É constitucional "anistiar" o "8 de janeiro" via abolitio criminis?
Autores discutem a inconstitucionalidade da 'abolitio criminis' seletiva de crimes contra o Estado Democrático de Direito com desvio teleológico do instituto.
quinta-feira, 23 de outubro de 2025
Atualizado às 15:00
Passados dois anos, os desdobramentos dos eventos de "08 de janeiro" parecem estar longe do fim. A invasão e depredação das sedes dos Três Poderes da República transcenderam a categoria de um mero ilícito penal e representaram um ponto de inflexão na recente história republicana brasileira inaugurada em 1988.
A resposta institucional do Estado brasileiro foi imediata e enérgica, como um imperativo de defesa da própria sobrevivência do Estado de Direito, tendo avançado, no final do mês de setembro deste ano, ao estágio mais decisivo com a condenação de membros do que se convencionou chamar de 'núcleo central' da trama golpista, incluindo um ex-presidente da República e generais de alta patente.
Como já era previsto, paralelamente um movimento contraposto começou a se articular na arena política defendendo soluções legislativas que estancassem a responsabilização criminal. A primeira e mais explícita dessas tentativas materializou-se em propostas de anistia, que, por sua natureza frontal e pelo alto custo político, encontraram forte resistência e, até o momento, não lograram êxito em sua tramitação.
Ante o fracasso da anistia direta, a estratégia legislativa se disfarçou, adotando uma roupagem mais técnica, menos explícita e, em tese, mais palatável. Em substituição à anistia ampla, surgem agora articulações para a propositura de alterações pontuais na legislação penal por meio de abolitio criminis seletiva para alguns dos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Tal proposta, embora formalmente distinta da anistia, converge para o mesmo resultado de neutralização da responsabilização penal daqueles acusados por atentar contra a democracia.
Esse novo cenário desperta questionamentos sobre a legitimidade e a constitucionalidade de tais manobras. De um lado, reconhece-se a prerrogativa do Parlamento, como representante da vontade popular, para criar e extinguir tipos penais de acordo com os bens jurídicos eleitos como merecedores de tutela, em conformidade com o princípio da legalidade. De outro lado, porém, a supremacia da Constituição parece impor balizas a essa atividade, vedando que o poder legiferante seja exercido de forma a subverter os valores, os princípios e a estrutura fundamental que ela mesma estabelece.
Diante disso, nos interessa perquirir se pode o Poder Legislativo, no exercício de sua autonomia para legislar em matéria penal, promover a abolitio criminis de tipos penais que tutelam o próprio Estado Democrático de Direito, quando tal ato é motivado por objetivos casuísticos de beneficiar um grupo político específico.
A abolitio criminis tem natureza jurídica de causa extintiva da punibilidade (art. 107, III, do CP). Ocorre quando uma lei nova deixa de considerar criminoso um comportamento anteriormente catalogado como ilícito penal. Parte-se do pressuposto de que o Estado, acolhendo os batimentos sociais, não ostenta mais interesse na punição dos autores da conduta excluída do rol de tipos penais. Historicamente, seu objetivo é garantir a adaptação da legislação penal às transformações axiológicas promovidas no seio social, isto é, às novas necessidades sociais, políticas e culturais, adequando o Direito Penal à realidade cotidiana.
Assim é que, ao longo da história, determinadas condutas foram criminalizadas e, posteriormente, consideradas socialmente irrelevantes para o Direito Penal. A abolitio criminis reflete, pois, uma mudança de valores, que, a propósito, não acontece da noite para o dia, sendo resultado de um (longo) processo histórico-cultural de reavaliação sobre o que é digno de tutela penal.
Pois bem. O Congresso Nacional, captando a necessidade social de uma proteção mais ostensiva da democracia, editou a lei 14.197/21, que acrescentou ao CP os crimes contra o Estado Democrático de Direito. De lá para cá, não nos parece ter havido qualquer transformação social que justificasse uma urgente e pontual eliminação desses tipos penais, especialmente se considerarmos que, ao contrário, os atos antidemocráticos em comento realçam a necessidade de uma tutela eficiente do Estado de Direito.
