Creches: Direito negado e desigualdade perpetuada no Brasil
Desigualdade no acesso a creches revela violação de direitos, limita famílias e compromete o desenvolvimento integral das crianças mais pobres.
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
Atualizado às 09:16
Matérias recentes apontam dados alarmantes: cada vez mais crianças em situação de vulnerabilidade social enfrentam dificuldades para acessar creches. Em 2024, segundo levantamentos 60% das crianças das famílias mais ricas do país estavam matriculadas em creches, enquanto entre as famílias mais pobres esse percentual era de apenas 30,6%.
A principal razão para essa disparidade está na localização das unidades de educação infantil. Crianças de bairros periféricos e marginalizados têm mais dificuldade de chegar às creches que, em grande parte, estão concentradas em regiões centrais.
Esse cenário revela que a desigualdade social ainda é um fator determinante para a violação de direitos infantojuvenis assegurados pelo ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente. O art. 227 da Constituição Federal, assim como o art. 4º do ECA, estabelecem que é dever da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos de crianças e adolescentes, entre eles o direito à educação e à profissionalização.
Além disso, o art. 53, incisos I e V, do ECA, garante às crianças e adolescentes educação voltada para o pleno desenvolvimento da pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola. Também prevê o acesso à escola pública e gratuita próxima à residência, bem como a matrícula de irmãos na mesma instituição, quando estiverem na mesma etapa ou ciclo de ensino.
O resultado é alarmante. A dificuldade de acesso a vagas em creches impacta não apenas a infância, mas toda a dinâmica social. Famílias, especialmente mães e avós, que em geral assumem o cuidado das crianças, veem seu acesso ao mercado de trabalho limitado. Crianças privadas desse espaço de aprendizado, por sua vez, têm seu desenvolvimento socioemocional e cognitivo prejudicado, comprometendo o direito ao desenvolvimento integral, à profissionalização e à dignidade.
Trata-se de um ciclo de desigualdade retratado na literatura brasileira, por exemplo, na obra Capitães de Areia, de Jorge Amado, que já em 1937 denunciava a marginalização da infância pobre e a violência do Estado contra os mais vulneráveis.
A solução para essa realidade não necessariamente exige novas leis, mas sim a efetivação das que já existem, principalmente o maior marco legal de proteção à infância: o ECA. É imprescindível a união de esforços entre sociedade, famílias, Conselhos Tutelares, Defensoria Pública e Ministério Público, com apoio e capacitação realizada pelo Estado, para transformar normas e políticas em ações concretas. Somente assim será possível garantir que todas as crianças tenham um começo de vida justo e igualitário.
Executivo, Judiciário, Conselhos Tutelares, Defensoria Pública e Ministério Público têm instrumentos para exigir que políticas públicas saiam do papel. Mas é preciso mais: vontade política, investimento e mobilização social.
Neste sentido, destaca-se o exemplo de articulação entre esses atores que é o GTIEI. O GTIEI - Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre Educação Infantil surgiu em São Paulo por volta de 2012 para enfrentar o déficit histórico de vagas em creche e pré-escola. Reúne atores do sistema de Justiça (Ministério Público - GEDUC, Defensoria Pública), organizações da sociedade civil (Ação Educativa, Rede Nossa São Paulo, entre outras) e advogados com atuação estratégica em direitos sociais. Desde 2014, o GTIEI integra o Comitê de Assessoramento à CIJ - Coordenadoria da Infância e Juventude do TJ/SP, atuando no monitoramento e na construção de soluções estruturais (e não apenas caso a caso).
Com subsídios do GTIEI, o TJ/SP alterou o padrão de decisões em 2013: em vez de ordens individuais para matricular uma criança específica, passou a determinar a apresentação e execução de um plano de expansão de vagas pelo Executivo municipal - um marco para litígios de natureza estrutural em direitos sociais.
Todavia, no caso da cidade de São Paulo, a criação de mais de 100 mil vagas de creche nos últimos 10 anos demonstra que é preciso avançar mais na avaliação de sua qualidade e disponibilidade para inclusão efetiva da população mais pobre e vulnerável, com estratégias de enfrentamento para o déficit acima apontado.
Enquanto a creche for privilégio e não direito efetivo, o Brasil seguirá comprometendo o futuro de milhões de crianças - e, com ele, o seu próprio.
Guilherme Amorim Campos da Silva
Sócio de Rubens Naves Santos Jr. Advogados; Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP.
Ana Paula de Assis Matias
Sócia do escritório Rubens Naves Santos Jr Advogados. Atua na área de Contencioso Administrativo.