O acórdão 546/23 e o papel do TCU no combate aos desastres
O TCU inaugurou uma nova etapa de atuação com o acórdão 546/23, que reposicionou o controle externo como instrumento de prevenção e precaução de desastres e indução de políticas climáticas.
sexta-feira, 24 de outubro de 2025
Atualizado às 14:28
O avanço da crise climática1 deixou de ser apenas um tema ambiental para se tornar um problema de governança pública, de finanças e de controle. As enchentes, secas e deslizamentos que se repetem em todo o país desafiam não apenas a capacidade de resposta do Estado, mas também o modo como se fiscaliza o gasto público e se planeja o futuro. Nesse cenário, o TCU - Tribunal de Contas da União vem assumindo papel estratégico no controle climático e ambiental, inaugurando uma nova etapa de atuação marcada pelo acórdão 546/23, que reposiciona o controle externo como instrumento de prevenção e precaução de desastres e de indução de políticas climáticas.
A CF/88, ao dispor nos arts. 70 e 71, que o TCU auxilia o Congresso Nacional no controle externo, legitimou o órgão a zelar pela boa e regular aplicação dos recursos públicos. Contudo, em tempos de emergência climática, esse dever deve ser reinterpretado à luz de uma nova lógica pública, que é a responsabilidade climática e ambiental da administração. O meio ambiente equilibrado, consagrado no caput do art. 225 como "bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida", integra o patrimônio público e, portanto, está sujeito ao controle das Cortes de Contas. A responsabilidade das Cortes de Contas em matéria climática emana diretamente do mencionado dispositivo, que atribui ao Poder Público o dever de resguardar o meio ambiente para as gerações presentes e vindouras.
Essa incumbência, especialmente em um contexto de crise climática, aplica-se a todas as entidades federativas, poderes constituídos e órgãos da Administração Pública. Além disso, é importante salientar que um direito fundamental de matriz climática vem ganhando cada vez mais espaço, que pode retirado diretamente do citado art. 225, como o direito à segurança climática ou à estabilidade climática2. Isso implica dizer que o dever climático já está implícito nas atribuições tradicionais da Corte de Contas. A missão de auditar as dimensões contábil, financeira, orçamentária e patrimonial, e de zelar pela legalidade, legitimidade, economicidade e eficiência na supervisão de todos que administram obrigações em nome do Estado, naturalmente engloba a análise dos riscos e impactos climáticos. Portanto, devem prestar contas todos aqueles que utilizem, arrecadem, guardem, gerenciem ou administrem bens e valores públicos Federais, incluindo-se programas e projetos que impactem ou que possam impactar direta ou indiretamente a variável ambiental e climática.
Em meados da década de 1990, o TCU passou a construir de maneira gradual e consistente a sua atuação em matéria ambiental, tendo a auditoria operacional e o acompanhamento operacional como vetores de transformação. Desde então, o órgão ganhou expertise e se tornou referência em matéria de controle externo ambiental, influenciando positivamente a atuação das Cortes de Conta estaduais e municipais, que passaram a atuar na área cada vez mais. Entretanto, a obrigação climática específica do TCU saltou aos olhos logo após o STF julgar a ADPF 708, em 2022, determinando que o Executivo não poderia restringir as verbas do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) haja vista a obrigação constitucional de se proteger o clima. Conforme o voto do ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, "trata-se do principal instrumento federal voltado ao custeio do combate às mudanças climáticas e ao cumprimento das metas de redução de emissão de gases de efeito estufa", não havendo mais dúvidas de que a inércia climática deve ser repelida.
Nesse diapasão, em 2023, o TCU decidiu analisar, no âmbito do processo TC 021.701/23-73, o qual teve como relator o ministro Vital do Rêgo Filho, a política climática brasileira, uma vez que a não ação nessa matéria pode gerar sérios e irreversíveis prejuízos ao Estado, à sociedade e aos serviços públicos de modo geral. Segundo o art. 1º, II do regimento interno, a competência do órgão abrange "realizar, por iniciativa própria ou por solicitação do Congresso Nacional, de suas casas ou das suas respectivas comissões, auditorias, inspeções ou acompanhamentos de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário e demais órgãos e entidades sujeitos à sua jurisdição". Importante lembrar que o país assumiu o desafio de enfrentar o problema quando instituiu a lei 12.187/09 (PNMC - Política Nacional sobre Mudança do Clima), quando ratificou o Acordo de Paris4 e quando estipulou as suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC - Nationally Determined Contribution5, na sigla em inglês). Vale mencionar que na sua atual NDC, o Estado brasileiro se compromete em alcançar a neutralidade climática até 2050, afora outras metas secundárias de mitigação de gases de efeito estufa.
