Fim do Sabbath e bandas de IA: Música entre alma humana e algoritmo
No adeus de Ozzy e Black Sabbath e na estreia da banda criada por IA, Velvet Sundown, surgem reflexões sobre autoria, emoção e os rumos da criação musical na era da inteligência artificial.
sexta-feira, 11 de julho de 2025
Atualizado às 11:22
Introdução
No último sábado, 5 de julho de 2025, foi realizado o festival Back to the Beginning, no qual Ozzy Osbourne e o Black Sabbath encerraram suas trajetórias nos palcos em um show épico e emocionante, acompanhados por nomes lendários do Metal e do Rock N' Roll, como Metallica, Slayer, Guns N' Roses, Pantera, Steven Tyler, Tom Morello, Ronnie Wood, Tool dentre outros, e bandas mais recentes, como Rival Sons, Gojira, Lamb of God. Mais do que uma despedida, foi uma celebração da força visceral da criação humana.
Neste mesmo ano de 2025, estreou a Velvet Sundown, banda gerada por inteligência artificial, cujas músicas foram compostas por algoritmos treinados em milhões de obras humanas. Em julho de 2025, a banda alcançou um milhão de ouvintes na plataforma Spotify, com dois álbuns lançados, o que trouxe lembranças de 1991, com notícias da MTV sobre o lançamento simultâneo dos álbuns Use Your Illusion I e II pelo Guns N' Roses.
A diferença é palpável: enquanto os veteranos e as bandas mais recentes, compostos por humanos, arrancavam gritos1, emoções2, os mosh pits3, rodinhas típicas de shows desse estilo, com a genialidade orgânica, a banda digital, apesar de impecável tecnicamente, soa, de certa forma, estéril. O contraste não poderia ser mais simbólico. Este artigo propõe uma reflexão sobre os limites entre criatividade, tecnologia e o futuro do direito autoral.
O choque de gerações: Humanos x Máquinas
A geração que cresceu com LPs e fitas cassete viu, no adeus de Ozzy e do Black Sabbath, a confirmação de que a arte verdadeira está no suor, na falha, na conexão direta entre criador e público. Já os mais jovens, nativos das plataformas digitais, se habituaram a consumir trilhas criadas por máquinas, embaladas por algoritmos que priorizam eficiência e volume.
A IA democratiza o acesso à música, mas também ameaça esvaziar seu significado. Substituir emoção por performance algorítmica pode transformar arte em produto descartável, feito para agradar métricas, não memórias.
Autoria na Era dos Algoritmos
O direito autoral clássico se apoia na presença humana como origem da obra. Mas algoritmos que simulam composições com base em milhões de músicas desafiam esse modelo. Onde está o autor quando a criação é uma estatística refinada?
Obras geradas a partir de bancos de dados protegidos, muitas vezes sem licença, carregam traços de criações anteriores. Mesmo que "originais", não são livres de influências identificáveis. Isso levanta dúvidas sérias: seria lícito explorar comercialmente uma obra assim?
A técnica do prompt engineering, que consiste em inserir comandos para gerar músicas, também desafia a autoria tradicional. Quem digita uma instrução é autor? Ou apenas operador? Reconhecer autoria em prompts pode banalizar o conceito e enfraquecer a proteção de quem cria com intenção e emoção.
Provocações para reflexão
Se a IA reproduz com precisão o estilo de um artista humano, isso é inspiração ou violação? É possível juridicamente reconhecer uma coautoria entre humano e a empresa proprietária do algoritmo? Como garantir que a indústria cultural não transforme artistas reais em meros insumos para gerar conteúdo em escala? A emoção, que não pode ser programada, ainda será critério de valor na música do futuro?
Caminhos para o equilíbrio
Nesse contexto, o ponto de partida deve ser a transparência. Se a IA usa acervos protegidos para aprender, o licenciamento e a remuneração são imprescindíveis. Modelos organizados de compartilhamento e gestão responsável de dados, como acordos entre titulares de direitos e desenvolvedores, ou licenças coletivas, podem assegurar esse fluxo.
Desta maneira, tecnologias de rastreabilidade, como blockchain e identificação automatizada de trechos musicais (fingerprinting)4, podem revelar a origem de trechos gerados e proteger direitos. Não se trata de bloquear a inovação, mas de criar condições justas de participação.
