O juiz Ângelo e o ministro Fux: Entre o legalismo e o voluntarismo
Análise de parte do voto do ministro Luiz Fux à luz de Dworkin e Shakespeare revela a oscilação entre legalismo e voluntarismo, sem coerência nem integridade.
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
Atualizado às 08:38
Na peça Medida por Medida, de William Shakespeare (2003), o personagem Ângelo encarna a figura do julgador que oscila entre o legalismo e o voluntarismo. A peça gira toda em torno dos conceitos de justiça, corrupção, abuso do poder, apresentando, primeiramente, o duque de Viena que finge uma viagem, deixando em seu lugar Ângelo, um rigoroso juiz que faz cumprir à risca as leis contra a fornicação em vigor na cidade.
Em um primeiro momento Ângelo faz uma aplicação obstinada da lei, o que implica na prisão de Cláudio (porquanto havia tido relações sexuais com sua namorada), sendo condenação à morte. Isabella, noviça e irmã do prisioneiro, tenta reverter a sentença, mas Ângelo mostra-se irredutível, quando, em dado momento, em que a concupiscência toma conta de seu ser, sugere a Isabella que libertaria seu irmão em troca da sua virgindade, ou seja, se fizesse amor com ele, adotando, assim, uma postura voluntarista, protagonista, dono da lei.
Indaga-se: quem é pior? O juiz positivista exegético, ou, o juiz solipsista, protagonista, dono da lei e de seus sentidos? Embora seja considerada uma comédia, Medida por Medida, que foi escrito em torno de 1604, permanece atual por abordar temas como o poder, e os dilemas éticos e morais da vida pública e privada.
Esse movimento pode ser vislumbrado, mutatis mutandis, em parte do voto proferido pelo ministro Luiz Fux no julgamento das preliminares da ação penal relativa ao golpe de Estado. Em um primeiro momento, ao examinar a competência do STF, o ministro reconheceu, com base literal na Constituição, que a prerrogativa de foro só subsiste para crimes cometidos por autoridades no exercício do cargo. Como alguns réus não mais detinham funções públicas, o STF seria incompetente, devendo remeter os autos ao juízo de primeiro grau (Brasil, 1988, art. 102, I, b). Essa postura é coerente com o legalismo estrito, pois parte da aplicação objetiva do texto constitucional, sem margem para discricionariedade.
Contudo, quando analisou a preliminar de cerceamento de defesa, o mesmo ministro adotou direção oposta. Aceitou a tese de que o prazo conferido para análise dos documentos não teria sido suficiente para a defesa. Ocorre que o processo penal brasileiro prevê prazos peremptórios para a prática dos atos processuais, não admitindo elasticidade ao sabor da vontade do julgador.
Ao acolher a preliminar, o ministro relativizou a regra legal, invocando inclusive um instituto típico do Direito anglo-saxão, o chamado "document dump", que descreve a prática de sobrecarregar a parte contrária com uma avalanche de documentos, dificultando a análise efetiva (Osborne, 2011). Ainda que esse instituto tenha relevância nos sistemas de common law, não há previsão normativa correspondente no ordenamento processual brasileiro.
O contraste é evidente: aquele que, momentos antes, se apresentou como escravo da lei ao aplicar rigidamente a CF, agora assume postura de criador de exceções, recorrendo até a fundamentos alienígenas para justificar a flexibilização de prazos peremptórios. A alternância entre polos revela menos uma convicção metodológica do que uma estratégia retórica: decide-se primeiro, fundamenta-se depois, escolhendo o critério conforme o resultado previamente desejado.
É importante, aqui, distinguir duas situações. Uma coisa é reconhecer cerceamento de defesa quando a parte não teve acesso aos documentos ou quando o juízo deixou de observar o prazo que a própria lei estabelece: nesse caso, há violação direta ao contraditório e à ampla defesa, vício que impõe nulidade (Brasil, 1988, art. 5º, LV). Outra coisa bem diferente é querer relativizar o regime dos prazos peremptórios, cuja função é dar segurança e previsibilidade ao processo. Transformá-los em elásticos é abrir espaço para arbitrariedades, confundindo garantismo com voluntarismo.
