Um problema de regulação: quando o formalismo distorce a lógica federativa da distribuição de tributos
A repartição tributária sofre distorções quando a regulação ignora a realidade econômica.
segunda-feira, 21 de julho de 2025
Atualizado às 16:09
A regulação, entendida como a intervenção qualificada do Estado para estruturar, orientar e supervisionar atividades econômicas e administrativas, é uma dimensão essencial da governança moderna.
No contexto federativo brasileiro, ela não se limita à criação de normas, mas inclui a harmonização entre diferentes esferas de competência e a garantia de que mecanismos institucionais funcionem com justiça, eficiência e responsividade.
Quando falamos em regulação tributária, especialmente na repartição de receitas entre entes federados, o desafio é ainda maior: não apenas assegurar arrecadação, mas também manter equilíbrio federativo, respeitar a realidade econômica local e promover justiça distributiva.
Contudo, quando se trata de regulação com impactos em diferentes níveis federativos, é comum que lacunas normativas, sobreposições de competência e interpretações formalistas causem distorções institucionais e prejudiquem a efetividade das políticas econômicas e distributivas.
É nesse contexto que surgem tensões relevantes, exigindo uma atuação regulatória mais responsiva, articulada e orientada por resultados concretos.
Analisemos a repartição do ICMS entre os entes subnacionais, que constitui uma das engrenagens fundamentais do pacto federativo brasileiro. A Constituição de 1988 estabeleceu que 25% da arrecadação estadual do ICMS deve ser repassada aos municípios, sendo que 75% desse montante deve seguir o critério do VA - Valor Adicionado.
A métrica é operacionalizada por meio do IPM - Índice de Participação dos Municípios, cujo objetivo é distribuir os recursos de forma proporcional à atividade econômica efetivamente gerada em cada território municipal.
Contudo, o funcionamento prático do IPM tem revelado desvios normativos e distorções técnicas, sobretudo quando confrontado com operações realizadas sob regimes especiais, como o Recof - Regime Aduaneiro Especial de Entreposto Industrial sob Controle Informatizado.
A principal disfunção regulatória está na relação entre os CFOPs - Códigos Fiscais de Operações e Prestações utilizados pelas empresas e o tratamento dado a essas operações na apuração do VA.
O que era para ser um mecanismo justo e responsivo à realidade econômica dos municípios torna-se, em muitos casos, uma engrenagem travada pelo formalismo, pela obsolescência normativa e pela falta de articulação federativa.
Daí surge a primeira lacuna a ser analisada do ponto de vista do Direito Regulador. O modelo atualmente adotado por muitas administrações tributárias estaduais vincula a inclusão de uma operação no cálculo do VA ao CFOP informado pelo contribuinte na nota fiscal eletrônica e na DECLAN-IPM.
CFOPs genéricos - frequentemente usados em regimes especiais como o Recof - são automaticamente interpretados como indicativos de operações não sujeitas à incidência do ICMS, ou que não geram VA. Esse critério, entretanto, é frágil do ponto de vista jurídico.
A LC 63/90, em seu art. 3º, §1º, I, é clara ao prever que o VA deve incluir todas as operações sujeitas ao ICMS, mesmo que isentas, não tributadas, ou com exigibilidade suspensa, ou diferida.
Ou seja, a postergação da cobrança do imposto não anula a ocorrência do fato gerador, tampouco o valor econômico agregado à cadeia produtiva. Reduzir a análise da operação ao código CFOP declarado, sem qualquer contextualização sobre o regime tributário em que se insere, é uma violação direta ao princípio da prevalência da realidade econômica.
Esse formalismo excessivo compromete a representatividade econômica do IPM e distorce a alocação dos recursos.
A falta de atualização dos regulamentos estaduais que tratam de regimes especiais agrava o problema. Muitas dessas normas foram editadas antes das recentes reformulações Federais, como a instrução normativa RFB 2.126/22, que reorganizou o Recof ao nível nacional, sem alterar sua essência tributária.
Em geral, esses regulamentos estaduais não especificam os efeitos das operações do Recof na apuração do VA, tampouco fornecem orientação sobre os CFOPs apropriados.
Essa omissão gera um vácuo regulatório que prejudica tanto o contribuinte quanto o ente municipal. Ao não estabelecer com clareza o tratamento a ser dado às operações realizadas com ICMS diferido, o regulamento estadual transfere para a interpretação administrativa uma responsabilidade que deveria ser da norma jurídica. A ausência de um marco regulatório claro impede a uniformidade da fiscalização, abre margem para litígios e compromete a segurança jurídica.
