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Seguro garantia e recuperação judicial: O conflito jurisprudencial entre TST e STJ

O artigo analisa divergência TST/STJ sobre seguro garantia, defendendo execução trabalhista autônoma e preservação do crédito alimentar.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Atualizado às 13:59

1. Introdução

Desde sua consolidação pela reforma trabalhista como substitutivo legal ao depósito recursal, o seguro garantia judicial tornou-se recurso essencial para a saúde financeira das empresas, permitindo a discussão judicial sem o impacto de uma descapitalização imediata para a corporação e mantendo a finalidade precípua da garantia do juízo. Contudo, sua eficácia como mecanismo célere de auxílio à ora reclamada e de garantia do crédito alimentar, encontra-se em xeque diante de recente divergência jurisprudencial entre o STJ e o TST.

O presente artigo analisa decisão paradigmática proferida pelo TST no processo 0000429-14.2020.5.10.00171 (acórdão RR de 18/9/25), que determinou a remessa ao juízo universal da recuperação judicial de valores já depositados em juízo pela seguradora, gestora da apólice do seguro garantia, em flagrante divergência com entendimento consolidado do STJ sobre a autonomia do garantidor nos casos aonde o sinistro ocorre antes do deferimento da recuperação judicial que atinge a empresa reclamada.

A tese central defendida neste estudo sustenta que, ocorrido o sinistro, evento (trânsito em julgado) que simplesmente aciona a obrigação contratual da seguradora de efetuar o pagamento contratual, antes do deferimento da recuperação judicial da ora reclamada, a execução da apólice de seguro garantia deve prosseguir na Justiça do Trabalho, pois se volta contra patrimônio de terceiro (seguradora), e não da recuperanda, conforme jurisprudência pacífica do STJ.

2. Natureza jurídica do seguro garantia e seu marco normativo

2.1. A estrutura trilateral e a autonomia obrigacional

O seguro garantia é contrato autônomo, de natureza trilateral, envolvendo: (i) o tomador (empresa executada), (ii) o segurado (credor) e (iii) a seguradora (garantidora). A obrigação da seguradora perante o segurado não se confunde com a obrigação da empresa devedora. Como bem aponta a jurisprudência do STJ, a relação entre a seguradora e o credor "resulta do contrato de seguro firmado", sendo distinta da relação entre o credor e o devedor principal (STJ, CC 161.667/GO)2.

Esta autonomia constitui o núcleo distintivo do instituto abordado. Enquanto no depósito recursal há transferência de ativo do patrimônio da executada para conta judicial, no seguro garantia o que se constitui é uma obrigação contratual a ser cumprida por terceiro, que apenas se materializa em pagamento após a ocorrência do sinistro; conforme traz a circular Susep 662/223

"Art. 21. A seguradora indenizará o segurado ou o beneficiário, até o valor da garantia, mediante:

I - pagamento em dinheiro dos prejuízos, multas e/ou demais valores devidos pelo tomador e garantidos pela apólice em decorrência da inadimplência da obrigação garantida; ou

II - execução da obrigação garantida, de forma a dar continuidade e concluí-la sob a sua integral responsabilidade, nos mesmos termos e condições estabelecidos no objeto principal ou conforme acordado entre segurado e seguradora."

2.2. O tratamento normativo no CPC e na lei de recuperação judicial

O CPC/15, em seu art. 835, § 2º, equipara o seguro garantia a dinheiro para fins de penhora. Essa equivalência, contudo, é funcional, não patrimonial. O valor não constitui ativo da recuperanda, mas obrigação de terceiro que se concretiza com o sinistro.

O STJ já decidiu que o seguro garantia produz "os mesmos efeitos jurídicos que o dinheiro" (STJ, AgInt no REsp 1.915.046/RJ)4, mas essa equiparação visa garantir a liquidez para o credor, não incorporar o valor ao patrimônio do devedor.

Fundamental é o art. 49, § 1º, da lei 11.101/05, que expressamente determina:

"Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

§ 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso."

Este dispositivo constitui a base normativa para a proteção da execução contra garantidores, independentemente da recuperação judicial da devedora principal.

