Cláusula de não-concorrência sem limitação temporal: Nulidade ou anulabilidade? Análise crítica do recente acórdão proferido pelo STJ no julgamento do REsp 2.185.015/SC
O STJ decidiu que cláusulas de não-concorrência sem limite temporal são anuláveis, não nulas, reforçando o equilíbrio entre autonomia e livre iniciativa.
terça-feira, 9 de setembro de 2025
Atualizado em 8 de setembro de 2025 14:57
O Direito Contratual é, por excelência, o ramo do Direito Civil que viabiliza, de forma ampla, o exercício da autonomia privada pelos particulares1. Aquilo que foi pactuado pelos contratantes, via de regra, deverá ser respeitado e observado (princípio do pacta sunt servanda) pelas partes, salvo em situações excepcionais que demandarão a intervenção mínima do Estado-Juiz (cf. parágrafo único do art. 421 do CC, inserido pela lei de liberdade econômica). A revisão contratual e a intervenção judicial nas relações jurídicas econômicas somente terão lugar em situações anômalas, como, por exemplo, nos casos em que há violação a princípios de ordem civil-constitucional (tais como os princípios da solidariedade, da função social do contrato, da boa-fé objetiva, da livre iniciativa, da livre concorrência e da própria autonomia privada, dentre outros)2.
Este estado de coisas foi, recentemente, reafirmado pelo STJ no julgamento do REsp 2.185.015/SC3, ocorrido no dia /6/8/25. No acórdão em questão, o STJ debruçou-se sobre a (in)validade da cláusula de não-concorrência (cláusula "non-compete") ilimitada no tempo. A controvérsia originou-se de caso concreto no qual as partes contratantes, após a dissolução de sociedade empresarial (voltada à venda de roupas infantis), pactuaram cláusula de não-concorrência sem nenhum limite temporal, pela qual se proibiram, reciprocamente, de vender roupas infantis de determinados tamanhos (até o tamanho quatro para uma das partes, acima de tal numeração para a outra).
A celeuma foi instaurada após a alegada violação à cláusula de não-concorrência por uma das ex-sócias. Ao analisar a questão, a 3ª turma do STJ entendeu que é inválida a cláusula de não-concorrência pactuada de forma ilimitada no tempo, eis que este tipo de disposição contratual restringe, de forma desproporcional e demasiada, o exercício da atividade econômica pela parte contratante.4 No entanto, nos termos da decisão, "na vedação à cláusula de não-concorrência sem limitação temporal, embora se reconheça haver interesse social na preservação da livre concorrência e da livre iniciativa, o que se protege é a ordem privada. A restrição concorrencial contratualmente prevista atinge diretamente apenas o contratante; é o seu direito particular que não afronta à lei". Ou seja, não há, nos termos da decisão, violação a preceito de ordem pública; logo, a nulidade seria relativa (anulabilidade) e não absoluta.
Como consequência deste entendimento, destacou-se no acórdão que a nulidade deste tipo de cláusula não é absoluta, mas cuida-se de hipótese de anulabilidade, de modo que: (i) o vício é sanável e o ajuste pode ser confirmado pelas partes (arts. 172 e 173 do CC); (ii) a anulabilidade não tem efeito antes de julgada por sentença, não pode ser pronunciada de ofício e só os interessados a podem alegar (art. 177 do CC); (iii) está sujeita a prazo decadencial (arts. 178 e 179 do CC).
Com base neste arcabouço normativo, decidiu o STJ que, apesar da anulabilidade da cláusula de não-concorrência ilimitada no tempo, o seu reconhecimento judicial deveria ser afastado, eis que a anulabilidade teria sido decretada de ofício, sem pedido e contraditório exercido pelas partes.