Oriundo de um relatório de acompanhamento operacional, o acórdão 546/23 é fruto desse amadurecimento institucional, uma vez que a questão climática passou a ser enfocada a partir do viés de combate aos desastres. Ao consolidar a jurisprudência do TCU sobre fiscalização de desempenho na gestão de riscos, o julgado identificou falhas sistêmicas na SEDEC - Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil na resposta a desastres. Esse é o órgão Federal que coordena as ações de proteção e defesa civil no país, pois integra o SINPDEC - Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, coordenando a atuação Federal, estadual e municipal com vistas a reduzir riscos e desastres.
O acórdão 546/23 expôs três fragilidades estruturais: i) a burocracia intempestiva do S2iD, que atrasava o reconhecimento Federal de emergências e a liberação de recursos, ii) o alcance reduzido da plataforma Idap, que fragilizava a difusão tempestiva de alertas à população e iii) e as falhas de governança intersetorial, que dificultavam a coordenação das ações entre os diferentes órgãos do SINPDEC. O ponto nevrálgico revelado pela auditoria é o desequilíbrio estrutural na alocação de recursos Federais, pois se investe muito mais em resposta do que em prevenção, o que destoa da lógica do Direito Ambiental e Climático. Essa incongruência é inaceitável sob qualquer aspecto, seja econômico, social ou ambiental e climático, revelando uma mácula que deixa a população desprotegida e compromete ainda mais as finanças públicas. Ao diagnosticar esse desequilíbrio, o TCU transforma o "custo da inação" em indicador de má gestão, exigindo do Estado investimentos tempestivos e planejados em obras preventivas e planos de contingência. Isso é crucial para induzir a gestão pública no caminho do planejamento de ações preventivas. É importante frisar que o novo PNPDEC - Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil exige mais investimento em prevenção, o que demanda responsabilidade e agilidade na implementação dessas ações.
As lições do acórdão 546/23 foram decisivas para a resposta institucional à catástrofe climática que assolou o Rio Grande do Sul em 2024. Diante da gravidade da situação, o TCU lançou o programa Recupera Rio Grande do Sul, replicando o modelo de fiscalização em tempo real utilizado durante a pandemia da Covid-19. Sob a coordenação de ministros específicos, a Corte acompanhou de forma imediata contratações, obras e repasses, destravando recursos e garantindo segurança jurídica aos gestores. Essa sistemática fortalece a Administração, prevenindo desvios e superfaturamentos e sem abrir mão da celeridade necessária em momentos de emergência ou de calamidade pública. O volume de recursos foi alto, chegando a quase 43 bilhões de reais, sendo 95% executados pela União e 5% repassados aos Estados. Desse total mais da metade já pagos e a outra porção emprenhados. Em sessão do dia 13/8/25, o TCU aprovou a prestação de contas.
A auditoria fiscalizou o uso dos recursos destinados à gestão de riscos e de desastres (pagos e transferidos desde 2015) e constatou que os gastos com a resposta (socorro, reconstrução, indenizações) são consistentemente e anualmente superiores aos gastos com a prevenção e mitigação de riscos. Sob a perspectiva da economicidade, eficiência e moralidade, a falta de investimento adequado em prevenção demonstra um equívoco fiscal estrutural injustificável. A negligência em obras preventivas e planejamento resulta em perdas humanas e materiais incalculáveis, exigindo posteriormente dispêndios emergenciais muito mais volumosos. Mais do que diagnosticar, o TCU atuou como indutor de modernização, recomendando a simplificação do S2iD, a adoção de ferramentas digitais ágeis de comunicação (como aplicativos de mensagem e redes sociais) e a integração das políticas de defesa civil com a PNMC e a PNMA - Política Nacional do Meio Ambiente.
A inação não se justifica diante de uma série de eventos que já são previsíveis e que podem ter seus efeitos mitigados, ou até mesmo evitados, caso sejam feitos investimentos prévios. A diligência do gestor público não pode ser tida como algo discricionário, pois é uma obrigação constitucional e legal. A despeito disso, o quadro 1 demonstra a pouca importância orçamentária que se tem dado à prevenção, situação essa que fica cada vez mais difícil diante do aumento exponencial das emendas parlamentares, que sufocam o poder de atuação da Administração Pública. Essa negligência tem um custo, uma vez que os prejuízos entre 2012 e 2024 somam quase 500 bilhões de reais, sendo 425 bilhões de prejuízos privados e 47 bilhões de prejuízo público6. Isso significa que é muito mais barato prevenir do que apenas remediar com ações reativas e restauradoras.
