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Limites da interpretação subjetiva da súmula 73/TSE

Análise crítica sobre a interpretação da súmula 73/TSE e os riscos de subjetividade no julgamento de ações envolvendo cotas de gênero.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Atualizado em 11 de setembro de 2025 13:17

A participação feminina na política tem sido objeto de constante debate e aprimoramento legislativo-eleitoral na última década, como forma de combater a histórica sub-representação das mulheres nos espaços de poder. As ações afirmativas, como a reserva de candidaturas por gênero, assumem papel central no fortalecimento da democracia e na promoção da igualdade material entre os gêneros.

Foi nesse cenário que o TSE, em maio de 2024, editou o enunciado da súmula 73 que diz: 

A fraude à cota de gênero, consistente no que diz respeito ao percentual mínimo de 30% de candidaturas femininas, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, configura-se com a presença de um ou alguns dos seguintes elementos, quando os fatos e as circunstâncias do caso concreto assim permitirem concluir: 1) votação zerada ou inexpressiva; 2) prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de movimentação financeira relevante; e 3) ausência de atos efetivos de campanha, divulgação ou promoção da candidatura de terceiros.

O entendimento sumular surge como um importante instrumento de combate às fraudes à cota de gênero, ao consolidar o entendimento de que a utilização de candidaturas fictícias, com o único propósito de atender formalmente ao percentual legal, pode acarretar a invalidação de toda a chapa proporcional. Tal posicionamento reafirma o compromisso da Justiça Eleitoral com a integridade do processo democrático e com a efetividade das normas voltadas à inclusão.  

Desde então, têm sido frequentes os desafios encontrados pelas Cortes Regionais Eleitorais ao sopesar as graves repercussões decorrentes da procedência de AIJE - ações de investigação judicial eleitoral e de AIME - ações de impugnação de mandato eletivo que envolvam essa temática. De um lado, impõe-se a observância ao postulado in dubio pro sufragio, segundo o qual a manifestação do voto popular deve ser prioritariamente tutelada pela Justiça Eleitoral (RE 060.203.374, ministro Tarcísio Vieira de Carvalho Neto) versus a imperiosa necessidade de desestimular fraudes que, além de ilegais, enfraquecem a própria lógica das ações afirmativas. 

Tais desafios, apesar do altivo escopo da súmula, advêm de inquietantes (e cada vez mais criativas!) situações que abrem grande margem subjetiva da sua aplicação, ou não. É nesse panorama que se insere o presente artigo, amparado na brecha contida no seu próprio texto, ao dispor que a fraude à cota de gênero restará configurada "quando os fatos e as circunstâncias do caso concreto assim permitirem concluir". Quais são os limites da análise dessas circunstâncias?

Não há resposta exata para essa pergunta. Nem se, por exemplo - e não raro de acontecer -, a candidata tenha tido votação e prestação de contas zeradas, bem como atos de campanha inexistentes. Claro, num primeiro olhar, nos pareceria uma verdadeira aberração qualquer decisão que entenda por aplicar as sanções previstas no art. 8º, § 5º, da resolução TSE 23.735/24, o qual prevê que: 

a fraude à cota de gênero acarreta a cassação do diploma de todas as candidatas eleitas e de todos os candidatos eleitos, a invalidação da lista de candidaturas do partido ou da federação que dela tenha se valido e a anulação dos votos nominais e de legenda, com as consequências previstas no caput do art. 224 do Código Eleitoral.

Isso porque, com base nos "fatos e as circunstâncias do caso concreto", ainda dentro do exemplo citado, é possível constatar que aquela mesma candidata, embora escolhida em convenção partidária, possa ter sido vítima de violência doméstica, acometida por transtornos psíquicos ou doenças que a impeçam de realizar atos efetivos de campanha, seja antes ou após o prazo de substituição de candidatos. Nessas hipóteses, a controvérsia em torno de sua candidatura e do DRAP a ela vinculada torna-se de complexa resolução. 

Ao magistrado eleitoral, cabe a análise pormenorizada dos autos, sobretudo da instrução probatória, em todos os seus aspectos, para compreender se aquela(s) circunstância(s) tem o condão de "permitir" a ausência de atos de campanha e todos os predicados previstos no texto da súmula. 

Para além disso, entendemos que o juízo deve se socorrer aos princípios que norteiam os institutos aqui envolvidos, além da LINDB - Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, a fim de minorar as margens subjetivas e proferir o que Rodrigo López Zílio chama "decisão judicial em conformidade democrática". Para que isso ocorra, sobretudo nas decisões de cassação de mandato, é imprescindível a presença indissociável do quadrinômio: "coerência, integridade, fundamentação e responsabilidade política" (Zílio, 2020, p. 121).