O Recof é um regime especial de caráter federal, destinado a incentivar a cadeia produtiva exportadora por meio da suspensão de tributos na importação ou aquisição interna de insumos.
É um instrumento estratégico de política industrial, amplamente utilizado por empresas de grande porte e em setores como o aeronáutico e o de tecnologia avançada. Contudo, apesar de sua regulamentação estar a cargo da Receita Federal, os efeitos do regime se estendem às esferas estaduais, especialmente quanto ao ICMS.
A falta de integração normativa entre os entes federativos cria uma fricção regulatória: o contribuinte cumpre com as exigências federais, mas enfrenta barreiras interpretativas na esfera estadual. A inexistência de CFOPs específicos para o Recof - reconhecida até mesmo no Ajuste Sinief 5/16, que trata das codificações fiscais - evidencia essa lacuna.
Essa desconexão impede que as administrações estaduais reconheçam a natureza especial das operações e tratem-nas adequadamente na apuração do VA. Essa fragmentação regulatória compromete a eficácia do regime especial, impõe custos de conformidade aos contribuintes e cria distorções na política de redistribuição de receitas estaduais.
A DECLAN-IPM é a declaração acessória por meio da qual os contribuintes informam suas operações à SEFAZ estadual para efeito de cálculo do VA. Embora seja uma ferramenta consolidada, seu modelo atual está baseado quase exclusivamente na leitura automática dos CFOPs, o que a torna inadequada para refletir a complexidade de regimes especiais ou fluxos econômicos não tradicionais. A estrutura da DECLAN-IPM não permite a qualificação técnica das operações, nem tampouco o fornecimento de informações complementares capazes de contextualizar uma movimentação em um regime de diferimento.
O resultado é a invisibilização fiscal de operações reais, que agregam valor à economia municipal, mas são desconsideradas por inadequações formais no preenchimento da declaração. Uma política regulatória coerente exige que os instrumentos declaratórios sejam robustos o suficiente para capturar a diversidade das operações empresariais modernas.
Isso significa reformular a DECLAN-IPM para prever campos que permitam informar o enquadramento da operação em regimes especiais, além de mecanismos de validação por parte dos próprios municípios afetados.
A consequência mais grave desse cenário é a subtração artificial de receitas municipais. Quando operações relevantes não são computadas no VA - por questões formais e não substanciais -, o município sede da atividade econômica recebe menos recursos do ICMS do que efetivamente deveria. Isso representa uma violação à lógica do IPM, cujo objetivo é justamente assegurar que os recursos sejam distribuídos conforme a contribuição de cada município para a arrecadação estadual. O princípio da equidade na repartição de receitas, inscrito nos arts. 158 e 161 da CF, é diretamente comprometido.
Mais do que uma injustiça técnica, trata-se de um problema institucional com implicações federativas diretas. Municípios com forte atividade industrial ou portuária, por exemplo, - e que frequentemente abrigam operações sob regimes especiais - acabam sendo prejudicados na distribuição de recursos, o que afeta sua capacidade de oferecer serviços públicos essenciais.
O STF, ao julgar a ADIn 2.901/MT, reafirmou que o critério de distribuição do ICMS deve refletir a capacidade contributiva real dos municípios. Ignorar isso por formalismo fiscal não apenas afronta a jurisprudência constitucional, como compromete o funcionamento da federação brasileira.
A complexidade do sistema tributário brasileiro não pode ser resolvida por mecanismos automáticos baseados exclusivamente em codificações fiscais. O caso das operações sob regimes especiais, como o Recof, revela a necessidade urgente de aperfeiçoamento da regulação estadual sobre o IPM, especialmente no que diz respeito ao tratamento do Valor Adicionado.
Atualizar os regulamentos estaduais, criar CFOPs específicos para operações com ICMS diferido e modernizar a DECLAN-IPM são medidas indispensáveis para resgatar a coerência normativa e garantir a justiça fiscal entre os municípios.
Mais do que uma resposta técnica, trata-se de uma exigência constitucional, que exige dos entes federativos uma postura responsiva, articulada e comprometida com a realidade. Se a tributação pretende refletir a atividade econômica efetiva e promover equilíbrio entre os entes federativos, não pode se apegar a filtros formais que distorcem a base de cálculo e penalizam quem mais contribui para o desenvolvimento do Estado.
Ou seja, estamos diante de um problema de direito regulatório e não de tributário como aparenta ser. E isso acontece não só com aspectos de repartição tributária, mas também com o caso de receitas, como nos royalties do petróleo, que carecem de uma regulação mais clara a fim de haver uma distribuição mais adequada e equitativa.