A jurisprudência consolidada do STJ: O marco temporal do sinistro

3.1. O critério objetivo da Corte Superior

O STJ estabeleceu critério objetivo e técnico para resolver o conflito de competência: o marco temporal do sinistro (fato gerador da indenização securitária) como definidor da possibilidade de execução na Justiça do Trabalho (STJ, CC 186.275/)RJ5.

Quando o sinistro ocorre antes do deferimento da recuperação judicial, a execução da apólice é possível e deve prosseguir na Justiça do Trabalho, pois naquele momento o direito do credor se consolidou contra a seguradora, e não mais contra a recuperanda.

3.2. Precedentes específicos

A jurisprudência do STJ não é genérica em se tratando do tema, ao contrário, é específica e reiterada:

a) CC 161.667/GO (Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva)6

Precedente fundamental que estabeleceu: a obrigação da seguradora é autônoma em relação à devedora principal, e o sinistro anterior ao pedido de recuperação consolida o direito do credor contra o garantidor.

b) CC 195.560/DF (Rel. Min. Nancy Andrighi)7

Neste precedente, o STJ foi explícito: "no curso de execução trabalhista, o depósito da indenização (seguro garantia judicial), pela seguradora, somente pode ser exigido na hipótese de o sinistro (trânsito em julgado) ter ocorrido em momento anterior ao pedido de recuperação judicial."

Ao analisar as datas do caso concreto, a ministra Nancy Andrighi confirmou que a decisão do juízo trabalhista estava alinhada ao entendimento da Corte Superior.

c) CC 197.221/DF8

Neste julgado, o STJ ratificou a competência da Justiça do Trabalho para o próprio processo 0000429-14.2020.5.10.0017 ora analisado, revogando liminar que havia suspendido a execução.

d) Súmula 581/STJ

"A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória."

3.3. A ratio decidendi: Proteção do credor e neutralidade patrimonial

O fundamento do STJ repousa em dois pilares:

Primeiro: A execução do seguro contra a seguradora não atinge o patrimônio da recuperanda. O valor pago provém dos recursos da garantidora, preservando intactos os ativos que serão partilhados entre os credores no plano de recuperação.

Segundo: Após pagar o credor, a seguradora se sub-roga no crédito (art. 786 do CC)9, passando a ser a nova credora no juízo universal. O passivo total da recuperação não sofre alteração; apenas ocorre substituição subjetiva do credor. Logo, não há violação da par conditio creditorum, pois o montante total devido permanece inalterado.

4. A jurisprudência divergente do TST

4.1. A decisão paradigmática no caso concreto

No processo 0000429-14.2020.5.10.0017, o contexto fático era inequívoco:

  • Sinistro (conforme apólice, no trânsito em julgado): 18 de fevereiro de 2022;
  • Deferimento da recuperação judicial: 2 de dezembro de 2022;
  • Valores já depositados pela seguradora em conta judicial.

Apesar de o crédito estar liquidado, os valores garantidos e depositados, e o STJ ter confirmado a competência trabalhista (CC 197.221/DF), o TST (5ª turma), em acórdão de 18/9/25, deu provimento ao Recurso de Revista da empresa em recuperação judicial.

O argumento central foi a transcendência política da matéria e alegada violação do art. 5º, LV, da CF/88 (contraditório e ampla defesa).

O TST determinou a disponibilização dos valores ao juízo da recuperação judicial, fundamentando-se na vis attractiva do juízo universal e no princípio da par conditio creditorum.

4.2. A linha jurisprudencial do TST

Esta não é decisão isolada. O TST vem reiteradamente adotando posicionamento que submete ao juízo universal todos os valores constritivos, independentemente de sua origem:

a) TST, RR 15900-71.2002.5.03.0025 (7ª turma, publicado em 16/8/24)10

"A competência da Justiça do Trabalho, em relação aos débitos trabalhistas das empresas em falência ou em recuperação judicial, se limita à definição e quantificação dos direitos dos empregados. Todos os valores arrecadados, inclusive os que se referem a eventuais depósitos recursais, devem ser colocados à disposição do Juízo Universal."

b) TST, Ag-AIRR 20777-40.2020.5.04.0334 (2ª turma, Publicado em 2/7/24)11

A 2ª turma reforçou a tese ao citar jurisprudência da SBDI-2, do STJ e do STF, firmando que "todos os atos de execução referentes às reclamações trabalhistas cuja executada tenha a recuperação judicial declarada somente podem ser executados perante o Juízo Universal, ainda que o depósito/constrição tenha ocorrido em momento anterior à mencionada declaração".

