Análise crítica sobre o Tema 1.377 do STJ
Análise crítica do Tema 1.377, mostrando que o STJ erra ao tratar o art. 54 como perigo abstrato e ao dispensar perícia, violando o dolo, a prova penal e a racionalidade constitucional da condenação.
quinta-feira, 27 de novembro de 2025
Atualizado às 09:36
I. Introdução
A consolidação jurisprudencial do STJ no Tema Repetitivo 1.377 - segundo o qual a primeira parte do caput do art. 54 da lei 9.605/1998 configura crime formal e de perigo abstrato, prescindindo de prova pericial oficial para a demonstração da periculosidade - representa um dos momentos mais decisivos da dogmática penal ambiental brasileira. A tese, ao dispensar demonstração empírica da efetiva periculosidade da conduta, converte a tipicidade em presunção normativa de perigo e desloca o processo penal para uma lógica que aproxima o juiz do papel de superego moral a que alude Ingeborg Maus, atuando para além da prova, acima da racionalidade e fora dos limites da epistemologia jurídica.
A discussão não é meramente técnica. Ela diz respeito a um dos pilares do direito penal: a distinção entre risco permitido, risco proibido e ausência de risco; a distinção entre dolo e culpa; e a necessidade de que qualquer juízo de responsabilidade criminal seja fundado em fatos (ainda que normativos) empiricamente demonstráveis. Os crimes ambientais, marcados pela complexidade técnico-científica e por uma ecologia de riscos que frequentemente opera na incerteza, exigem ainda mais rigor probatório, não menos. O Direito Penal não pode se apoiar em suposições, projeções abstratas ou incentivos de política pública - e, sobretudo, não pode se confundir com o princípio da precaução, cuja estrutura pertence à gestão administrativa do risco, não à imputação penal.
A seguir, desenvolve-se o argumento em três movimentos: (i) a incompatibilidade estrutural entre o princípio da precaução e a teoria do dolo, tanto em sua formulação clássica quanto na concepção normativa de Ingeborg Puppe; (ii) a impossibilidade de condenação criminal sem demonstração da periculosidade, à luz da epistemologia da prova judicial e da racionalidade probatória exigida pelo standard para além da dúvida razoável; e (iii) a reconstrução crítica do papel judicial, revelando como a tese repetitiva aproxima perigosamente o juiz do superego social descrito por Maus e da sociedade da ansiedade diagnosticada por Byung-Chul Han, deslocando o direito penal para uma produção simbólica de segurança, não para a tutela racional de bens jurídicos.
II. Desenvolvimento
2.1. Princípio da precaução e incompatibilidade estrutural com o dolo (clássico e normativo)
O princípio da precaução, tal como formulado nas Declarações de Estocolmo (1972) e Rio (1992), e consagrado no art. 225 da Constituição Federal, é um instrumento de política pública e de gestão administrativa do risco em situações de incerteza científica. Ele orienta escolhas prévias do Estado diante de riscos potenciais ainda não plenamente cognoscíveis. A prevenção, por sua vez, atua quando o risco já é conhecido e sua potencialidade danosa pode ser aferida com base em dados empíricos seguros. Essa distinção - amplamente trabalhada por Terence Trennepohl - revela que precaução e prevenção possuem estruturas epistêmicas diferentes: a primeira opera sob incerteza; a segunda, sob conhecimento.
No campo penal, porém, o dolo exige precisamente o que a precaução prescinde: representação fática do resultado típico. Na formulação clássica, o dolo é composto pelo conhecimento das circunstâncias do fato e pela vontade dirigida à realização do tipo. Essa estrutura exige que o agente represente o risco com algum grau mínimo de certeza normativa. A precaução, em seu núcleo, trabalha justamente com a ausência de certeza, com a impossibilidade de conhecer o grau de risco ou de estabelecer sua magnitude com base em dados técnicos disponíveis.
A concepção moderna de dolo normativo, desenvolvida por Ingeborg Puppe, acentua ainda mais essa incompatibilidade. Para Puppe, o dolo não é apenas representação psicológica; é um juízo normativo acerca da assunção consciente do risco proibido. O dolo normativo exige que o agente compreenda a relevância jurídico-normativa de sua conduta à luz de um horizonte compartilhado de expectativas. A estrutura do dolo, nesse sentido, pressupõe um tipo penal que se funda em razões normativas ancoradas em fatos empiricamente acessíveis.