De forma análoga, a expressão "fatos e as circunstâncias do caso concreto" se encaixam no que a doutrina chamou de conceitos jurídicos indeterminados. A estes conceitos, é dada ao magistrado a tarefa de "preencher os claros" ou de "cobrir os espaços em branco", conforme lecionou José Carlos Barbosa Moreira (BARBOSA MOREIRA, 1980, p. 64, apud COAN, 363, disponível em 06.08.25 em https://es.mpsp.mp.br/revista_justitia/index.php/Justitia/article/view/18/18). 

A primeira premissa deste julgador é compreender que em decisões desse gênero será, em regra, de caráter contramajoritário "porquanto se trata de ato judicial desconstitutivo de um mandato representativo nas urnas" (Zílio, 2020, p. 106). Partindo desse pressuposto, a cognição do juiz passa a equilibrar com menos dificuldade a balança do in dubio pro sufrágio versus a desestimulação de fraudes e, portanto, o combate à histórica sub-representação das mulheres nos espaços de poder o que, ao nosso sentir, parece ser, de fato, a essência do enunciado da súmula 73-TSE.

A partir da LINDB, aprendemos que em casos de omissões legislativas, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito e, principalmente, atenderá aos FINS SOCIAIS a que ela se dirige, na exegese dos arts. 4º1 e 5º2. Ora, os fins sociais dessa "lacuna sumular" nada mais são do que a efetividade da participação feminina na política e a proteção da isonomia e da representatividade democrática, o que, em última análise, estão submergidas na própria integridade e legitimidade do processo eleitoral.

Considerando a máxima de que o processo não é um fim em si mesmo, mas um instrumento para concretizar valores constitucionais e produzir resultados socialmente relevantes, nas decisões dessa espécie, como discorre Frederico Alvim (2019, p. 365) hão de ser verificadas "(i) as espécies de impactos ou reações provocadas e (ii) o terreno onde esses ou essas aportam, assim como (iii) os valores jurídicos que atingem e (iv) o respectivo grau de afetação".

A presença de termo jurídico indeterminado no enunciado sumular em debate, portanto, não confere ao magistrado eleitoral "carta branca" para decidir segundo suas convicções pessoais, sob pena de subverter a própria finalidade que orientou sua criação. 

Em última análise, isso configuraria uma forma de abuso do direito - e dever - de julgar, afastando a atividade jurisdicional da citada decisão judicial em conformidade democrática, comprometendo a constitucionalidade do pleito. Nas palavras de Rodrigo Lopez Zílio (Zílio, 2020, 174), "mesmo que esses conceitos jurídicos apresentem uma textura aberta, sua exegese depende de uma metodologia comprometida não apenas com os limites semânticos, mas também pelos princípios que lhe conferem sentido".

Ora, se o enunciado da súmula surgiu para conferir maior legitimidade ao pleito eleitoral, em consonância com a interpretação teleológica da CF/88, a atividade subjetiva do julgador - necessária para suprir a lacuna deixada pelo TSE - deve ser guiada pela mesma força motriz que inspirou a sua criação. 

Ressalte-se que tal lacuna não decorre de falha do TSE, mas da impossibilidade de atribuir objetividade absoluta a um enunciado sumular, sob pena de engessar o processo eleitoral e desconsiderar as particularidades de cada caso concreto - e aqui deve residir a extrema responsabilidade do magistrado. 

Dessa forma, por entendermos que o verdadeiro sentido do enunciado da súmula reside nos fins sociais que motivaram sua criação (e que remanescem), é que defendemos que, ao magistrado eleitoral - embora reconheçamos a árdua missão em ponderar bens jurídicos de grande relevância, ao se deparar com provas concretas da incidência do enunciado da súmula 73 - cabe considerar "os fatos e circunstâncias" sob a perspectiva do desestímulo às fraudes e não sob uma inversão de lógica que pressuponha, como regra, a inexistência da fraude.

______________

1 Art. 4o. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

2 Art. 5o. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Lucas Ribeiro

Lucas Ribeiro

Advogado e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP. Especialista em Direito Público e Municipal pela Universidade Católica do Salvador. Especialista em Direito Eleitoral pela PUC/Minas Gerais. Presta assessoria jurídica a Prefeituras, Câmara de Vereadores e perante os Tribunais de Contas da União, Estado da Bahia e Municípios. Juiz no Tribunal Disciplinar da CONMEBOL (2023-2027).

Leonardo David

Leonardo David

Advogado. Especialista em Direito Eleitoral pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Direito Penal pela PUC/Minas Gerais. Procurador do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD).

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