A cláusula de não-concorrência importa autolimitação (self-restraint) decorrente da autonomia privada manifestada pelas partes dotadas de capacidade civil e negocial. Por ser cláusula que importa em restrição de direitos fundamentais, apesar de admitida pelo ordenamento jurídico5, sua análise deve ser criteriosa e restritiva. No caso analisado pelo STJ, tratava-se de contrato firmado entre duas empresárias, maiores e capazes, e plenamente informadas sobre os termos do negócio jurídico por elas firmados.
Uma primeira análise, a partir de um modelo abstrato de autonomia da vontade, levaria à validade da cláusula. No entanto, no ambiente normativo pós-constitucional a autonomia privada é condicionada à concretude dos princípios e direitos constitucionais, ainda que se trate de relação entre particulares. Assim, é dado às partes autorregulamentarem seus interesses jurídicos; contudo, reconhece-se que a disciplina contratual estabelecida pelas partes está inserida na ordem econômica constitucional brasileira e não é absoluta6.
Na avaliação desse tipo de cláusula, deve-se adotar uma interpretação pro libertatem, conforme prevê o art. 1º, § 2º da lei 13.874/19, denominada lei da liberdade econômica. A liberdade em favor da qual se deve interpretar é a econômica, que no Direito brasileiro é representada pela livre iniciativa prevista no art. 170 da CF/88. Com isso, cláusulas que restringem tal liberdade devem conter elementos que permitam definir de forma clara os contornos da limitação a esse direito fundamental pelas partes, sob pena de incorrer em invalidade. São eles: temporal, geográfico, material e remuneratório7. Temporal é o período de tempo de limitação; geográfico, a área territorial em que a concorrência não poderá ser exercida; material, as atividades ou áreas de mercado que não podem ser exercidas ou atingidas, de forma clara e específica; remuneratório, por fim, é a contraprestação pela limitação, que não necessariamente deve ser representada por uma contraprestação imediatamente a ela vinculada. Por exemplo, no caso de cisão de uma sociedade, o caráter remuneratório está na atribuição de parte do acervo empresarial à parte cindida; no caso de trespasse, no valor pago pelo estabelecimento; no caso de aquisição de quotas sociais ou ações, no valor pago pela cessão.
A cláusula que não oferece limites claros, que é genérica quanto a seus requisitos, acaba por representar limitação ilícita do direito fundamental à livre iniciativa frente ao bem jurídico que visa proteger, que é a concorrência leal. Em razão disso, incorre em invalidade, definida pelo STJ na decisão em comento como sendo relativa.
A decisão proferida pela Corte Superior está em consonância com arcabouço principiológico que informa o Direito Contratual contemporâneo. Todavia, é possível tecer alguns apontamentos críticos quanto ao que se decidiu acerca da natureza da nulidade.
A decisão indicou como argumentos que sustentam a natureza anulável (nulidade relativa) da cláusula os seguintes: (i) as partes podem confirmar o negócio ou sanar o vício; (ii) no caso de prazo excessivo, pode a cláusula ser ajustada e permanecer válida; (iii) trata-se de déficit de validade de menor gravidade; (iv) o interesse envolvido é exclusivamente privado.
Tal conclusão traz importantes consequências: a primeira é a possibilidade da decadência do direito potestativo de pleitear a anulação da referida cláusula, de modo que, passados dois anos de sua celebração, a parte prejudicada já não poderia suscitar a invalidade; a segunda é a possibilidade de confirmação do ajuste, pelo que se poderia questionar se a abstenção do comportamento por tempo razoável poderia ser interpretada como confirmação tácita através da supressio, por exemplo; a terceira, e mais grave, é permitir que a limitação genérica de um direito fundamental prevaleça pelo decurso do tempo.
Uma cláusula que preveja 30 anos de não concorrência, se não questionada em dois anos, convalesce? Nesse caso a solução estaria em uma limitação de eficácia, restringindo o prazo ao limite de cinco anos em razão da aplicação, por analogia, do prazo do art. 1.147 do CC. A cláusula permaneceria válida, em razão da decadência do prazo de anulação, mas seus efeitos poderiam ser limitados.