É justamente aí que o princípio da precaução se torna absolutamente incompatível com a teoria do delito. Se o risco não é conhecido, cognoscível ou mensurável; se o próprio sistema ambiental reconhece que a precaução opera na incerteza; se o fundamento da precaução é agir mesmo quando não se sabe qual é a magnitude do risco, então não é possível afirmar que o agente representou, assumiu ou aceitou conscientemente um risco típico ambiental. A precaução opera na lacuna epistêmica; o dolo, no preenchimento dessa lacuna. A tentativa de transpor o princípio da precaução para o âmbito penal - especialmente para o art. 54 da Lei 9.605/1998 - produz um curto-circuito dogmático: exige-se responsabilidade dolosa por um risco cuja própria teoria ambiental não sabe identificar.
Há, aqui, afetação de diversas estruturas da teoria do delito: para além da incompatibilidade com o dolo em si, seria impossível a aplicação do erro de tipo, ou de alguns desdobramentos da culpabilidade como a potencial consciência da ilicitude e a impossibilidade de agir de outro modo, se a periculosidade do risco não é sequer conhecida.
Essa inadequação dogmática torna-se ainda mais evidente quando se examina a jurisprudência ambiental. O próprio STJ reconhece que, mesmo no processo civil, a precaução não funciona como substituto de prova. Trata-se de critério de gestão da incerteza, sempre dependente de elementos técnico-científicos mínimos, ainda que parciais. No AREsp 2.353.857/RO, a Corte deixou claro que a atuação judicial orientada pela precaução exige lastro técnico; e que a inversão do ônus da prova repousa sobre a lógica in dubio pro natura. O mesmo raciocínio aparece em precedentes como REsp 1.198.727/MG, REsp 1.367.923/RJ, REsp 1.356.207/SP e AREsp 1.407.773/RJ.
Se mesmo no âmbito civil a precaução não dispensa prova, tampouco colmata lacunas probatórias, muito menos pode justificar condenação penal, cujo standard de prova é significativamente mais elevado e cujo conceito de dolo - clássico ou normativo - exige representação do risco proibido. Converter a precaução em tipicidade penal é substituir o dolo por incerteza e a imputação por mera projeção hipotética. É deslocar o direito penal para um território que lhe é estruturalmente interdito.
2.2. O erro na qualificação dogmática do art. 54 e a exigência epistemológica de demonstração da periculosidade
A fundamentação do Tema Repetitivo 1.377 parte de uma premissa que não resiste ao menor escrutínio dogmático: a de que o art. 54, caput, da Lei 9.605/1998 consubstanciaria um típico crime de perigo abstrato. A afirmação é equivocada por duas razões distintas e cumulativas. A primeira razão é tipológica: o dispositivo não possui a estrutura que a doutrina atribui aos delitos de perigo abstrato. A segunda é epistemológica: mesmo nos verdadeiros crimes de perigo abstrato, a evolução da dogmática e da jurisprudência exige prova da periculosidade, e não sua presunção automática. O STJ, ao cristalizar a tese repetitiva, incorreu simultaneamente nos dois equívocos.
A dogmática clássica estabelece que o crime de perigo abstrato se caracteriza justamente pela ausência de descrição típica de um resultado de perigo. Jorge de Figueiredo Dias formula o conceito com precisão: "nos crimes de perigo abstracto o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição". No mesmo sentido, Claus Roxin afirma: "Delitos de peligro abstracto son aquellos en los que se castiga una conducta típicamente peligrosa como tal, sin que en el caso concreto tenga que haberse producido un resultado de puesta en peligro", destacando que o perigo funciona apenas como "motivo del legislador". Günther Jakobs reforça essa construção ao sustentar que, nos crimes de perigo abstrato, "nem o tipo objetivo, nem o subjetivo referem-se ao dano ou à periclitação concreta do bem: o fundamento da pena é a periculosidade em geral".
