolidada.

Abordagem legislativa:

A Espanha adotou uma presunção legal de laboralidade, enquanto a França optou por um regime de direitos específicos para trabalhadores de plataforma sem presunção de vínculo.

A Itália tem se valido de categorias intermediárias.

No Brasil, a discussão legislativa ainda está em andamento.

Ênfase nos elementos:

Embora todas considerem a dependência, a ênfase em elementos como "alienidade", "inserção em serviço organizado" ou "coordenação" pode variar ligeiramente entre as doutrinas.

Finalmente é em conclusão, podemos afirmar que a subordinação algorítmica é um fenômeno que desafia os pilares do direito do trabalho em escala global.

As doutrinas francesa, brasileira, espanhola e italiana, cada qual com suas particularidades históricas e dogmáticas, demonstram um esforço contínuo com vistas a adaptar os conceitos existentes ou criar novas categorias jurídicas que possam abarcar essa nova realidade.

A tendência geral é a de reconhecer que o controle exercido por algoritmos e a inserção do trabalhador na estrutura da plataforma configuram uma forma de subordinação que justifica a aplicação das proteções trabalhistas, seja por meio da requalificação como empregado ou pela criação de regimes jurídicos intermediários.

O futuro da regulação das plataformas dependerá sempre e certamente da capacidade de harmonizar a inovação tecnológica com a imperativa proteção dos direitos fundamentais do trabalho.

Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade

Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade

Migalheira desde abril/2020. Advogada, sócia fundadora do escritório Figueiredo Ferraz Advocacia. Graduação USP, Largo de São Francisco, em 1.981. Mestrado em Direito do Trabalho - USP. Conselheira da OAB/SP. Conselheira do IASP. Diretora da AATSP.

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