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A inteligência artificial e a oportunidade de devolver humanidade à justiça

IA automatiza tarefas repetitivas no Direito e pode libertar o humano da burocracia, permitindo que a justiça recupere sua dimensão verdadeiramente humana.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Atualizado às 09:08

Em algum momento, passamos a acreditar que fazer justiça era produzir documentos. Petições, sentenças, acórdãos: textos numerados, carimbados e empilhados. Como se o ofício da justiça fosse se resumindo a papéis cada vez mais sofisticados, enquanto o encontro humano se perdia pelo caminho. A justiça se confundiu com a estatística, com o fluxo de peças, com a engrenagem da burocracia. Mas justiça não nasce do papel. Justiça é presença. Justiça é sentir.

Não é coincidência que estudos internacionais indiquem que cerca de 40% das tarefas repetitivas do setor jurídico já podem ser automatizadas por inteligência artificial. Essa revolução tecnológica está batendo à porta dos escritórios brasileiros e exige reflexão. A tecnologia não está eliminando a advocacia, mas sim transformando a maneira como os serviços jurídicos são prestados. Por isso, é fundamental entender que a IA está longe de substituir o trabalho do advogado. Ela altera a forma de atuação, mas não elimina a necessidade de interpretação, argumentação e aconselhamento jurídico humano.

É aqui que surge a provocação: a inteligência artificial, tantas vezes acusada de desumanizar o direito, talvez seja justamente a grande oportunidade de reumanizá-lo. Hoje, ferramentas como o ChatGPT são capazes de redigir contratos, elaborar petições e até simular respostas para o Exame de Ordem. Em segundos, basta pedir a minuta de um contrato de locação e ela aparece pronta na tela. Prático? Sim. Assustador? Também. Mas, mais do que ameaça, trata-se de uma chance de libertação.

Ao assumir tarefas repetitivas, como pesquisas em bancos de dados, redação inicial de minutas ou organização de precedentes, a inteligência artificial nos devolve aquilo que é insubstituivelmente humano: tempo, energia e a possibilidade de reencontrar o outro em sua inteireza. Não é por acaso que escritórios que já utilizam ferramentas de automação contratual conseguem reduzir em até 50% o tempo gasto na elaboração de contratos, sem abrir mão de precisão e clareza. A máquina pode produzir o papel, mas só o humano pode produzir o encontro.

Esse movimento, no entanto, não é isento de riscos. Casos recentes chamaram atenção no Brasil. Em Juazeiro, na Bahia, uma advogada foi multada em dez salários mínimos após apresentar petição com jurisprudências inventadas e dispositivos inexistentes, todos gerados por IA. Em Londrina, no Paraná, um advogado foi penalizado em 20 salários mínimos pelo mesmo motivo. E em Santa Catarina, outro profissional admitiu ter usado o ChatGPT em recurso que citava precedentes falsos, também sendo multado. Esses exemplos revelam que o problema não está na tecnologia em si, mas na forma de utilização e na ausência de supervisão crítica.

Durante décadas, profissionais do direito foram treinados a acreditar que sua relevância estava em redigir peças irretocáveis, sentenças exaustivas, acórdãos detalhados. Mas documentos são registros, não essência. A essência da justiça é a experiência de quem a atravessa: ser ouvido, respeitado e reconhecido. E é exatamente nesse ponto que a IA pode nos ajudar a resgatar o sentido profundo da atividade jurídica.

Fazer justiça é provocar um intercâmbio de sentimentos e sensações. É traduzir a dor em escuta, a escuta em compreensão e a compreensão em decisão que devolve dignidade. Esse é um processo humano por excelência, e é nele que a advocacia e a magistratura encontram sua razão de existir. A inteligência artificial não ameaça isso. Ao contrário: pode libertar-nos da armadilha histórica de confundir burocracia com justiça. Ao automatizar aquilo que é repetição mecânica, abre espaço para que reassumamos o que é insubstituível.

O perigo está em repetir velhas lógicas. Se usarmos a IA apenas para acelerar o que já está errado, corremos o risco de criar decisões ainda mais padronizadas, mais distantes da experiência humana, e transformarmos o julgamento em linha de montagem. Mas esse não é um destino inevitável. É uma escolha cultural, que depende da forma como a comunidade jurídica decide incorporar a tecnologia.

Se tivermos coragem de inverter a lógica, poderemos viver uma revolução silenciosa. A justiça deixará de ser percebida apenas como a soma de atos processuais e voltará a ser vivida como presença. Não mais como acúmulo de papéis, mas como espaço de encontro entre sujeitos que compartilham dores, expectativas e esperanças.

O inesperado, portanto, é que a inteligência artificial pode ser o antídoto contra a desumanização da justiça. Não por acrescentar mais técnica, mas por libertar o humano da repetição e devolvê-lo ao que é essencial. O desafio não está na máquina, mas na nossa coragem de olhar para ela como aliada.

Fazer justiça, afinal, nunca foi escrever papéis. Fazer justiça é devolver humanidade. E talvez seja hora de assumir sem medo: se quisermos reumanizar a justiça, precisamos de mais inteligência artificial, não menos. A verdadeira provocação é esta: se a tecnologia já consegue escrever como nós, estamos prontos para voltar a sentir como humanos?

Márcio Melo Nogueira

Márcio Melo Nogueira

Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Rondônia (OAB/RO). Certificado em negociação e liderança pela Harvard Law School Executive Education; gestão de empresas de serviços profissionais pela Harvard Business School; formação executiva pela Singularity University.

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