A questão torna-se ainda mais grave quando se projeta a consequência prática dessa relativização. Se, no exame de preliminar, admite-se que prazos processuais peremptórios possam ser flexibilizados sob o argumento de que a defesa não teve tempo suficiente para analisar documentos, então se abre uma porta perigosa para a desigualdade processual. Afinal, em caso de condenação, cada réu certamente interporá sua própria apelação, com páginas e páginas de razões, recheadas de preliminares e teses de mérito.
Pergunta-se: ao Ministério Público também será concedida a relativização do prazo para apresentar contrarrazões a dezenas de recursos autônomos, elaborados por diferentes advogados, com estratégias diversas? Evidente que não. A experiência demonstra que, em tais hipóteses, a rigidez dos prazos volta a ser invocada, e o MP terá de se desdobrar para responder, dentro do tempo legal, a todas as insurgências defensivas.
Esse paradoxo revela que a relativização, em verdade, não decorre de uma teoria processual consistente, mas de uma decisão casuística, orientada pelo resultado. A lei, que deveria ser parâmetro de igualdade entre as partes, converte-se em instrumento de assimetria, aplicada ora de modo rígido, ora de modo flexível, conforme a conveniência do momento. E aqui reside o perigo: se a lei não é critério uniforme, mas recurso retórico para legitimar decisões previamente tomadas, retorna-se ao dilema shakespeariano de Ângelo, o juiz que, para justificar-se, ora se faz servo da lei, ora seu senhor absoluto.
Aos juízes, como lembra Ronald Dworkin (2002), incumbe o dever de coerência e integridade na aplicação do Direito. Isso significa que não podem decidir de modo fragmentado ou casuístico, escolhendo ora o legalismo estrito, ora o voluntarismo, conforme o resultado previamente desejado. A integridade exige que o Direito seja visto como um sistema de princípios, aplicados de maneira uniforme, e não como um arsenal retórico para legitimar decisões contraditórias.
Nesse sentido, a relativização dos prazos processuais em prol de argumentos levantados pelas defesas dos réus do golpe de Estado afronta diretamente esse dever de integridade. Mais grave ainda: os réus desse caso, em sua maioria, foram defendidos por advogados de renome, bem remunerados e com amplas equipes de apoio técnico-jurídico, plenamente capazes de analisar a documentação dentro do prazo legal.
Pergunta-se: e quanto aos demais réus, em milhares de processos espalhados pelo país, representados por defensores públicos sobrecarregados ou advogados sem equipe que os dê suporte? Também a estes se aplicará a mesma relativização? Ou a exceção foi criada apenas porque se tratava de réus de alta visibilidade, com capacidade de mobilizar discursos mais sofisticados em sua defesa?
Se a resposta for negativa, fica evidente a quebra da igualdade processual. Se for positiva, cria-se um precedente perigoso que transforma a peremptoriedade dos prazos em ficção. Em ambos os casos, resta violada a exigência de coerência e integridade: a decisão deixa de ser universalizável e passa a ser casuística, atendendo ao contexto específico, mas sem correspondência em uma prática judicial isonômica.
Assim, a metáfora shakespeariana se completa: tal como Ângelo em Medida por Medida, o julgador ora se apresenta como escravo da lei, ora como seu senhor absoluto. E, ao agir assim, renuncia à sua função de intérprete responsável, desrespeitando não apenas a letra do Direito, mas os princípios que lhe dão unidade e legitimidade.
Conclui-se, portanto, que, o ministro Fux, pelas razões expostas, aparenta encarnar a figura do juiz Ângelo, alternando entre o legalismo e o voluntarismo e, ademais, sem um critério rígido de julgamento, valendo-se de um mix teórico e heurístico que, em vez de oferecer integridade e coerência, fragiliza a legitimidade da decisão.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 10 set. 2025.
BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em: 10 set. 2025.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
OSBORNE, David. Discovery Abuse and Document Dumps in Common Law. Oregon State Bar Bulletin, Portland, v. 71, n. 8, p. 32-35, 2011.
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida. Tradução de Bárbara Heliodora. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.