4.3. A premissa equivocada: Seguro garantia como ativo da recuperanda

O ponto central da divergência reside em tratamento equivocado: o TST trata o seguro garantia como ativo da recuperanda.

Esta equiparação ignora que, com a ocorrência do sinistro antes da recuperação judicial, o direito do credor se cristalizou não contra a devedora, mas contra a seguradora. O valor depositado pela seguradora não constitui bem da recuperanda, mas cumprimento de obrigação contratual autônoma, já exigível.

Ao determinar a remessa ao juízo universal, o TST:

  1. Ignora a autonomia obrigacional: O valor depositado não é patrimônio da recuperanda, mas cumprimento de obrigação autônoma da seguradora;
  2. Esvazia a garantia: O credor trabalhista, que obteve confirmação da competência pelo STJ e viu o sinistro concretizar-se antes da recuperação judicial, é forçado a habilitar seu crédito no Juízo Universal, sujeitando-se a plano de pagamento que pode estender-se por anos ou décadas;
  3. Contraria o art. 49, § 1º, da lei 11.101/05: A decisão desconsidera a proteção legal expressa que permite ao credor executar o garantidor independentemente da recuperação do devedor principal.

5. A distinção crucial: Seguro garantia não é depósito recursal

5.1. A falsa analogia com precedentes sobre depósitos

A linha argumentativa que sustenta a jurisprudência do TST busca aplicar ao seguro garantia o mesmo entendimento legislativo conferido ao depósito recursal em dinheiro. A tese ampara-se em precedentes como o ROT-6613-33.2019.5.15.000012, no qual a SBDI-2 decidiu que a liberação de depósitos recursais, mesmo anteriores à recuperação, deveria ser obstada, com remessa dos valores ao juízo universal.

Esta analogia, embora sedutora em sua simplicidade, é juridicamente inadequada. A aplicação desse entendimento ao seguro garantia representa equívoco metodológico, pois ignora diferenças essenciais entre os institutos.

5.2. As diferenças fundamentais

5.2.1. Origem do valor: Patrimônio próprio vs. obrigação de terceiro

Depósito recursal: Valor que provém diretamente do patrimônio da empresa executada. Constitui ativo da devedora destacado e depositado em conta judicial. Embora indisponível temporariamente, a titularidade do dinheiro permanece da empresa. A proteção desse valor em favor do juízo universal possui lógica interna, alinhada à preservação do patrimônio total a ser partilhado entre credores.

Seguro garantia: Não envolve transferência de qualquer ativo da empresa devedora. Trata-se de contrato autônomo firmado com terceira entidade - a seguradora. O que garante o juízo não é dinheiro da recuperanda, mas promessa de pagamento da seguradora. O valor só ingressa no processo após a ocorrência do sinistro e provém do patrimônio exclusivo da seguradora, não da empresa em recuperação.

5.2.2. Fato gerador: Depósito prévio vs. sinistro contratual

A decisão da SBDI-2 no ROT-6613-33.2019.5.15.0000 justifica-se porque o depósito em dinheiro, sendo patrimônio da empresa, deve sujeitar-se ao regime concursal.

No seguro garantia, a situação é diversa. A obrigação de pagamento da seguradora nasce com o sinistro (trânsito em julgado). Quando o sinistro ocorre antes do deferimento da recuperação judicial, o direito do credor consolida-se contra a seguradora naquele momento. A relação jurídica transforma-se em credor vs. seguradora. A execução, a partir dali, não busca bem da recuperanda, mas cumprimento de obrigação de terceiro solvente.