A doutrina brasileira repete a mesma ideia. Paulo Queiroz descreve que "o perigo é abstrato ou presumido quando o legislador tipifica a conduta por julgá-la perigosa em si"; Luiz Régis Prado afirma que, nesse modelo, "o perigo constitui unicamente a ratio legis"; René Ariel Dotti reforça que, nos crimes de perigo abstrato, o tipo não descreve a situação perigosa.
Aplicando-se esses parâmetros ao art. 54, caput, a conclusão é inescapável: o dispositivo não é um tipo de perigo abstrato. Sua estrutura exige "causar poluição que possa resultar em danos à saúde humana". Existe, portanto, a previsão expressa de um resultado de perigo - a possibilidade de dano à saúde - o que o afasta por completo da morfologia típica dos crimes de perigo abstrato, que justamente se caracterizam pela inexistência de qualquer elemento de resultado ou de perigo no tipo. A figura legislativa brasileira exige um risco específico, isto é, concreto, ainda que não consumado: é necessário que a poluição criada pelo agente possa produzir dano.
Diversamente do que define o Tema 1.377, não se trata de conduta "perigosa em si", como dirigir sob influência de álcool (CTB, art. 306), mas de um tipo que somente se perfaz mediante demonstração do potencial de dano.
Mas, ainda que o art. 54 pudesse - por hipótese - ser enquadrado como crime de perigo abstrato, a tese repetitiva continuaria equivocada. Isso porque a doutrina contemporânea afastou a compreensão tradicional de que tais delitos dispensariam totalmente a verificação da periculosidade no caso concreto. Desde o X Congresso da Associação Internacional de Direito Penal, na década de 1960, os crimes de perigo abstrato passaram a ser interpretados como hipóteses que exigem, ao menos, a constatação do desvalor da perigosidade, categoria distinta do resultado naturalístico, mas que exige mínima demonstração técnico-normativa da existência de perigo real.
Renato de Mello Jorge Silveira expõe essa evolução: "a antiga generalização de uma conduta perigosa é substituída por certa concretude na apuração efetiva da potencialidade lesiva ao bem jurídico protegido", concluindo que, mesmo sem resultado, deve-se "ter em conta o desvalor da perigosidade objetiva".
Na Alemanha, Urs Kindhäuser adverte que não se pode atribuir "presunções automáticas de perigo" aos delitos abstratos, pois mesmo nesses casos é necessário demonstrar uma "afetação da segurança".
A jurisprudência brasileira já incorpora essa evolução. O STJ exige perícia oficial para comprovar a periculosidade no crime do art. 7º, IX, da lei 8.137/1990, embora também classificado como delito de perigo abstrato: AgRg no REsp 2.049.942/MS; AgRg no RHC 146.246/RS; RHC 60.937/RJ; AgRg no REsp 1.903.043/SC; AgRg no REsp 1.825.020/SC; RHC 105.272/SP; CC 107.342/GO. O STF firmou o mesmo entendimento no HC 90779, reconhecendo que, apesar de tratar-se de crime formal e de perigo abstrato, a periculosidade exige perícia. Essas decisões revelam que o tema repetitivo 1377 criou uma divergência interna na jurisprudência do STJ e do STF sem a apresentação de distinção ou de superação do entendimento anterior. Não há fundamentação qualificada nesse sentido.
Esse ponto conecta-se diretamente à epistemologia da prova judicial. A tradição de Michele Taruffo, Jordi Ferrer-Beltrán, Daniel González Lagier, Perfecto Ibáñez, Danilo Knijnik converge totalmente: não há condenação legítima quando a inferência probatória não alcança um grau de justificação racional mínimo. A prova deve ser relevante, confiável e suficiente. Nada disso está presente quando o risco é presumido e a perícia é dispensada.
A abdicação do conhecimento técnico em favor de documentos unilaterais ou impressões subjetivas do julgador conduz ao fenômeno identificado pela Suprema Corte dos Estados Unidos como junk science nos casos Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals (1993), General Electric v. Joiner (1997) e Kumho Tire v. Carmichael (1999). Daubert estabeleceu critérios objetivos - testabilidade, revisão por pares, taxa de erro, aceitação geral - criados justamente para evitar que decisões judiciais se apoiem em "ciência de baixa qualidade" ou em inferências arbitrárias.
