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A falência da linguagem ordinária no tratamento do dolo eventual

Neste artigo, critico o dolo eventual como ficção linguística e apresento a teoria significativa da imputação, que exige critérios públicos e verificáveis para imputar responsabilidade penal.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Atualizado às 13:52

Ao longo da história da imputação penal, uma constante tem atravessado as elaborações doutrinárias: a tentativa de definir e justificar o dolo eventual. Mas o que se apresenta como construção teórica é, na verdade, um desvio de linguagem, uma deformação da gramática penal que distancia o Direito de sua função primordial, atribuir responsabilidade com base em critérios claros, verificáveis e legitimamente democráticos. A figura do dolo eventual, sustentada por ficções subjetivistas, evidencia essa ruptura. E o que se revela no fundo de tudo isso? A ausência de critérios identificadores. A falta de compromisso com a linguagem ordinária. E, acima de tudo, a recusa em aceitar que "não há nada oculto", como ensinou Wittgenstein.

Este artigo inaugura a série Nada está oculto: A base filosófica da Teoria Significativa da Imputação, na qual proponho uma reinterpretação da imputação penal a partir da filosofia da linguagem, com base em Ludwig Wittgenstein e na crítica ao cartesianismo mentalista que ainda contamina a dogmática penal. A proposta parte de um pressuposto simples: todo conceito penal que não possa ser identificado com base em critérios externos e públicos é dogmaticamente insustentável.

O dolo eventual é o caso mais emblemático dessa patologia dogmática. Nas palavras de Sauer, trata-se do "tipo básico de dolo", onde residiria "a essência do dolo". Essa afirmação, embora tenha encontrado respaldo em teóricos como Schmidhäuser e Frisch, representa o ápice de uma dogmática desvinculada da linguagem comum. Na tentativa de universalizar o dolo como "consciência da possibilidade de resultado", esses autores apagaram a diferença fundamental entre dolo e imprudência: a vontade. E com isso abriram caminho para a perpetuação de institutos anacrônicos, como a versari in re ilícita, agora travestidos de dogmática contemporânea.

Não se trata, portanto, apenas de uma divergência teórica. Trata-se de um problema de gramática. Um problema que exige, antes de tudo, o retorno ao uso correto da linguagem. Wittgenstein, ao analisar os jogos de linguagem, insiste: os significados não residem em representações internas, mas nas formas públicas de uso. E onde não há critério público de identificação, o que há é engano. A expressão "dolo eventual", nesse contexto, é vazia de critérios e, por isso, vazia de sentido normativo. Sua permanência na doutrina revela uma dificuldade estrutural: a incapacidade do Direito Penal contemporâneo de romper com os vícios da linguagem privada.

Ao longo do tempo, a dogmática penal foi moldando institutos para atender demandas do sistema punitivo, mesmo à custa da coerência teórica. O dolo eventual é um deles. Sua sustentação depende de presunções subjetivas: "assunção do risco", "aceitação do resultado", "indiferença perante o bem jurídico". Mas nenhuma dessas expressões se conecta com critérios verificáveis. Nenhuma delas permite saber, com segurança, quando estamos diante de dolo ou de imprudência. E o que não pode ser identificado por meio de critérios não pode servir de fundamento para a sanção penal. Não se pode punir com base em estados mentais inacessíveis.

A teoria significativa da imputação, que proponho como alternativa técnico-constitucional, parte de uma mudança radical de perspectiva. Em vez de tentar adivinhar o conteúdo mental do agente, ela propõe a análise dos "caracteres significativos" da conduta, observáveis em sua manifestação exterior, tal como Wittgenstein exige ao tratar de estados mentais. O dolo, aqui, só se configura quando há um compromisso intencional com a realização do tipo penal, ou seja, quando a vontade se expressa de maneira objetiva. A imprudência, por sua vez, se dá quando há conduta ofensiva ao bem jurídico sem essa vontade, podendo ser classificada como consciente ou inconsciente, conforme os critérios identificáveis de previsão e aceitação do resultado.

A diferença entre dolo e imprudência, portanto, não é um problema de gradação da consciência, mas de estrutura gramatical. A vontade é critério essencial. E a ausência de vontade não pode, em hipótese alguma, ser convertida em dolo por meio de ficções interpretativas. É justamente essa confusão que tem levado ao colapso da imputação penal no Brasil e em muitos países influenciados pela doutrina alemã. Como mostrou Diáz Pita, mesmo nos casos em que não se pode afirmar com segurança a vontade de realização do tipo, a doutrina insiste em classificar a conduta como dolosa, apenas porque classificá-la como imprudente pareceria branda demais.

Mas essa é uma consequência da fragilidade das categorias atuais. A imprudência, enquanto instituto dogmático, foi esvaziada de conteúdo. Não é levada a sério. Permanece atrelada à ideia de acidente, de descuido, de menor reprovabilidade. Essa distorção precisa ser corrigida. A proposta da teoria significativa da imputação é restabelecer a centralidade da imprudência na dogmática penal, com uma classificação técnica entre imprudência gravíssima, grave e leve, a partir de critérios objetivos, verificáveis, legitimadores da imputação.

Como afirmou Wittgenstein, "um processo interno exige critérios externos". E isso se aplica integralmente à imputação penal. Não se pode presumir dolo a partir de estados mentais que ninguém vê. É preciso identificar o dolo por meio dos critérios que se expressam na conduta, na linguagem, nas formas públicas de agir. Só assim será possível superar a ambiguidade do art. 18 do CP, que diz: "Diz-se o crime doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo". Esse "ou" é o problema. Ele não une. Ele separa. E, ao separar, cria uma ficção jurídica: o dolo eventual.

A teoria significativa da imputação rompe com essa ficção. E para isso, recorre à filosofia da linguagem, como fundamento teórico e normativo. Ao longo dos próximos artigos, mostrarei como a análise gramatical da ação, da intenção e dos estados mentais permite reconstruir a imputação penal em bases mais racionais, justas e constitucionalmente legítimas.

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Esta publicação integra a série "Nada está oculto: A base filosófica da Teoria Significativa da Imputação".

Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).

Antonio Sanches Sólon Rudá

VIP Antonio Sanches Sólon Rudá

Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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