É imperioso ressaltar que a legislação também precisa acompanhar tais mudanças de cenários. Nesse sentido, o regulamento (UE) 2024/1689 (AI ACT)5, prevê, no art. 53, a aplicação de uma política para dar cumprimento ao direito da União Europeia em matéria de direitos de autor e direitos conexos e, em especial, identificar e cumprir, nomeadamente através de tecnologias de ponta, uma reserva de direitos, bem como a elaboração e disponibilização ao público um resumo suficientemente pormenorizado sobre os conteúdos utilizados para o treino do modelo de IA de finalidade geral, de acordo com um modelo facultado pelo Serviço para a IA.
Essa exigência não obriga a divulgação linha por linha dos dados usados, mas sim um relatório transparente, que permita a identificação de quais tipos de conteúdo foi usado (ex.: músicas, livros, vídeos, imagens), de onde vêm esses dados (bases públicas, privadas, licenciadas ou não), e se há materiais protegidos por direitos autorais entre os dados usados.
Já o PL 2.338/236, que dispõe sobre o desenvolvimento, o fomento e o uso ético e responsável da inteligência artificial com base na centralidade da pessoa humana, possui uma Seção específica sobre os Direitos de Autor e Conexos, destacando-se, dentre outros o art. 62, com previsão de que o desenvolvedor de IA que utilizar conteúdo protegido por direitos de autor e conexos deverá informar sobre os conteúdos protegidos utilizados nos processos de desenvolvimento dos sistemas de IA, por meio da publicação de sumário em sítio eletrônico de fácil acesso, observados os segredos comercial e industrial, nos termos de regulamento específico.
Igualmente, o art. 64, dispõe que o titular de direitos de autor e conexos poderá proibir a utilização dos conteúdos de sua titularidade no desenvolvimento de sistemas de IA nas hipóteses não contempladas pelo art. 63 da lei que vier a ser aprovada.
Ademais, prevê que a proibição do uso de obras e conteúdos protegidos nas bases de dados de um sistema de IA posterior ao processo de treinamento não exime o agente de IA de responder por perdas e danos morais e materiais, nos termos da legislação aplicável.
É de se recordar, conforme leciona o professor Walter Capanema7, que
o Escritório de Direitos Autorais dos EUA publicou diretrizes sobre o registro de obras contendo material gerado por inteligência artificial. As regras esclarecem que somente obras com contribuição criativa humana significativa podem ser protegidas por direitos autorais, excluindo materiais criados exclusivamente por sistemas de IA sem intervenção humana. Além disso, ao registrar obras que incluem elementos gerados por IA, os requerentes devem declarar essa informação de forma clara.
Ainda segundo o professor Walter, em agosto de 2023, um juiz federal ratificou a decisão do Escritório de Direitos Autorais, afirmando que obras exclusivamente geradas por IA não têm direito a proteção autoral, pois a legislação protege apenas criações humanas.
Por fim, mas não menos importante, é pertinente destacar que o ECAD implementou em 2025 novos formulários de cadastro que exigem informação específica sobre uso de IA generativa, incluindo tipo de uso (total ou parcial), ferramenta utilizada e comando que gerou a obra, visando ao fortalecimento de mecanismos de controle sobre repertório protegido e oferece dados importantes para entender o impacto da IA no setor da música8.
Conclusão
A despedida do Ozzy e do Black Sabbath foi um tributo à genialidade orgânica e à singularidade da presença humana, que mesmo com eventuais imperfeições, entrega uma qualidade artística insubstituível e emocionalmente superior à frieza da criação algorítmica.
A banda Velvet Sundown é, sim, um feito tecnológico, mas também um alerta. A música pode ser gerada por IA, mas dificilmente será sentida da mesma forma.
O presente e o futuro exigem regulação, mas também memória e consciência ambiental. O desafio contemporâneo é equilibrar inovação e proteção. Para isso, a regulação é essencial, não apenas para garantir direitos autorais, mas também para preservar a diversidade cultural e reduzir os impactos ambientais e energéticos da IA generativa.
O AI Act da União Europeia, o PL 2.338/23 no Brasil e as Diretrizes do Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos são exemplos de marcos importantes nesse esforço. Que o Direito acompanhe a tecnologia sem renunciar à memória, à emoção e à autoria que tornam a arte humana insubstituível.