No processo penal brasileiro, os arts. 155 e 156 do CPP, combinados com o art. 473 do CPC (norma de sobre-direito técnico aplicável analogicamente) e a garantia constitucional da motivação, impõem o mesmo rigor. A tese 1.377, ao dispensar a perícia e admitir "qualquer meio de prova idôneo" para comprovar periculosidade, rompe com esse paradigma. Ela autoriza que o julgador substitua conhecimento técnico por intuição pessoal, produzindo uma inferência probatória incompatível com o standard BARD (beyond a reasonable doubt) e com as exigências de racionalidade demonstrativa da sentença penal, as quais, inclusive, foram recentemente reafirmadas por decisão da Corte Cidadã no julgamento da APN 1.074-DF, Rel. Min Nancy Andrighi de 16/10/25.
O resultado é duplamente nocivo: desfigura-se a estrutura normativa do tipo penal e compromete-se a racionalidade epistêmica da condenação. A periculosidade, elemento mínimo para legitimar a intervenção penal em matéria ambiental, torna-se ficção, e o risco - que deveria ser demonstrado - passa a ser pressuposto. É precisamente o oposto do que exige a dogmática contemporânea, a jurisprudência consolidada dos próprios tribunais superiores e a epistemologia da prova judicial.
2.3. A negação da racionalidade penal e o deslocamento simbólico da função jurisdicional
O terceiro pilar da crítica refere-se ao impacto institucional do Tema Repetitivo 1.377. Ao autorizar condenações penais baseadas em projeções abstratas de risco, em documentos não técnicos ou em inferências não validadas, o sistema abandona o modelo de racionalidade penal e adere a uma lógica de segurança simbólica. A decisão judicial passa a funcionar como mecanismo de apaziguamento social: o juiz deixa de atuar como terceiro imparcial limitado pela prova e passa a decidir segundo expectativas morais difusas de proteção ambiental.
Byung-Chul Han, ao descrever a sociedade da ansiedade, aponta para a transformação das instituições em dispositivos de neutralização de medos coletivos. A decisão criminal sem prova da periculosidade insere-se precisamente nesse ambiente: oferece respostas simbólicas à angústia ambiental, mas perde densidade epistêmica. A condenação funciona como narrativa, não como demonstração. Cria-se, portanto, um direito penal ansioso que pune antes do perigo, antes do dolo e antes da represntação.
Esse deslocamento, contudo, não é apenas inadequado - é inconstitucional. O princípio da ofensividade exige demonstração de que a conduta ultrapassou o risco permitido; a culpabilidade exige imputação subjetiva fundada em representação normativa; o contraditório exige que a prova seja acessível à crítica; e a vedação de responsabilidade penal objetiva impede que o risco seja presumido. O Tema 1.377 colide com todas essas garantias.
III. Conclusão
A análise integrada da teoria do delito, da epistemologia da prova e da jurisprudência revela que a tese fixada pelo STJ no Tema Repetitivo 1.377 é incompatível com o Direito Penal constitucional. A transposição do princípio da precaução para o âmbito penal desconfigura o dolo - clássico ou normativo -, compromete a racionalidade probatória e desloca o julgador para uma posição moralizante que lhe é vedada. O Direito Penal não pode punir com base em incertezas, presunções ou projeções abstratas de perigo; tampouco pode abandonar o rigor técnico das perícias oficiais, substituindo-as por documentos unilaterais ou percepções intuitivas.
O meio ambiente merece tutela rigorosa, mas essa tutela não pode ser assegurada por um direito penal de antecipação simbólica. A Constituição exige uma Justiça penal fundada em fatos, ciência, racionalidade e garantias, não em expectativas sociais difusas. Punir sem comprovação da periculosidade é, em última análise, punir sem prova - e punir sem prova é negar o próprio fundamento democrático do poder punitivo. A tese 1.377, portanto, não somente viola a estrutura dogmática dos crimes de perigo, mas compromete a legitimidade epistêmica e constitucional da jurisdição penal.
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