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Órgão de três milhões de euros, cedido pela USP a uma igreja

Universidade investiu milhões em um órgão que nunca instalou e acabou cedendo a uma igreja, revelando falhas de gestão, desvio de finalidade e prejuízo cultural.

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Atualizado às 11:52

Um órgão de tubos, encomendado pela USP, ao fabricante europeu Grenzing, por cerca de três milhões de euros, recebido no final de 2013 e inícios de 2014, ficou encaixotado até 2019, quando foi entregue em comodato por 25 anos renováveis, à Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo, contradizendo o caráter laico das universidades públicas e do Estado brasileiros.

Justificativa

Estando em construção o Centro de Convenções do Campus do Butantã, projetado em 2002 e retomado em 2012: (i) de um lado, dotou-se seu maior auditório, de espaço e acústica condizentes, para receber um grande órgão; e (ii) de outro, encomendou-se a fabricação de órgão, composto por cinco corpos, três mil e quatrocentos tubos de metal, cento e setenta e cinco tubos de madeira, totalizando dezesseis toneladas. No processo interno de aquisição do instrumento, comissão de professores e técnicos havia considerado fundamental essa aquisição para desenvolver musicalmente a universidade, promover repertórios clássicos e inovadores, e enriquecer a pesquisa e produção cultural.

A USP e a música

Desde 1971, a USP oferece ensino superior de música ligado à Escola de Comunicações e Artes (ECA). Possui, também. instituições musicais importantes, como a OSUSP - Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo (1975), a Orquestra de Câmara da ECA/USP- OCAM (1995)  e a USP Filarmônica (2011); além do CORALUSP (1967), formado por doze grupos corais.

Paralização do projeto

O projeto do Centro, com 36.500 m², teve sua construção paralisada em meados de 2014, quando faltava apenas 20% para sua finalização. Por seu turno, em 2017, a USP firmou comodato com a igreja, que, dois anos após, levou as caixas armazenadas que continham o órgão e o montou, como um segundo órgão, pois já possuía outro de menor porte.

Implicações para a igreja

A igreja, embora tenha agido de boa-fé, assumiu, a tarefa de viabilizar atividades acadêmico-culturais laicas; possibilitar o uso do órgão para estudo e treinamento; bem como patrocinar concertos, abertos ao público, com repertório não estritamente litúrgico. Tais contrapartidas devem ser cumpridas, respeitando os princípios administrativos de transparência, fiscalização e uso adequado do patrimônio público.

Implicações para a USP

As falhas da USP são evidentes, parou e manteve paralisadas, até hoje, obras de prédio de grande porte; tendo, na prática, "doado" instrumento necessário e caríssimo, além de acreditar ser possível a utilização do instrumento, por alunos e professores, em local impróprio para estudo e treinamento de obras não litúrgicas, situado a cerca de quinze quilômetros da Cidade Universitária.

A cessão do órgão evidencia falhas na gestão da USP, que manteve, longamente, o bem armazenado, não concluiu o espaço planejado para ele e o transferiu a uma instituição religiosa; desviando-o de sua finalidade, que deveria ser, integralmente, acadêmica e cultural.

Fiscalização

De qualquer modo, a cessão de patrimônio público criou para a USP (e seu Departamento de Música) o dever de orientar e fiscalizar a observância das contrapartidas por parte da Igreja; e para esta o ônus de cumpri-las e de prestar contas. Haverá relatório, ao menos quinquenal emitido pela Igreja e aprovado pela Universidade?

Reflexões

O ocorrido traz à baila:

(i) o sentimento, nada novo, de que as humanidades (incluindo música e artes) não são tratadas convenientemente na USP, mormente quando as gestões reitorais são encabeçadas por representantes das ciências da terra, da saúde e exatas (Nos últimos cinquenta anos, apenas uma gestão, a de 2010/2014, não o foi);

(ii) a afirmação corrente de que as humanidades, por serem desunidas, não conseguem se impor;

(iii) a necessidade de a Procuradoria da USP exarar pareceres conformes com a lei e com a propria convicção; e

(iv) a urgência de a USP valorizar TODAS as áreas do saber, se desejar ser digna do epíteto universidade, que compreende o abarcamento de todos os saberes contidos na sabedoria.

Conclusão

A opereta bufa acima retratada prejudicou os contribuintes paulistas, que viram o investimento público desviado; a imagem da Universidade esmaecida; e a cultura musical, que perdeu o acesso, prestes a ser alcançado, a um instrumento de enorme valor artístico e monetário.

Que os responsáveis pela próxima gestão possam corrigir alguns erros do passado e evitar novos; reforçando a missão de excelência acadêmica e cultural da Universidade.

João Grandino Rodas

João Grandino Rodas

Desembargador federal aposentado do TRF da 3ª região. Mestre em Direito pela Harvard University. Presidente do CEDES - Centro de Estudos de Direito Econômico e Social. Sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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