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Referências
BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 2338/2023: Dispõe sobre o desenvolvimento, o fomento e o uso ético e responsável da inteligência artificial com base na centralidade da pessoa humana. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2868197&filename=PL%202338/2023. Acesso em: 10 jul. 2025.
CAPANEMA, Walter. Manual de Direito Digital - Teoria e Prática. 2.ed, rev, atual e ampl.- São Paulo: Editora JusPodivm, 2025. P. 395/396.
EUROPA. JORNAL OFICIAL DA UNIÃO EUROPEIA. REGULAMENTO (UE) 2024/1689 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO. AI ACT. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=OJ:L_202401689. Acesso em: 10 jul. 2025.
CORONA ROCK BR. "Visão privilegiada de uma das rodas no show do Slayer no último sábado. Disponível em: https://www.instagram.com/reel/DL4mDVyAjOD/. Acesso em: 10 jul. 2025.
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OGLOBO. "Força da natureza desconcertante": confira como os críticos avaliaram o show de despedida de Ozzy Osbourne com o Black Sabbath. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/07/06/forca-da-natureza-desconcertante-confira-como-os-criticos-avaliaram-o-show-de-despedida-de-ozzy-osbourne-com-o-black-sabbath.ghtml. Acesso em: 10 jul. 2025.
RÁDIO 92.7 FM: "Ozzy Osbourne, visivelmente emocionado, cantou 'Mama, I'm Coming Home' ao lado da formação original do Black Sabbath, em um momento marcante da despedida da banda. Disponível em: https://www.instagram.com/reel/DLyMMWCsRtv/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em: 10 jul. 2025.
REVISTA COLETA CIENTÍFICA. ALESSANDRO AVENI. The 10th wipo conversation on intellectual property (IP) and frontier technologies. Disponível em: https://core.ac.uk/download/631398029.pdf. Acesso em: 10 jul. 2025.
SBLAMCEM2025. ECAD e a Proteção dos Direitos Autorais na Era da Inteligência Artificial - Sbacem. Disponível em: https://sbacem.org.br/ecad-e-a-protecao-dos-direitos-autorais-na-era-da-inteligencia-artificial/. Acesso em: 10 jul. 2025.
1 OGLOBO. "Força da natureza desconcertante": confira como os críticos avaliaram o show de despedida de Ozzy Osbourne com o Black Sabbath. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/07/06/forca-da-natureza-desconcertante-confira-como-os-criticos-avaliaram-o-show-de-despedida-de-ozzy-osbourne-com-o-black-sabbath.ghtml. Acesso em: 10 jul. 2025.
2 RA'DIO 92.7 FM: "Ozzy Osbourne, visivelmente emocionado, cantou 'Mama, I'm Coming Home' ao lado da formação original do Black Sabbath, em um momento marcante da despedida da banda.. Disponível em: https://www.instagram.com/reel/DLyMMWCsRtv/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em: 10 jul. 2025.
3 CORONA ROCK BR. "Visão privilegiada de uma das rodas no show do Slayer no último sábado. Disponível em: https://www.instagram.com/reel/DL4mDVyAjOD/. Acesso em: 10 jul. 2025.
4 REVISTA COLETA CIENTÍFICA. ALESSANDRO AVENI. The 10th wipo conversation on intellectual property (IP) and frontier technologies. Disponível em: https://core.ac.uk/download/631398029.pdf. Acesso em: 10 jul. 2025.
5 EUROPA. JORNAL OFICIAL DA UNIÃO EUROPEIA. REGULAMENTO (UE) 2024/1689 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO. AI ACT. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=OJ:L_202401689. Acesso em: 10 jul. 2025.
6 BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 2338/2023: Dispõe sobre o desenvolvimento, o fomento e o uso ético e responsável da inteligência artificial com base na centralidade da pessoa humana. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2868197&filename=PL%202338/2023. Acesso em: 10 jul. 2025.
7 CAPANEMA, Walter. Manual de Direito Digital - Teoria e Prática. 2.ed, rev, atual e ampl.- São Paulo: Editora JusPodivm, 2025. P. 395/396.
8 SBLAMCEM2025. ECAD e a Proteção dos Direitos Autorais na Era da Inteligência Artificial - Sbacem. Disponível em: https://sbacem.org.br/ecad-e-a-protecao-dos-direitos-autorais-na-era-da-inteligencia-artificial/. Acesso em: 10 jul. 2025.