5.2.3. Impacto no plano de recuperação: Desfalque patrimonial vs. neutralidade

Este é o ponto pragmático que desmonta a analogia.

Liberar o depósito recursal: A Justiça do Trabalho, ao liberar depósito em dinheiro diretamente ao trabalhador, retira ativo do montante que seria administrado pelo juízo universal. Isso compromete a isonomia e pode prejudicar o plano de recuperação.

Executar o seguro garantia: A execução da apólice é patrimonialmente neutra para a massa de credores. A seguradora paga o credor trabalhista (que deixa a fila de credores concursais) e, ato contínuo, sub-roga-se no crédito, passando a ser a nova credora no juízo universal. O passivo da recuperanda não sofre alteração em seu valor; apenas ocorre mudança de titular. Não há qualquer prejuízo ao plano ou aos demais credores.

5.3. Conclusão parcial

A jurisprudência do TST sobre depósitos recursais, embora adequada em sua própria esfera, não pode ser transposta para o seguro garantia. Ao fazê-lo, o Tribunal comete erro de premissa, tratando obrigação de terceiro (seguradora) como se fosse bem da devedora.

6. Análise normativa complementar

6.1. A consolidação dos provimentos da CGJT - Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho

A Consolidação dos Provimentos da CGJT orienta a atuação dos juízes trabalhistas em todo o país. O Art. 124 estabelece que "no caso de execução em desfavor de empresa em recuperação judicial", o juiz do trabalho expedirá Certidão de Habilitação de Crédito.

A expressão-chave é "execução em desfavor de empresa em recuperação judicial". A norma foi concebida para cenário específico: aquele em que o ato executório se volta contra o patrimônio da devedora principal. O objetivo é impedir que a Justiça do Trabalho promova atos de constrição que afetem os ativos da recuperanda.

Intimar a seguradora para que cumpra obrigação prevista na apólice não constitui ato de execução em desfavor da empresa em recuperação. É ato de execução em desfavor de terceiro - a seguradora -, que utiliza seu próprio patrimônio para honrar o contrato de garantia.

A premissa para aplicação do art. 124 simplesmente não está presente. A execução não é "em desfavor" da recuperanda; ela é em favor do credor e em desfavor da garantidora.

6.2. O art. 127 da CGJT: Confirmação da execução contra terceiros

A própria norma da Corregedoria prevê expressamente:

"Art. 127. As disposições desta Seção não se aplicam nos casos em que o magistrado determinar o direcionamento da execução contra sócios ou ex-sócios da executada ou empresa que integre grupo econômico do qual ela faça parte."

Se a norma admite que a execução prossiga na Justiça do Trabalho quando direcionada a outros devedores (sócios, empresas do grupo), por que impediria a execução contra seguradora, que é garantidora contratual ainda mais autônoma e desvinculada do patrimônio da recuperanda?

A lógica do art. 127 é permitir que a execução avance quando seu alvo não é o patrimônio da empresa em recuperação. Esta mesma lógica aplica-se, com maior razão, à execução do seguro garantia. A seguradora não é sócia nem pertence ao grupo econômico; sua responsabilidade é puramente contratual e externa ao passivo da recuperanda.

6.3. O RE 583.955-913  do STF e o falso paralelo

Análise apressada poderia sugerir que a posição do TST está alinhada ao STF, conforme decidido no RE 583.955-9 (Tema 90 de repercussão geral)14, que definiu ser do juízo universal a competência para execução de créditos trabalhistas em face de empresas em recuperação judicial.

6.3.1. Alvo da execução

O cerne da decisão do STF foi a necessidade de proteger o patrimônio da empresa em dificuldade. A controvérsia residia em saber se a Justiça do Trabalho poderia promover atos de constrição diretamente sobre bens e ativos da empresa. A conclusão negativa visava preservar o acervo patrimonial que viabilizaria o plano de soerguimento.

No seguro garantia, a execução da apólice não se volta contra o patrimônio da empresa em recuperação. O alvo é a seguradora, terceiro que assumiu obrigação de pagar o valor garantido. O pagamento pela seguradora não drena o caixa da recuperanda; satisfaz crédito concursal sem consumir recursos destinados aos demais credores.