Não se discorda da possibilidade de as partes, em exercício de suas autonomias negociais, autolimitarem o direito fundamental à livre iniciativa. Contudo, a partir do momento em que essa autolimitação não estabelece contornos claros de aplicação (temporal, geográfico, material e remuneratório), o que há é uma restrição de liberdades que não deve ser acolhida pelo ordenamento. Considerando que o bem jurídico em questão é uma das formas de expressão da liberdade, questiona-se: o déficit de invalidade é assim reduzido a ponto de o submeter ao regime das invalidades relativas (ou anulabilidades), como tal sujeito a prazo decadencial e risco de confirmação tácita?
É de interesse da sociedade em geral e do mercado em particular que a competição seja ampla e franca, de modo a promover melhores condições de aquisição e circulação de bens e serviços, favorecendo a economia como um todo. Há, portanto, como a própria decisão reconhece, um interesse social envolvido.
Se fosse reconhecida a nulidade absoluta de referida cláusula, a pretensão declaratória não estaria sujeita a prazo algum, e apenas os efeitos materiais (restitutórios ou indenizatórios, por exemplo) estariam condicionados ao prazo prescricional decenal. Tal qual no exemplo acima, nos casos em que exista a previsão dos limites temporais, geográficos e materiais, mas estes sejam exagerados, pode ocorrer o decote eficacial, sem afetar a validade da cláusula, atendida pela presença dos seus requisitos.
O debate permanece, principalmente, pelas consequências decorrentes da aplicação do regime da anulabilidade, o que reforça a necessidade de as cláusulas serem bem redigidas, com requisitos claros e proporcionais, que não importem em restrição incompatível com o direito fundamental à livre iniciativa.
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1 De acordo com Castro, a autonomia privada "cumpre papel de guiar as relações sociais de tal modo que o reconhecimento recíproco da condição de sujeitos torne possível que a sociedade goze democraticamente de esferas autônomas de desenvolvimento pessoal" (CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. Bons Costumes no Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Almedina, 2017. p. 42).
2 "[...] a autonomia privada foi fortemente limitada pelo caráter social do Estado, embora continuasse tendo seu matiz patrimonial. Passou a conviver com a função social - do contrato, da propriedade -, funcionando como limite e condição de seu exercício [...]" (TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Autonomia Existencial. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 16, p. 75-104, abr./jun. 2018. p. 84).
3 STJ, REsp n. 2.185.015/SC, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 06.08.2025. .
4 A Corte já se manifestara nesse sentido, em outro julgado: "São válidas as cláusulas contratuais de não-concorrência, desde que limitadas espacial e temporalmente, porquanto adequadas à proteção da concorrência e dos efeitos danosos decorrentes de potencial desvio de clientela - valores jurídicos reconhecidos constitucionalmente" (STJ, REsp n. 1.203.109/MG, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 05.05.2015).
5 Conforme prevê para os casos de trespasse do estabelecimento comercial o caput do art. 1.147 do Código Civil, a regra é a da não concorrência, salvo se as partes expressamente anuírem com a concorrência por parte do trespassante: "Art. 1.147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subseqüentes à transferência".
6 FRAZÃO, Ana. Liberdade econômica para quem? A necessária vinculação entre a liberdade de iniciativa e a justiça social. In: SALOMÃO, Luis Felipe; CUEVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO, Ana (coord.). Lei de liberdade econômica e seus impactos no Direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 98.
7 Como ressalta Nelson Nery Jr em texto citado na decisão: NERY JUNIOR, Nelson. Cláusula de não concorrência e seus requisitos - prejudicialidade externa entre processos. In: Soluções Práticas de Direito, vol. 7/2014, pp. 467 - 513
José Miguel Garcia Medina
Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para a elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.
Mariana Barsaglia Pimentel
Advogada, sócia diretora da área de Direito de Família e Planejamento Patrimonial e Sucessório do escritório Medina Guimarães Advogados. Doutoranda e mestra em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).