A recuperação judicial do produtor rural e a manifestação do Banco do Brasil
Por que a restrição de crédito afronta a lei e os princípios do sistema financeiro nacional.
domingo, 2 de novembro de 2025
Atualizado em 31 de outubro de 2025 13:53
A manifestação do Banco do Brasil no sentido de banir ou restringir o acesso ao crédito rural para produtores que ingressarem em recuperação judicial é juridicamente preocupante e institucionalmente incompatível com a finalidade do sistema financeiro nacional e da própria lei de recuperação e falências.
O Banco do Brasil não atua apenas como instituição privada: ele exerce função pública de fomento, sendo agente executor de políticas agrícolas, com recursos subsidiados pelo Tesouro Nacional e diretrizes fixadas pelo Conselho Monetário Nacional. Assim, sua atuação deve obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade e razoabilidade administrativa, além de observar o dever constitucional de estímulo à atividade econômica e à redução das desigualdades regionais e sociais (CF, art. 170, incisos II e VII).
Quando o Banco do Brasil ameaça impedir o crédito a produtores em recuperação judicial, está, em essência, penalizando o exercício legítimo de um direito previsto em lei. O pedido de recuperação judicial não caracteriza inadimplência moral nem fraude; trata-se de um instituto jurídico reconhecido, destinado a preservar a empresa e sua função social. Recusar crédito em razão disso equivale a discriminar o produtor por recorrer a um mecanismo legal de reorganização, afrontando o princípio da não discriminação e o postulado da boa-fé objetiva, que rege todas as relações econômicas.
Do ponto de vista técnico, a medida não encontra qualquer amparo normativo. A lei 11.101/05 não prevê restrição automática de crédito; tampouco há resolução do CMN ou norma do Banco Central que autorize esse tipo de bloqueio com base apenas na existência de recuperação judicial. A política anunciada pelo Banco do Brasil se traduz, portanto, em um ato unilateral e de natureza política, que extrapola os limites da gestão prudencial do risco e invade o campo da coerção econômica, transformando um instrumento de reestruturação em estigma.
Sob o ponto de vista econômico-jurídico, a posição do Banco do Brasil é contraditória. A recuperação judicial - quando bem estruturada - aumenta a previsibilidade e reduz o risco do crédito, pois submete o devedor a controle judicial, plano de pagamento aprovado por credores e transparência patrimonial. Recusar crédito a esse produtor é desincentivar o comportamento formal e empurrar o setor para renegociações informais, opacas e, muitas vezes, ineficientes.
Além disso, o Banco do Brasil, como principal agente do crédito rural oficial, tem obrigação institucional de fomentar a atividade produtiva, e não de sufocá-la por motivações reputacionais ou políticas. A ameaça de corte de crédito, nesse contexto, pode configurar abuso de posição dominante no mercado de financiamento rural, violando os princípios da livre concorrência e da função social da propriedade.
É necessário compreender que a recuperação judicial não é um privilégio nem um perdão de dívidas: é um processo de reorganização que busca compatibilizar a continuidade produtiva com o pagamento gradual e racional dos credores. Punir o produtor que recorre a esse instituto é punir quem age dentro da lei. O raciocínio é inverso: o produtor que busca o amparo judicial demonstra responsabilidade e intenção de reorganizar-se sob controle estatal, ao passo que aquele que se mantém informal ou inadimplente sem transparência gera risco real ao sistema financeiro.
A manifestação do Banco do Brasil, portanto, não apenas carece de base legal, mas contraria a finalidade pública de sua atuação. Se adotada de modo sistemático, cria precedente perigoso: um sistema bancário que, em vez de participar da recuperação da economia, se recusa a financiar quem busca a própria regularização judicial. Trata-se de um retrocesso institucional, incompatível com o espírito da lei 11.101/05, com os princípios do Sistema Nacional de Crédito Rural e com o papel constitucional de promoção do desenvolvimento equilibrado que se espera de uma instituição pública.
Defender a legitimidade da recuperação judicial do produtor rural, neste cenário, é defender a coerência do Estado de Direito econômico: o direito de reorganizar-se não pode ser punido por aquele que, por dever legal, deveria justamente apoiar o retorno à atividade produtiva