6.3.2. Natureza da obrigação

O precedente do STF tratava da cobrança da dívida trabalhista originária, devida pela própria empresa. A execução da apólice refere-se à obrigação contratual autônoma e distinta, nascida da relação entre seguradora e segurado (credor trabalhista).

Esta obrigação só se torna exigível com o sinistro. Uma vez ocorrido, o direito do credor consolida-se contra a garantidora. A execução não é mais do crédito trabalhista em si, mas do direito à indenização securitária.

6.3.3. Marco legislativo específico

O ponto decisivo é a existência de norma específica na lei 11.101/05 que não era foco do debate no RE 583.955-9: o art. 49, § 1º, que expressamente protege o direito do credor contra coobrigados e fiadores.

A seguradora, no contrato de seguro garantia, atua como garantidora da obrigação processual. A lei determina que a recuperação judicial da devedora principal não afeta o direito do credor de executar o garantidor.

O Tema 90 de repercussão geral do STF pacificou a competência ao juízo comum falimentar para atos executórios contra a devedora em recuperação judicial. Não se pronunciou, nem poderia, sobre execução de terceiro garantidor, cuja obrigação é autônoma e protegida por dispositivo expresso da lei de recuperação judicial.

7. Consequências práticas da divergência jurisprudencial

A decisão do TST e a linha jurisprudencial que ela representa geram impactos profundos:

7.1. Insegurança para o credor trabalhista

A efetividade do crédito trabalhista (natureza alimentar) é protelada indefinidamente, mesmo quando a empresa ofereceu garantia extrínseca ao seu patrimônio. O trabalhador, que já tinha o dinheiro em conta judicial, volta à fila de credores concursais, com perspectiva incerta de recebimento.

7.2. Desestímulo ao uso do seguro garantia

Se o seguro garantia não oferece segurança de execução célere e autônoma, as seguradoras podem tornar-se mais restritivas na emissão de apólices para empresas em dificuldades financeiras. Alternativamente, os prêmios (custos) podem aumentar significativamente, tornando o instrumento menos acessível. Isso prejudica o objetivo da lei de facilitar a defesa judicial sem comprometer o fluxo de caixa das empresas.

7.3. Conflito institucional

O TST, ao reverter decisão que garantiu o prosseguimento da execução no TRT-10, cria ambiente de incerteza e desconsideração à decisão do STJ que havia explicitamente resolvido o conflito de competência no caso concreto (CC 197.221/DF).

Esta dissonância entre as duas mais altas cortes infraconstitucionais compromete a segurança jurídica e a previsibilidade indispensáveis ao funcionamento adequado do sistema de justiça.

7.4. Esvaziamento do instituto

A crítica estende-se a uma linha jurisprudencial consolidada do TST que, sistematicamente, enfraquece importante instrumento de garantia do processo judicial, com severos prejuízos à celeridade e efetividade do crédito de natureza alimentar.

8. Conclusão

A análise da controvérsia revela desalinhamento significativo entre as duas mais altas cortes infraconstitucionais do país. De um lado, o STJ, como guardião da legislação Federal, adota interpretação técnica e precisa, honrando a autonomia do contrato de seguro garantia e a proteção expressa que a lei 11.101/05 confere ao credor contra o fiador. De outro, o TST, ao priorizar visão expansionista da par conditio creditorum, comete erro de premissa: trata obrigação de terceiro como se fosse patrimônio da recuperanda, esvaziando o instituto da garantia.

Esta dissonância cria cenário de instabilidade jurídica inaceitável. A efetividade de garantia judicial não pode depender da instância em que o último recurso será julgado. O seguro garantia, concebido para trazer celeridade e liquidez, transforma-se em instrumento de risco, e o crédito trabalhista, de natureza alimentar, volta a ser mera expectativa em longa e incerta fila concursal.

O argumento central que sustenta a tese do STJ é irrefutável: quando o sinistro ocorre antes do deferimento da recuperação judicial, o pagamento pela seguradora não afeta o patrimônio da recuperanda e, após a sub-rogação, o passivo total permanece inalterado. Há apenas substituição subjetiva do credor, sem violação da par conditio creditorum.