As articulações pela abolitio criminis representam, neste caso, a antítese do processo histórico-sociológico de descriminalização, pois não se originam de uma reavaliação axiológica da conduta pela sociedade. Aliás, a percepção coletiva, manifestada em pesquisas de opinião e atos públicos, é a de que tais condutas representam grave atentado à ordem constitucional1. O clamor social, então, não caminha na direção da descriminalização, mas sim na da responsabilização penal.
Sabe-se que a finalidade do poder de legislar em matéria penal é a proteção de bens jurídicos e a adequação do sistema à realidade social (interesse público), e não a de servir como escudo para a impunidade de aliados políticos (interesses particularíssimos). Não desconsideramos que o Direito Penal, em um Estado que se pretenda Democrático e de Direito, deve orientar-se por princípios limitadores da ânsia punitiva, dentre os quais se destacam a fragmentariedade e a subsidiariedade. Quer-se dizer que o aparato penal não é, nem pode ser, instrumento de regulação social onipresente, mas sim a última trincheira do ordenamento jurídico, a ser mobilizada somente quando os demais ramos do Direito se mostrarem insuficientes para garantir a paz social. 2-3
Então, a justificação da existência de um tipo penal reside precisamente na importância do bem jurídico que ele se propõe a tutelar. Se a razão de ser do Direito Penal é a proteção dos valores essenciais à coexistência social, qual seria o bem jurídico mais caro a uma comunidade politicamente organizada sob a égide de uma Constituição? A resposta é inequívoca. É o próprio Estado Democrático de Direito condição de possibilidade de todos os demais. É o arcabouço institucional, o pressuposto lógico e o alicerce político que garante a vigência e a eficácia de todos os outros direitos e garantias fundamentais.
Nesse exato ponto, a proposta de abolitio criminis para as condutas que atentam contra a democracia revela uma contradição. Se a função precípua e a única justificativa legítima para o Direito Penal é a tutela dos bens jurídicos essenciais, a eliminação da proteção penal ao bem jurídico que fundamenta todos os outros representa uma autonegação do próprio sistema. Seria o equivalente a utilizar as ferramentas da engenharia para demolir as vigas de sustentação do edifício que se pretende habitar. Dito de outro modo, a supressão da tutela penal sobre o Estado Democrático de Direito inverte a lógica da fragmentariedade, pois, ao invés reservar o Direito Penal para o que é mais importante, a proposta o retira justamente do campo onde sua presença é mais indispensável e legítima.
Joaquim José Gomes Canotilho, responsável pela sistematização do "princípio da proibição do retrocesso social", sustenta que, uma vez obtido um determinado grau de realização de direitos sociais e econômicos, estes passam a constituir, a um só tempo, garantia institucional e direito subjetivo. O reconhecimento dessa proteção constitui limite jurídico à atividade legislativa, porquanto a liberdade de conformação do legislador nas leis sociais nunca pode afirmar-se sem reservas, devendo as eventuais alterações dessas leis observar os princípios do Estado de Direito vinculativos da atividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos sociais4. Significa dizer que o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado através de medidas legislativas deve ser considerado constitucionalmente garantido, de tal modo que quaisquer medidas legislativas que, sem a criação de alternativas ou compensações, representem a revogação pura e simples desse núcleo essencial, devem ser declaradas inconstitucionais, sob pena de enfraquecer a força normativa da Constituição.5
Com o princípio da vedação ao retrocesso pretende-se que o legislador, no exercício de seu mister, considere o objetivo de não suprimir, ao menos de modo desproporcional ou irrazoável, o grau de densidade normativa que os direitos fundamentais sociais já houverem alcançado. Pretende-se assim impedir o retrocesso a uma situação já superada, mais distante do ideal que a existente6. Fundamentalmente porque esse princípio contém "um núcleo de elementos que se fundamentam na dignidade humana e no princípio democrático, que não podem ser eliminados"7.