Quadro 1 - recorte temporal da importância do investimento feito em prevenção aos desastres7
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ANO BASE |
PERCENTUAL DO ORÇAMENTO (%) |
VALOR (R$) |
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2018 |
0,06 |
1,3 BI |
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2019 |
0,34 |
626 MILHÕES |
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2020 |
0,05 |
1,5 BI |
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2021 |
0,04 |
1 BI |
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2022 |
0,06 |
1,4 BI |
O desafio que se impõe é transformar essa experiência em política institucional de longo prazo. O futuro do controle ambiental e climático do TCU passa por aprofundar a fiscalização de fundos climáticos, incorporar a contabilidade ambiental como ferramenta de accountability e acompanhar de perto os grandes projetos de infraestrutura e desenvolvimento sob a ótica da mitigação e adaptação climática, inclusive no que diz respeito ao licenciamento ambiental e aos demais instrumentos da PNMA. O Tribunal sinaliza que continuará a acompanhar de perto instrumentos como o Fundo Clima, o Plano Clima, o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA) e o PNPDEC, preparando-se, inclusive, para contribuir com o monitoramento do desempenho do Brasil em eventos internacionais como a COP30.
O dever de zelar pela boa aplicação dos recursos públicos deve hoje ser lido à luz de um processo de mudanças climáticas, no qual a omissão ou a má gestão se traduzem em passivos ambientais e fiscais de alta magnitude. O controle climático é tendência mundial, com enfoque em climate mainstreaming, que é a transversalização da agenda climática em todas as agendas públicas. As três fragilidades diagnosticadas pelo acórdão (S2iD, Idap e governança intersetorial) são mais problemas de integração federativa e tecnológica do que propriamente de gestão administrativa. Isso explica por que o TCU adotou uma postura pedagógica e de indução de comportamentos ao invés de tentar penalizar o gestor. É a logicidade do processo estrutural aplicada ao controle externo, uma vez que o foco é corrigir as falhas sistêmicas.
O acórdão 546/23, ao evidenciar que a ineficácia das políticas de prevenção e resposta gera custos fiscais e sociais inaceitáveis, inaugura uma nova etapa na relação entre controle externo e governança ambiental. Ao adotar um controle preditivo, ativo e em tempo real, a Corte se afirma como guardiã da responsabilidade fiscal e socioambiental, contribuindo assim para uma gestão pública mais sustentável. O controle externo deve ser um aliado estratégico diante intensificação dos desastres socioambientais e da emergência climática, fenômeno esse que, infelizmente, é uma realidade.
Esses são alguns esforços importantes que estão sendo implementados. Para além desses, os Tribunais de Contas brasileiros, capitaneados pelo TCU, projetaram o Painel Clima Brasil, sistema esse que permite um monitoramento periódico, objetivo e sistemático das políticas voltadas para o enfrentamento da crise climática. Esse painel faz parte de uma iniciativa de acompanhar as políticas relacionadas com a mitigação e a adaptação climática e o financiamento climático. Isso funciona como grande ferramenta para o fortalecimento da transparência e da capacidade institucional da gestão pública e sua forma de lidar com os desafios climáticos. O TCU age para além de uma competência meramente técnica, uma vez que atua liderando um movimento nacional em torno das mudanças climáticas a partir de um movimento internacional, pois preside a INTOSAI - Organização Internacional de Instituições Superiores de Controle, que é o ClimateScanner, que foi criado em 2022 justamente para avaliar as ações dos governos que se relacionam ao assunto.
Essas experiências demonstram que o controle externo não é apenas um fiscal das contas públicas, mas um agente de transformação da governança climática. A auditoria ambiental e climática deve ser vista como instrumento de justiça intergeracional, pois zela pela sustentabilidade das finanças e pela segurança das futuras gerações. O controle climático é, portanto, uma dimensão incontornável da boa administração pública. O acórdão 546/23 marca a consagração do perfil das Cortes de Contas como guardiãs da racionalidade ecológica e fiscal do Estado brasileiro. Em um tempo em que os desastres começam a se tornar rotina e o clima se transformou em variável de risco sistêmico, o controle externo deixa de ser apenas um mecanismo de verificação e passa a ser uma ferramenta de proteção da economia, das políticas públicas, do Estado e da própria continuidade da vida humana no planeta.
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1 Expressão que designa o agravamento das mudanças climáticas e seus efeitos e a insuficiência das respostas políticas e institucionais.
2 As PECs 37/2021 e 233/2019 pretendem inserir na Constituição Federal a segurança climática como direito fundamental e princípio da ordem econômica.
3 https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-vai-analisar-a-atuacao-brasileira-na-crise-climatica-mundial
4 Tratado internacional no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, que estabelece objetivos de limitação do aquecimento global e compromissos de neutralidade de carbono.
5 NDC são as metas nacionais voluntárias de mitigação e adaptação apresentadas pelos países signatários do Acordo de Paris.
6 https://atlasdigital.mdr.gov.br/paginas/graficos.xhtml
7 Fonte: Portal da Transparência.