A uniformização da jurisprudência não é questão de deferência, mas de coerência sistêmica. O TST possui a responsabilidade de realinhar seu entendimento com o norte da segurança jurídica já estabelecido pelo STJ, garantindo que uma "garantia" seja, efetivamente, certeza, e não apenas mais uma etapa na tortuosa jornada do crédito trabalhista.

A proteção do instituto do seguro garantia judicial é fundamental não apenas para a saúde financeira das empresas, mas principalmente para a efetividade dos direitos dos trabalhadores, que não podem permanecer reféns de disputas hermenêuticas quando a lei e a técnica jurídica já oferecem solução clara e equilibrada.

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1 TST - RR 0000429-14.2020.5.10.0017. Ministro Relator: Breno Medeiros. 5ª Turma. Publicado no DJEN em 23/09/2025.  url: https://pje.tst.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/0000429-14.2020.5.10.0017/3#1445d99 

2 CC n. 161.667/GO, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em 26/8/2020, DJe de 31/8/2020. url: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201802741396&dt_publicacao=31/08/2020 

https://www2.susep.gov.br/safe/scripts/bnweb/bnmapi.exe?router=upload/25882 

3 AgInt no REsp n. 1.915.046/RJ, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 28/6/2021, REPDJe de 27/08/2021, DJe de 1/7/2021. url: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202100042537&dt_publicacao=27/08/2021 

4 AgInt no CC n. 186.275/RJ, relator Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 2/5/2023, DJe de 10/5/2023. url: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202200528081&dt_publicacao=10/05/2023 

5 CC n. 161.667/GO, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em 26/8/2020, DJe de 31/8/2020. url: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201802741396&dt_publicacao=31/08/2020 

6 CC n. 195.560, Ministra Nancy Andrighi, DJe de 16/03/2023. url: https://processo.stj.jus.br/processo/monocraticas/decisoes/?num_registro=202300800427&dt_publicacao=16/03/2023 

7 CC n. 197.221, Ministra Nancy Andrighi, DJe de 22/08/2023. url: https://processo.stj.jus.br/processo/dj/documento/mediado/?tipo_documento=documento&componente=MON&sequencial=204404846&num_registro=202301660876&data=20230822 

8 Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano. (Vide Lei nº 15.040, de 2024) Vigência

§ 1º Salvo dolo, a sub-rogação não tem lugar se o dano foi causado pelo cônjuge do segurado, seus descendentes ou ascendentes, consangüíneos ou afins.

§ 2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo.

9 RR-15900-71.2002.5.03.0025, 7ª Turma, Relator Ministro Claudio Mascarenhas Brandao, DEJT 16/08/2024. url: https://jurisprudencia-backend2.tst.jus.br/rest/documentos/e4875f3c8e19ff4990ca240fe223585c 

10 Ag-AIRR-20777-40.2020.5.04.0334, 2ª Turma, Relatora Desembargadora Convocada Margareth Rodrigues Costa, DEJT 02/07/2024. url: jurisprudencia-backend2.tst.jus.br/rest/documentos/85c4a3c2eeadcb488cee510e0dc0652f 

11 ROT-6613-33.2019.5.15.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Douglas Alencar Rodrigues, DEJT 26/02/2021. url: https://jurisprudencia-backend2.tst.jus.br/rest/documentos/9aee4d1efa00d2328240133e1cbb2694 

12 STF. RE 583955, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 28-05-2009, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-162  DIVULG 27-08-2009  PUBLIC 28-08-2009 EMENT VOL-02371-09  PP-01716 RTJ VOL-00212-01 PP-00570. url: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=601787 

14 "Tese: Compete ao juízo comum falimentar processar e julgar a execução dos créditos trabalhistas no caso de empresa em fase de recuperação judicial."

Alexandre Melo

Alexandre Melo

Advogado no escritório Aragão e Tomaz, com mais de 13 anos de experiência no Direito do Trabalho. Especialista em soluções jurídicas empresariais e atuação no contencioso trabalhista, com foco em ética e excelência.

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