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Reparadora pós bariátrica após a decisão do STF

O peso da burocracia: quando o STF impõe barreiras ao paciente bariátrico.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Atualizado às 15:06

A decisão do STF na ADI 7.295 reacendeu um debate essencial no Direito da Saúde: até que ponto a técnica pode se sobrepor à vida? Sob o argumento da segurança jurídica, o STF impôs restrições que, na prática, distanciam o cidadão do tratamento médico que lhe é prescrito - sobretudo o paciente bariátrico, que após vencer a obesidade passa a enfrentar outro inimigo: a burocracia.

A cirurgia reparadora pós-bariátrica não é luxo, nem vaidade. É continuidade terapêutica, parte integrante do tratamento da obesidade mórbida, doença reconhecida pela CID - Classificação Internacional de Doenças código E66. A perda expressiva de peso traz consequências físicas sérias - excesso de pele, infecções, dores, dificuldade de locomoção e abalos psicológicos. O bisturi reparador, nesse contexto, é instrumento de saúde, dignidade e reintegração social.

Por isso, quando o STJ firmou a tese do Tema repetitivo 1.069, reconhecendo o caráter reparador e funcional dessas cirurgias e determinando sua cobertura obrigatória pelos planos de saúde, a decisão foi celebrada como um marco civilizatório. O STJ, de forma coerente com a Constituição e com o CDC, enxergou o paciente como sujeito de direitos, não como número de contrato.

Mas a esperança foi ofuscada por um novo capítulo: o julgamento da ADI 7.295 pelo STF. A Corte, embora tenha mantido a constitucionalidade da lei 14.454/22 - que tornava o rol da ANS exemplificativo -, criou um filtro de difícil superação. Agora, para que um tratamento fora do rol seja coberto, o paciente precisa cumprir cinco requisitos cumulativos: 1) prescrição médica; 2) ausência de alternativa terapêutica; 3) comprovação científica de eficácia; 4) registro na Anvisa e; 5) inexistência de negativa expressa da própria ANS.

O que parece um cuidado técnico, na realidade, é uma barreira quase intransponível. A decisão transfere ao paciente o ônus de provar o próprio direito - justamente quando ele mais precisa de amparo. O resultado é um sistema em que a doença avança mais rápido que o processo, e a dignidade fica presa em meio a protocolos administrativos.

O impacto foi imediato: planos de saúde começaram a invocar a ADI 7.295 para negar cirurgias reparadoras pós-bariátricas, alegando ausência de algum requisito - mesmo quando há prescrição médica e respaldo científico. A justificativa burocrática substitui o olhar humano. A toga pesa mais que o bisturi.

Essa postura esvazia o espírito constitucional do art. 196 da Constituição Federal, que consagra a saúde como direito de todos e dever do Estado. Mais que isso, contradiz o próprio STJ, que no Tema 1.069 reafirmou que a cirurgia reparadora é desdobramento necessário da bariátrica e, portanto, de cobertura obrigatória. A decisão do STF, ao se distanciar desse entendimento, fragiliza a efetividade do direito à saúde e enfraquece a proteção do consumidor - pilares que sustentam o sistema de saúde suplementar.

Entre a promessa de universalidade e a prática da restrição, quem sofre é o paciente. Aquele que venceu a obesidade e busca se reconstruir encontra agora uma nova forma de exclusão: a jurídica. O bisturi que deveria reparar o corpo precisa primeiro vencer o labirinto normativo da ADI 7.295.

Em tempos em que o Direito da Saúde se vê desafiado pelo tecnicismo, cabe aos operadores do direito - advogados, magistrados e estudiosos - resgatar o sentido humano da lei. O direito à saúde não é uma equação administrativa, é uma garantia existencial. Negar o tratamento é negar a vida.

A cirurgia reparadora pós-bariátrica é mais que um procedimento médico: é um símbolo de recomeço. E o Estado, em sua função constitucional, deve assegurar que nenhuma decisão transforme a dignidade em requisito.

Vanessa Patrícia da Silva

VIP Vanessa Patrícia da Silva

Advogada do paciente. Especialista em direito da saúde e médico. Planos de saúde e SUS. Defendo pacientes para que tenham acesso ao tratamento digno e humanizado. Advocacia há 20 anos.

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