A mente não é um teatro: Wittgenstein contra Descartes
Neste artigo eu trato da filosofia da mente em Wittgenstein, a base filosófica da teoria significativa da imputação.
sexta-feira, 31 de outubro de 2025
Atualizado às 13:50
Durante séculos, a filosofia ocidental descreveu a mente como uma entidade interior, privada, inacessível, onde pensamentos e sensações ocorrem em um espaço separado do mundo físico. Essa concepção, profundamente enraizada na metafísica cartesiana, estabeleceu um modelo dualista que separa o corpo e a mente como substâncias distintas, sendo esta última o centro da razão, da vontade e da autoconsciência. René Descartes, ao buscar uma certeza absoluta contra o ceticismo, declarou que o pensamento é o sinal da existência, e com isso fundou uma doutrina que moldou todo o imaginário filosófico e jurídico da modernidade: "cogito, ergo sum". A mente, segundo essa doutrina, seria o palco onde se desenrolam os eventos internos, os chamados estados mentais, acessíveis apenas ao próprio sujeito, mediante introspecção. Essa é a imagem da mente como um teatro privado, e é precisamente essa imagem que Ludwig Wittgenstein se propõe a desmontar.
A doutrina oficial da mente, como será mais tarde chamada por Gilbert Ryle em sua célebre obra The Concept of Mind, repousa sobre quatro pilares descritos com precisão por Tomás Salvador Vives Antón: primeiro, a mente é uma substância espiritual; segundo, seus estados são privados; terceiro, o sujeito tem acesso direto a eles; e quarto, a mente comanda o corpo por meio da vontade. A partir dessa base, estruturou-se a concepção ordinária da ação como um processo composto: um ato volitivo no interior e uma execução física no exterior. Isso criou um paradigma onde a ação penalmente relevante era explicada a partir de elementos internos presumidos, como a intenção, o querer e a previsão. O modelo da imputação penal, nesse contexto, converteu-se num esforço hermenêutico de adivinhação: o julgador deveria interpretar a mente do agente a partir de sinais externos, confiando na ideia de que há um "algo" invisível por trás da conduta.
Wittgenstein não aceita esse ponto de partida. Para ele, não existe uma mente como substância, tampouco há estados mentais concebidos como objetos internos ocultos. A linguagem ordinária já é suficiente para revelar o erro: não dizemos que sentimos uma dor como se estivéssemos reportando um fato oculto, mas simplesmente dizemos que temos dor, e esse enunciado participa de um jogo de linguagem, com regras, contexto, e critérios sociais de reconhecimento. O erro fundamental da filosofia tradicional foi pensar a mente como um repositório interno de objetos acessíveis por introspecção, como se houvesse um inventário privado ao qual só o sujeito tem acesso. Em oposição a isso, Wittgenstein mostra que os conceitos mentais, dor, intenção, lembrança, desejo, não são nomes de entidades internas, mas formas de participação em práticas linguísticas públicas.
Essa crítica ganha força especialmente quando consideramos os efeitos jurídicos da concepção cartesiana. Toda a dogmática penal, até o surgimento da teoria da ação significativa, fundamentou-se na distinção entre fatos e ações, tendo como pano de fundo a separação mente-corpo e a suposição de que o querer mental causa a ação física. A responsabilidade penal foi, durante décadas, construída com base em estados subjetivos presumidos, como o dolo eventual, que jamais podem ser verificados com segurança. Cria-se, assim, uma estrutura de imputação assentada em ficções: o agente teria "assumido o risco" ou "previsto o resultado" em seu foro íntimo, sem qualquer manifestação concreta e objetivamente significativa. Trata-se de uma reconstrução imaginária da mente do outro, sem critérios epistemológicos válidos, e sem garantias jurídicas mínimas.
Wittgenstein rompe com essa estrutura ao afirmar que "não há nada oculto". As sensações não se localizam numa câmara interna inacessível; elas se manifestam no uso da linguagem, nos comportamentos, nas formas de vida. Isso não significa reduzir a mente ao corpo, mas compreender que as expressões psicológicas pertencem a jogos de linguagem públicos. Não é possível, por exemplo, saber se o outro tem uma dor da mesma forma que se sabe da própria, mas é possível compreender, reconhecer e reagir a essa dor porque partilhamos formas de vida comuns. O comportamento não acompanha a dor como se fosse um reflexo; ele a manifesta dentro de um contexto linguístico e normativo compartilhado.
A teoria significativa da imputação bebe dessa fonte. Ela abandona o esforço inútil de reconstruir vontades privadas e centra-se na ação enquanto conduta dotada de sentido no mundo intersubjetivo. O que importa, na imputação penal, não é saber o que se passou na mente do agente, mas se sua conduta expressa, com clareza e objetividade, um compromisso de atuar. Essa mudança de paradigma não apenas fortalece o vínculo entre ação e responsabilidade, mas elimina o arbítrio de presumir intenções sem lastro objetivo. Como afirmou Vives Antón, trata-se de superar os "inverificáveis processos mentais do sistema cartesiano" e reconstruir a dogmática penal a partir de critérios linguísticos, normativos e constitucionais.
A crítica de Wittgenstein à doutrina oficial da mente não é, portanto, um exercício puramente filosófico. Ela tem implicações profundas para o Direito Penal. Quando compreendemos que a mente não é um espaço interior oculto, mas uma forma de descrever certos comportamentos em contextos específicos, nos libertamos da ficção do dolo eventual, da introspecção judicial e das inferências subjetivas que corroem a legalidade. Em seu lugar, ganhamos um modelo técnico e democrático de imputação, ancorado no princípio da significação objetiva da ação.
Este é o primeiro artigo da série Filosofia da Mente em Wittgenstein, a base filosófica da Teoria Significativa da Imputação. No próximo, tratarei da impossibilidade de uma linguagem privada e da crítica radical de Wittgenstein à ideia de que apenas o sujeito pode conhecer suas sensações. Exploraremos, então, os fundamentos filosóficos de uma imputação penal desprovida de mitos introspectivos e assentada na clareza conceitual.
Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).


