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O espelho que não cegou o desembargador Narciso

Em tempos em que a toga, muitas vezes, ofusca a realidade, o desembargador Narciso fez o oposto: usou a toga para iluminar o que importa.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Atualizado às 08:37

O mito grego clássico, Narciso se apaixona pelo próprio reflexo e é tragado pela vaidade.

Daí o termo "narcisismo", usado pela psicanálise freudiana para explicar um transtorno obsessivo pela própria imagem; onde o ego se torna o objeto principal de desejo, e o mundo ao redor, mero pano de fundo.

No universo jurídico, o espelho costuma ser a norma: reluzente, técnica, aparentemente neutra. Muitos se encantam por ela, esquecendo que o Direito não vive no papel, mas na vida.

Aqui, o título subverte esse destino: o desembargador Narciso não foi cegado pelo espelho, ou seja, não se perdeu na vaidade da cláusula contratual, nem no formalismo dos regulamentos que transformam pessoas em omissões documentais.

Ele enxergou além: viu a viúva, viu o vínculo, viu a função social do contrato e a proteção constitucional da família e não a burocracia e a frieza do sistema previdenciário.  

Em tempos em que a toga, muitas vezes, ofusca a realidade, o desembargador Narciso fez o oposto: usou a toga para iluminar o que importa.

E isso, no Brasil jurídico de hoje, é quase mitológico.

O drama da viúva que não tinha cadastro no plano previdenciário

No país, onde até o luto precisa de cadastro e o afeto exige autenticação em cartório, uma viúva teve que recorrer ao Judiciário para provar que era, de fato, viúva e tinha direito de receber à previdência complementar e receber os valores correspondentes ao Pecúlio por Morte.

Não bastava o casamento, a convivência, a dependência econômica. Faltava o item mais sagrado do ordenamento previdenciário: a designação formal no cadastro. Um papel. Uma linha.

Um esquecimento que, para o plano de previdência, vale mais que uma vida inteira compartilhada.

O réu, fiel à liturgia do regulamento, negou o benefício com a convicção de quem acredita que a Constituição é uma sugestão e que o bom senso e a razoabilidade são uma ameaça ao equilíbrio atuarial.

O desembargador Narciso e o espelho da justiça

O Judiciário, por um instante, viu gente.

Que maravilha!

E como quem enxerga a realidade não se contenta com abstrações: condenou o plano de previdência a incluir a autora em seus cadastros como dependente do beneficiário falecido, na qualidade de viúva, aquela que ficou, que perdeu, que depende.

Determinou o pagamento dos valores correspondentes ao Pecúlio por Morte e à Suplementação da Pensão por Morte.

O Direito olhou para a vida - e não para o regulamento!

Direito não é apenas norma , é um conjunto de normas, estando a Constituição no vértice e, sendo instrumento de justiça social.

Entre o ego e a Constituição o desembargador Narciso ficou com a Constituição.

Aliás, Narciso acha feio o que não é espelho, já dizia Caetano Veloso, nos versos, da música Sampa.

Ora, ora, a justiça não é espelho. O juiz não pode julgar a si próprio, pois estaria apenas reafirmando suas próprias convicções.  

Quando o Direito volta a ser humano

Porque, no fim das contas, o Direito não é feito para proteger regulamentos!. É feito para proteger gente que precisa ser feliz!

E quando isso acontece, o papel do Judiciário deixa de ser apenas técnico - e volta a ser humano!

A justiça não se limita à aplicação rígida e fria da lei. Tem que estar conectada com à Constituição, à coerência e à integralidade do Direito!

O plano que não provou, mas protestou e embargou

Já o réu - o plano de previdência - negou. Não por falta de vínculo, dependência ou humanidade.

Mas por falta de cadastro. A senhora viúva não estava na lista de cadastro. E como todos sabem, no país da papelada, quem não está na lista do cadastro não existe.

Fiel à liturgia do regulamento, negou o benefício com a convicção de quem acredita que a Constituição é uma sugestão e que o bom senso e razoabilidade são uma ameaça ao equilíbrio atuarial.

Pior: Não apresentou prova de déficit, mas apresentou indignação, o que, em certos ambientes, vale mais que balanço.

Afinal, incluir a viúva sem cadastro poderia causar um terremoto contábil, um colapso financeiro, a queda da bolsa de valores e talvez até a falência da lógica e, quem sabe, até uma crise mundial.

O argumento é tão robusto quanto um castelo de cartas em dia de vento.

Ônus e distribuição da prova

Em ações que envolvem previdência complementar, o ônus de provar o impacto atuarial negativo recai sobre o réu, ou seja, sobre a entidade de previdência privada.

Nos termos do art. 373, II, CPC, o réu tem o dever de provar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do autor.

Além disso, pelo princípio da distribuição dinâmica do ônus da prova (art. 373, §1º do CPC), permite ao juiz atribuir o ônus à parte que tem melhores condições técnicas de produzi-lo.

Por que o réu deve comprovar os cálculos atuariais?

  • Natureza técnica e especializada: Os cálculos atuariais exigem conhecimento técnico específico, geralmente restrito à própria entidade gestora do plano.
  • Alegação de prejuízo: Se o fundo de pensão alega que a concessão do benefício à esposa não inscrita causaria desequilíbrio financeiro, ele precisa comprovar esse impacto com dados concretos, como projeções, reservas técnicas e impacto no plano.
  • Precedentes judiciais: O STJ, nos embargos de divergência em agravo em recurso especial 925908-SE, já decidiu que a ausência de inscrição formal não afasta automaticamente o direito ao benefício, a menos que haja prova técnica de prejuízo atuarial.. Sem essa prova, prevalece o princípio da proteção ao dependente presumido.

