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Aspectos da impenhorabilidade do bem de família do devedor e a jurisprudência do STJ

Corte Superior pondera moradia e direitos de terceiros em decisões sobre imóveis.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Atualizado em 30 de outubro de 2025 11:30

As discussões que atravessam o tratamento do bem de família do executado não são novas e não são poucas. Vê-se, por exemplo, que tanto a Corte Especial quanto a 2.ª Seção do STJ, ao longo dos últimos anos, têm decidido que: (i) é válida a penhora do bem de família de fiador apontado em contrato de locação de imóvel, seja residencial, seja comercial (Tema repetitivo 1.091); (ii) é ônus do executado provar que a pequena propriedade rural é explorada pela família para fins de reconhecimento de sua impenhorabilidade (Tema repetitivo 1.234); e (iii) a exceção à impenhorabilidade do bem de família nos casos de execução de hipoteca sobre o imóvel, oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar, restringe-se às hipóteses em que a dívida foi constituída em benefício da entidade familiar (Tema repetitivo 1.261).

Na mesma linha, recentemente, foi afetado o REsp 1.740.861/SP, para que a Corte Especial possa revisitar a matéria atinente à penhorabilidade de bem de família suntuoso (no caso concreto, avaliado em valor superior a R$ 6 milhões), a fim de rever a jurisprudência da 3.ª e da 4.ª turmas até então consolidada no sentido de que deve ser reconhecida "[a] impenhorabilidade do bem de família mesmo em imóveis de alto padrão"1. Trata-se de medida importante porque será oportuna a (re)análise acerca do alcance da lei 8.009/1990 a bens luxuosos, considerando que, interpretando-se teleologicamente a normativa, se extrai que o objetivo do legislador foi assegurar o patrimônio mínimo para o exercício dos direitos da personalidade do indivíduo.

Ainda em relação à jurisprudência do STJ sobre as questões várias que orbitam a impenhorabilidade do bem de família do executado, tem-se um acórdão recente, oriundo do julgamento do Resp. 2.175.073/PR pela 3.ª turma, de relatoria da min. Nancy Andrighi, que manteve o posicionamento do TJ/PR para autorizar a indisponibilidade, por meio da CNIB - Central Nacional de Indisponibilidade de Bens, de bem de família cuja impenhorabilidade já havia sido reconhecida.

Segundo constou do voto da relatora, "[a] proteção à moradia e à entidade familiar, conferidas pela Constituição Federal, que determinam sua impenhorabilidade, não são afrontadas pela indisponibilidade via CNIB. Isso porque serão resguardados os direitos de usar e fruir do bem para fins residenciais". E, a título de conclusão, "[n]as execuções civis, a ordem de indisponibilidade por meio da CNIB poderá recair sobre bens de família, pois não impede a lavratura de escritura representativa de negócio jurídico e não afronta a proteção da impenhorabilidade, mas dá ciência da dívida a terceiros, coagindo os devedores ao pagamento".

O trânsito em julgado foi certificado no último dia 9 de outubro.

Da análise do acórdão, tem-se que a autorização da indisponibilidade de imóveis impenhoráveis em razão da natureza de bem de família se apresenta como uma solução importante para proteger o interesse dos credores (também em observância ao art. 797 do CPC) e de terceiros de boa-fé, e, ao mesmo tempo, preservar o posicionamento atual da Corte no que diz respeito à impossibilidade, inclusive, de averbação da penhora na matrícula desses bens, ainda que fiquem inviabilizados os posteriores atos de expropriação2.

A confirmar esse modo de pensar, mesmo antes do julgamento do mencionado REsp 2.175.073/PR já havia expressiva jurisprudência da 3.ª e da 4.ª turmas da Corte Superior no sentido de autorizar a averbação premonitória referida no art. 828 do CPC em matrículas de imóveis reconhecidos como bens de família3, assim como no sentido de autorizar o protesto contra alienação de bens em matrículas de imóveis da mesma natureza4.

Para além de dar conhecimento a terceiros de boa-fé quanto ao fato de que o proprietário de determinado bem é executado em demandas movidas por seus credores, sabe-se que as circunstâncias que autorizam a impenhorabilidade do bem de família, nos termos da lei 8.009/1990, podem ser transitórias e, por isso, têm aptidão para se alterar com o decurso do tempo. É perfeitamente possível, por exemplo, que um imóvel que não conte com qualquer averbação premonitória, de indisponibilidade ou de protesto contra alienação de bens em sua matrícula, seja vendido para a aquisição de outro imóvel, com a mesma finalidade residencial, mas com valor inferior, sem que o credor tenha a oportunidade de penhorar a diferença para fins de satisfação da execução.

Autorizar a indisponibilidade sobre imóveis impenhoráveis - bem como possibilitar a averbação premonitória ou de protesto contra alienação de bens - se revela como medida de ponderação adequada entre o direito fundamental à moradia, consagrado pela lei 8.009/1990 e reafirmado pela jurisprudência do STJ, e a necessidade de garantir transparência e segurança nas relações patrimoniais.

Nesse sentido, a análise da jurisprudência do STJ sobre as questões atinentes à impenhorabilidade do bem de família reflete um esforço apurado do Tribunal para equilibrar valores constitucionais em tensão: de um lado, a tutela da moradia e da dignidade da pessoa humana e, de outro, a efetividade da execução e a proteção dos credores e terceiros de boa-fé. A admissão da indisponibilidade e de outras medidas em relação ao imóvel e a impossibilidade de penhora, nesse contexto, consolida um caminho intermediário que reforça a publicidade sem desfigurar o núcleo essencial do direito à moradia.

_______

1 Nesse sentido: STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 2.738.880/DF, 3.ª T., Rel.: Min. Daniela Teixeira, j. 13.10.2025; STJ, AgInt no AREsp 2.630.097/SP, 4.ª T., Rel.: Min. João Otávio de Noronha, j. 25.08.2025; STJ, REsp n. 2.091.607/DF, 3.ª T., Rel.: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 30.06.2025; STJ, AgInt no AREsp 2.812.969/SP, 4.ª T., Rel.: Marco Buzzi, j. 11.06.2025; STJ, AgInt no AREsp 2.746.874/DF, 3.ª T., Rel.: Min. Moura Ribeiro, j. 31.03.2025; STJ, AgInt no AREsp 2.664.129/DF, 4.ª T., Rel.: Marco Buzzi, j. 09.12.2024.

2 Nesse sentido: STJ, REsp n. 2.184.440/DF, 3.ª T., Rel.: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 09.06.2025.

3 A respeito: STJ, AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.818.295/SP, 4.ª T., Rel.: Min. João Otávio de Noronha, j. 01.09.2025; STJ, AREsp n. 2.854.422/PR, 3.ª T., Rel.: Min. Moura Ribeiro, j. 23.06.2025; STJ, AgInt no AREsp n. 2.668.059/SC, 3.ª T., Rel.: Min. Moura Ribeiro, j. 24.02.2025; STJ, AgInt no REsp n. 2.106.324/PR, 4.ª T., Rel.: Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 08.04.2024.

4 Nesse sentido: STJ, REsp n. 1.236.057/SP, 4.ª T., Rel.: Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 06.04.2021.

 

Nida Saleh Hatoum

Nida Saleh Hatoum

Sócia-diretora da área de Recuperação Estratégica de Crédito Bancário no Escritório Medina Guimarães Advogados. Doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo.

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