A manobra legislativa ainda configura o que a doutrina do Direito Público denomina "desvio de finalidade" ou "desvio de poder"8. Embora o conceito seja mais comumente aplicado aos atos da Administração, sua matriz teórica é transponível para a análise da atividade legislativa, onde a lei, embora seguindo o rito formal de sua criação, é editada para alcançar um fim diverso daquele para o qual a competência normativa foi conferida.
A esse respeito, Pedro Serrano pontua que "nas leis individuais, é dever da Jurisdição verificar a existência dos motivos alegados pelo legislador em sua motivação, bem como a relação causal entre motivo e conteúdo prescritivo da lei diante de sua finalidade"9, defendendo que é cabível o controle da compatibilidade entre os fins da lei e o interesse público, justamente para que ela seja invalidada quando o legislador buscar beneficiar indevidamente alguém.
Além disso, a proposta afronta os princípios da moralidade e impessoalidade, os quais, embora topograficamente situados no art. 37 da CF/88, no capítulo da Administração Pública, irradiam seus efeitos por toda a atividade estatal. Não se tratam de meras regras de gestão administrativa; são pilares do próprio ideal republicano que repudia o privilégio, o personalismo e a utilização da coisa pública para a satisfação de interesses privados.
A pretensão rompe com essa exigência, já que tratar-se-ia de uma "lei com nome e sobrenome"10, cujos beneficiários são perfeitamente conhecidos e a finalidade, ao contrário de estabelecer uma nova valoração social sobre uma conduta genérica, é resolver a situação jurídico-penal de um grupo politicamente alinhado aos seus proponentes.
Antes que se suscite o argumento derradeiro, fundado no princípio democrático e na separação dos Poderes, de que o Parlamento seria soberano para decidir sobre a política criminal do país, é preciso recordar que poder constituinte e poder constituído não se confundem. O único poder verdadeiramente soberano e politicamente ilimitado é o poder constituinte originário, que instaura uma nova ordem jurídica, enquanto os constituídos são criados pela Constituição e justamente por ela limitados.
Portanto, não se trata de uma atividade de soberania, mas sim um ato de subversão que extrapola os limites do poder constituído. Por essas razões, qualquer proposta legislativa nesse sentido deve ser considerada uma "lei natimorta", ainda que não se ignore que sua proposição, mesmo fadada ao insucesso, tem um objetivo político subjacente de tensionar a relação entre os Poderes e seguir na estratégia de desgaste da legitimidade do STF, que seria, ao final, como dito por Rui Barbosa, a autoridade extrema para errar em último lugar ao realizar o necessário filtro constitucional.
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1 GENIAL INVESTIMENTOS. Pesquisa e avaliação do governo Lula. Genial Q&A Estimativas: SET25. São Paulo: Genial Investimentos, set. 2025. 12 p. Disponível em: https://media-blog.genialinvestimentos.com.br/wp-content/uploads/2025/09/16193344/GENIALQUAESTNACSET25.pdf. Acesso em 17/09/2025.
2 TAVARES, Juarez. Crime: crença e realidade. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2025.
3 ZAFARONI, Raul Eugenio. Colonização punitiva e totalitarismo financeiro: a criminologia do ser-aqui. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2021.
4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. p. 339.
5 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991. p. 19.
6 DERBLI DE CARVALHO BAPTISTA, Felipe. O princípio da proibição do retrocesso social na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 201.
7 VALADÉS, Diego (org.). Conversas acadêmicas com Peter Häberle; traduzido, do espanhol, por Carlos dos Santos Almeida. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 42.
8 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 35. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2021.
9 SERRANO, Pedro Estevam A. P. O desvio de poder na função legislativa. São Paulo: FTD, 1997, p. 138.
10 LEA, Saul Tourinho. Leis políticas casuísticas nos EUA e no Brasil. Revista Consultor Jurídico. Disponível em:





