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Ação penal. Estelionato contra pessoa com deficiência

A nova lei 15.229, de 2/10/25 modifica ação penal do crime de estelionato quando praticado contra pessoa com deficiência.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Atualizado às 13:08

Introdução

Entrou em vigor, em 3/10/25, a lei 15.229, de 2/10/25, que altera o CP brasileiro para prever que o crime de estelionato cometido contra pessoa com deficiência será processado mediante ação penal pública incondicionada.

O estelionato, previsto no art. 171 do CP, consiste em obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.

A pena cominada é de reclusão de um a cinco anos e multa, com agravantes e causas especiais de aumento, como nos casos em que a vítima é idosa ou vulnerável, conforme introduzido pela lei 14.155/21.

Com a nova legislação, o Estado passa a agir de ofício em defesa das pessoas com deficiência, afastando-se a necessidade de representação da vítima. Essa mudança consolida um avanço na proteção penal da vulnerabilidade, ampliando a atuação da Polícia Civil e do Ministério Público na repressão de fraudes que exploram a fragilidade física, mental ou social de cidadãos com deficiência.

Trata-se de um passo expressivo rumo à Justiça inclusiva, reafirmando o compromisso do Brasil com os tratados internacionais de proteção à pessoa com deficiência e com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Análise contextual do tema

A lei 15.229/25 tem origem no PL 3.114/23, que tramitou sob forte apoio de entidades voltadas à inclusão social e de organizações que defendem os direitos das pessoas com deficiência.

A nova norma surge em um contexto em que a criminalidade digital e financeira tem se sofisticado, aproveitando-se, muitas vezes, da inocência, confiança ou fragilidade cognitiva de pessoas com deficiência - seja nas relações presenciais, seja nos ambientes virtuais.

Antes da alteração, o crime de estelionato, via de regra, dependia de representação da vítima para que o Estado pudesse agir. Esse modelo, embora justificado sob o prisma da política criminal liberal, revelava-se ineficaz e injusto quando a vítima era uma pessoa com deficiência, frequentemente sem condições cognitivas, físicas ou emocionais de formalizar a representação.

Com a nova lei, o estelionato praticado contra pessoa com deficiência passa a ser de ação penal pública incondicionada, o que significa que o Estado - por meio da Polícia Judiciária e do Ministério Público - pode instaurar inquérito e oferecer denúncia independentemente da vontade da vítima ou de seu representante legal.

Essa alteração legislativa reforça o dever estatal de tutela ativa, concretizando o disposto no art. 227 da CF/88, que impõe ao Estado o dever de assegurar a dignidade e a proteção de todos os vulneráveis, inclusive pessoas com deficiência.

Do ponto de vista dogmático, a mudança também reafirma a função social do Direito Penal, que deve proteger, prioritariamente, bens jurídicos de alto valor constitucional - neste caso, a dignidade humana e a autodeterminação da pessoa com deficiência.

A lei também se harmoniza com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/15), que assegura o direito à igualdade de oportunidades, à acessibilidade e à proteção contra qualquer forma de abuso, violência ou exploração.

Internacionalmente, o Brasil reafirma, com tal norma, seu compromisso com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), promulgada pelo decreto 6.949/09, que impõe aos Estados-partes o dever de garantir plena proteção jurídica às pessoas com deficiência contra a exploração e a fraude em qualquer esfera da vida civil.

Reflexões finais

Destarte, a sanção da lei 15.229/25 não é apenas uma atualização normativa - é um ato de justiça social e humanitária.

Ela simboliza a vitória da ética sobre o oportunismo, da inclusão sobre a indiferença, da dignidade sobre a fraude.

O legislador brasileiro, atento à realidade de um mundo cada vez mais digital e desigual, reafirma que a vulnerabilidade não pode ser explorada como atalho para o crime, mas deve ser protegida como patrimônio da humanidade.

A Polícia Civil, em sua missão constitucional de investigar com técnica e sensibilidade, ganha com esta norma mais uma ferramenta de ação legítima e autônoma em defesa dos mais frágeis.

O Ministério Público, por sua vez, fortalece sua atuação como guardião da ordem jurídica e dos direitos humanos.

Em suma, a nova lei eleva o patamar civilizatório do Direito Penal brasileiro, reafirmando o princípio da dignidade da pessoa humana e o compromisso do Estado com uma Justiça acessível, protetiva e inclusiva.

Que esta norma inspire não apenas repressão ao crime, mas também respeito, empatia e solidariedade para com aqueles que lutam diariamente contra as barreiras impostas pela deficiência e pela indiferença social.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).

BRASIL. Lei nº 14.155, de 27 de maio de 2021. Altera o Código Penal e a Lei de Lavagem de Dinheiro, tratando de fraudes eletrônicas e estelionato contra vulneráveis.

BRASIL. Lei nº 15.229, de 2 de outubro de 2025. Altera o Código Penal para prever ação penal pública incondicionada em caso de estelionato contra pessoa com deficiência.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova York, 2006). Promulgada no Brasil pelo Decreto nº 6.949/2009.

BRASIL. Estatuto da Pessoa com Deficiência: Comentado. Brasília: Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2015.

Jeferson Botelho

VIP Jeferson Botelho

Delegado Geral aposentado da PCMG; prof. de Direito Penal e Processo Penal; autor de obras jurídicas; advogado em Minas Gerais. Jurista. Mestre em Ciência das Religiões - Faculdade Unida Vitória/ES;

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