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Ação, mente e responsabilidade: Filosofia da linguagem e imputação penal

Neste artigo, mostro como a filosofia da linguagem de Wittgenstein substitui estados mentais ocultos pelo sentido público da ação e fundamenta a Teoria Significativa da Imputação.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Atualizado às 09:23

A filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein não apenas desconstrói a dualidade cartesiana entre mente e corpo, mas estabelece as bases conceituais para um novo modelo de racionalidade jurídica. Ao demonstrar que os chamados "estados mentais" não são entidades ocultas que precedem e causam a conduta, mas modos de participação em práticas linguísticas públicas, Wittgenstein oferece à dogmática penal um caminho de superação da tradicional imputação subjetiva. A noção de ação, nesse contexto, deixa de ser compreendida como efeito de uma vontade interior e passa a ser analisada como comportamento dotado de sentido. Esse deslocamento conceitual é a base filosófica da Teoria Significativa da Imputação.

O Direito Penal, tal como estruturado nas últimas décadas, foi construído sobre uma imagem cartesiana da mente. Supõe-se que a conduta humana seja fruto de um processo interno em que o agente pensa, deseja, prevê, escolhe, e só então executa fisicamente a ação. O dolo, nesse modelo, seria uma intenção interna; a culpa, uma previsão subjetiva negligente; e o dolo eventual, uma aceitação interna do risco. Em todos esses casos, a responsabilidade penal depende do acesso a conteúdos mentais invisíveis. Quando o juiz afirma que o agente "assumiu o risco de produzir o resultado", está presumindo um estado interior, um querer silencioso que não se manifesta objetivamente.

Wittgenstein rejeita essa estrutura. Para ele, não faz sentido supor que haja algo por trás da conduta que a explique. O comportamento já é, por si, uma forma de expressão. Não há bastidores ocultos da mente. A famosa pergunta "o que acontece por trás do rosto?" é, para ele, um equívoco gramatical. O rosto não é fachada; é expressão. O sentido não está dentro, mas na superfície. Isso não significa que a dor ou a intenção sejam irreais, mas que seu significado depende da forma como são usados na linguagem comum. Não se trata de negar o mental, mas de negar que ele seja uma substância separada, inacessível, a ser inferida como causa da ação.

Essa virada conceitual tem impacto direto sobre a teoria da imputação penal. A Teoria Significativa da Imputação parte do reconhecimento de que a ação humana deve ser compreendida como prática dotada de sentido. O que se imputa não é um querer interno, mas a significação objetiva da conduta. O dolo não é uma vontade invisível: é uma forma de atuar cuja estrutura expressa um compromisso de produzir o resultado. A imprudência não é uma previsão subjetiva desconsiderada: é uma forma de conduta que revela desatenção, indiferença ou desprezo por normas elementares de cuidado. Assim, a responsabilidade penal não nasce da introspecção, mas da análise dos caracteres significativos da ação.

O que Wittgenstein demonstra, ao longo de sua obra, é que a linguagem não reflete estados internos, mas forma a base das nossas práticas sociais. Palavras como "intenção", "desejo", "lembrança" ou "dor" não designam objetos internos, mas funcionam dentro de jogos de linguagem com regras específicas. O uso da palavra define seu sentido. Quando dizemos "ele quis matar", essa afirmação só tem sentido se estiver ancorada em um contexto em que a conduta do agente manifesta esse compromisso. Caso contrário, trata-se de uma suposição arbitrária, destituída de critério objetivo.

A imputação penal, enquanto juízo de responsabilidade, precisa estar fundada em critérios normativos acessíveis e verificáveis. A suposição de que alguém previu ou aceitou o risco sem que sua ação revele isso é uma forma de arbitrariedade. Ao presumir intenções sem base na linguagem pública da ação, o Direito Penal se transforma num jogo especulativo, perigoso e incompatível com o princípio da legalidade. O que Wittgenstein propõe é justamente a superação dessa arbitrariedade por meio da atenção à gramática do uso. Saber o que significa "ter intenção" é saber como essa expressão funciona em nossas práticas, não é saber o que se passa no interior do agente.

Na Teoria Significativa da Imputação, esse princípio é levado às últimas consequências. Ao invés de buscar o conteúdo mental do agente, a teoria propõe uma estrutura de imputação fundada em quesitos significativos. Cada conduta é analisada a partir de seu contexto, de seus elementos objetivos e de sua articulação com as regras do jogo linguístico e normativo. O dolo é reconstruído não como um estado interno, mas como uma forma de atuar que evidencia, em seus caracteres, o engajamento na produção do resultado. A imprudência consciente, por sua vez, é classificada em níveis (gravíssima, grave, leve), com base na significação objetiva do risco assumido.

Essa reconstrução permite eliminar conceitos imprecisos como o dolo eventual, cuja existência jurídica depende da crença em um conteúdo mental inverificável. Ao contrário do que afirma a doutrina tradicional, não se trata de prever ou aceitar o risco em silêncio, mas de evidenciar esse risco de forma significativa na ação. A teoria significativa rejeita a introspecção como método de imputação penal. No lugar de presunções subjetivas, oferece critérios racionais de interpretação da conduta, compatíveis com a legalidade, com o garantismo e com os princípios constitucionais.

Wittgenstein foi claro ao dizer que não há nada oculto. Essa frase, que a princípio pode parecer filosófica demais, é profundamente jurídica. Não há oculto na imputação penal. Não se pode condenar alguém com base em estados mentais imaginados. A conduta deve falar por si, e deve falar em uma linguagem clara, significativa, compreensível dentro do contexto da vida prática. O agente não é imputado pelo que talvez tenha pensado, mas pelo que fez de forma significativa. A responsabilidade penal, neste modelo, não é subjetiva no sentido psicológico, mas objetiva no sentido linguístico: ela decorre da forma como a ação se expressa no mundo.

Este é o quarto e último artigo da série Filosofia da Mente em Wittgenstein - A base filosófica da Teoria Significativa da Imputação. Ao longo dos textos, vimos como a crítica à linguagem privada, à introspecção e ao mentalismo cartesiano permite reconstruir o conceito de ação e, com ele, o núcleo da imputação penal. A mente não é um teatro; a linguagem não é um espelho de conteúdos internos; e a responsabilidade penal não pode repousar sobre ficções. A filosofia da linguagem, levada a sério, exige um Direito Penal que abandone suposições subjetivas e assuma a tarefa de imputar com clareza, rigor e legitimidade.

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Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).

Antonio Sanches Sólon Rudá

VIP Antonio Sanches Sólon Rudá

Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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