Ou seja, sem essa prova, o argumento do réu de que a inclusão da viúva como beneficiária causaria desequilíbrio atuarial não se sustenta juridicamente

Pois é. O réu não provou nada...

Presunção legal de dependência econômica

  • Conforme o art. 16 da lei 8.213/1991, o cônjuge é presumidamente dependente do segurado.
  • Essa presunção é aplicável também à previdência complementar, conforme entendimento consolidado do STJ.
  • A ausência de inscrição formal não afasta o vínculo jurídico e afetivo que fundamenta a proteção previdenciária.

Função social do contrato previdenciário

  • O contrato de previdência privada, embora regido por normas civis, possui natureza protetiva e social, conforme o art. 226 da Constituição Federal.
  • A jurisprudência reconhece que esse tipo de contrato não pode ser interpretado de forma estritamente técnica, devendo atender à finalidade de proteção familiar.

Hermenêutica constitucional e filosofia do Direito

À luz da hermenêutica jurídica e da filosofia do Direito, a jurisprudência do STJ e o acórdão do TJ/RJ, que reconhecem o direito da esposa à pensão por morte mesmo sem inscrição formal, não apenas são legítimos - são constitucionalmente corretos.

Por quê? Porque promovem a justiça material e a proteção dos vulneráveis.

Realizam os valores constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da proteção familiar.

Evitam que o formalismo excessivo se transforme em instrumento de negação de direitos fundamentais, especialmente quando a omissão decorre de burocracia e não de má-fé.

Mais do que isso: impõem racionalidade à alegação de prejuízo atuarial, exigindo prova concreta , e não apenas retórica contábil.

Afinal, o risco financeiro não pode ser argumento genérico contra a efetivação de direitos sociais.

O que está em jogo não é apenas um benefício. É o compromisso do Estado com a justiça que enxerga pessoas, e não apenas cláusulas

O que diz a lei

É importante observar que o art.  202 da Constituição: estabelece a previdência complementar como direito social. O art. 421 do CC: contratos devem respeitar sua função social. E o art. 926 do CPC: exige uniformização e estabilidade da jurisprudência.

A previdência complementar, embora contratual, é um direito social (art. 6º e art. 202 da CF).

Diante de lacunas ou conflitos, a norma infraconstitucional (como o regulamento do plano) deve ser interpretada à luz da Constituição - especialmente da proteção à família (art. 226).

A doutrina

A função social do contrato é um exemplo de como o direito deve ser dúctil diante de situações de vulnerabilidade, vale dizer, a norma deve se adaptar à realidade social, na visão de Gustavo Zagrebelsky.

Além do mais, por uma postura dworkiniana: o direito deve ser interpretado de forma coerente com os princípios morais da comunidade jurídica.

Isto é: o juiz (representado pelo personagem Hércules) tem a tarefa de buscar a integridade em suas decisões.

A proteção da esposa como dependente presumida reforça o caráter garantista do direito: proteger os direitos fundamentais contra arbitrariedades formais.

A leitura constitucional, sim, privilegia a: justiça, a proteção dos vulneráveis e a coerência sistêmica.

Ele não apenas interpreta a norma - ele a reconcilia com os valores que a Constituição consagra.

A negativa do benefício à esposa, mesmo sendo presumidamente dependente, fere o princípio da dignidade humana.

O contrato previdenciário deve servir à proteção da família, não à exclusão por formalismo. Interpretar o contrato de forma a excluir o cônjuge sem prova de prejuízo viola escancaradamente a efetividade desse direito.

A ausência de designação formal não pode se sobrepor à proteção da família, especialmente quando não há prejuízo comprovado ao plano, o que foi no caso concreto.

A justiça não se realiza na frieza do regulamento, mas na sensibilidade da norma diante da vida.

Conclusão

No Brasil, até a viuvez precisa de cadastro. A senhora era casada, vivia sob o mesmo teto, dividia a vida e os problemas, dependia economicamente do marido, mas não estava cadastro do plano de previdência. 

E como bem sabemos, no país da burocracia afetiva, quem não está cadastro não existe - nem como viúva, nem como ser humano com direitos.

Foi então que o desembargador Narciso, sem se apaixonar pelo reflexo da cláusula contratual, olhou para a realidade da vida.

Com a precisão e sabedoria de quem conhece a letra da lei e a coragem de quem não se rende ao formalismo, reconheceu o direito da viúva, como garantidor dos direitos fundamentais!

Com lucidez institucional, reconheceu o óbvio: que o vínculo conjugal não se dissolve por falta de formulário.

Já o plano, ofendido em sua alma cartorial, negou o benefício com a convicção de quem acredita que a Constituição é opcional e que o afeto só vale com firma reconhecida..

Não houve prova de déficit atuarial, mas houve drama. O réu alegou que incluir a viúva sem designação formal poderia causar um terremoto financeiro, talvez até um eclipse contábil.

Não apresentou números, mas apresentou indignação, o que, em certos ambientes, vale mais que o balanço.

Só que o argumento não colou.

O Direito serve para proteger pessoas e não apenas cláusulas. Deve se interpretar a norma à luz da hermenêutica constitucional.

E isso, por incrível que pareça, ainda é considerado subversivo.

Não foi um gesto de generosidade. Foi justiça. E quando ela acontece, vale a pena escrever sobre isso.

Afinal, no Brasil, o bom senso precisa de despacho, sentença e acórdão, e o amor, esse sim, precisa de autenticação em três vias.

Em tempos em que a toga, muitas vezes , ofusca a realidade, o desembargador Narciso fez o oposto: usou a toga para iluminar o que importa.

E isso, no Brasil jurídico de hoje, é quase mitológico.

Renato Otávio da Gama Ferraz

VIP Renato Otávio da Gama Ferraz

Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras

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