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Erro do Estado e a proteção da confiança do particular

Julgamento do STJ expõe conflito entre confiança do cidadão e defesa do crédito fiscal, reacendendo o debate sobre o verdadeiro papel do poder público.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Atualizado em 5 de dezembro de 2025 14:40

Julgamento recente da 1ª turma do STJ trouxe intrigante debate no direito brasileiro: afinal, qual é o fim do Estado? Serve ele à sociedade e ao indivíduo, ou se converteu em um fim em si mesmo, dada a "supremacia do interesse público"?

O caso, de relatoria do ministro Gurgel de Faria, deve decidir se é possível reconhecer fraude à execução quando, embora existente inscrição em dívida ativa, o próprio Estado, equivocadamente, emite ao adquirente certidão de regularidade fiscal afirmando inexistir débitos em nome do alienante. A questão, aparentemente técnica, esconde a tensão entre segurança jurídica, eficiência administrativa e o lugar que o Estado ocupa (ou acredita ocupar).

Vale traçar um histórico do caso. Uma construtora, adquirente do imóvel objeto do litígio, tomou as cautelas previstas em lei. Consultou a matrícula, verificou a inexistência de anotações, solicitou certidões ao órgão competente e obteve certidão negativa de débitos válida, emitida pelo Estado de Santa Catarina. Anos depois, contudo, foi surpreendida com penhoras oriundas das dívidas das pessoas jurídicas das quais o alienante era sócio, sob o argumento de que a alienação seria presumidamente fraudulenta, nos termos do art. 185 do CTN.

Daí se indaga: se o Estado erra (na emissão de uma certidão), quem deve suportar o ônus do erro? O cidadão que confiou no documento ou a Administração que o produziu?

Foi nesse cenário que o ministro Gurgel lançou luz à uma necessária preocupação institucional, que é a proteção da confiança legítima. Para o relator, a presunção de fraude do art. 185 do CTN recai sobre quem já é sujeito passivo da execução. No caso, embora a inscrição em dívida ativa fosse anterior, a certidão emitida pelo próprio Estado atestava a regularidade fiscal do alienante. O ministro enfatizou que o adquirente não pode ser prejudicado por falha do órgão responsável pela emissão da certidão em que confiou.

A ministra Regina Helena, após pedido de vista, apresentou posição divergente, sustentando que a alienação posterior à inscrição em dívida ativa, ainda que amparada por certidão negativa válida, não seria suficiente para afastar a presunção de fraude. Argumentou-se que a proteção desse crédito deveria prevalecer sobre a confiança do adquirente, mesmo quando construída justamente a partir de documento emitido pelo próprio Estado.

Para a ministra, a "supremacia do interesse público é o que efetivamente esteia e lastreia todos os mecanismos de proteção do crédito, evidentemente, que o crédito tributário não pode ficar à mercê de interesses particulares". Nesses casos, o comprador, mesmo que de boa-fé, "vai ter que buscar outra solução, que não a manutenção do negócio jurídico em detrimento do crédito tributário".

Esse embate desnuda uma crise de identidade do Estado brasileiro: afinal, para quê - e para quem - ele existe? O Estado é um fim em si mesmo? O que representa, no final das contas, a "supremacia do interesse público" para justificar a prevalência absoluta do crédito tributário?

Se o Estado pode emitir uma certidão equivocada, e, ainda assim, responsabilizar exclusivamente o indivíduo que agiu de boa-fé, cumpriu a lei e confiou em documento oficial, tem-se uma inversão total da lógica constitucional.

A Constituição Federal não admite esse arranjo. O Estado não existe para si mesmo; não é um fim autônomo, isolado, desconectado das pessoas. Ele está vinculado à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), à cidadania, à construção de uma sociedade justa (art. 3º), à segurança jurídica (art. 5º, caput e XXXVI) e à eficiência administrativa (art. 37, caput). Esses vetores não admitem que o Estado se proteja à custa dos próprios cidadãos que nele confiaram.

Para a ministra Regina Helena Costa, a proteção do crédito tributário decorreria da "supremacia do interesse público", pois "o crédito tributário é da sociedade".

A ideia, embora intuitiva, acaba aproximando interesse público e interesse fazendário como se fossem equivalentes. Não são. A proteção da confiança legítima do contribuinte, e da segurança jurídica que dela decorre, também realiza o interesse público, pois assegura estabilidade às relações econômicas e previsibilidade à atuação estatal.

Interessante, nesse ponto, a lição de Humberto Ávila1, para quem a Constituição, ao proteger a dignidade da pessoa e a esfera individual, não autoriza uma leitura que imponha prevalência automática do interesse público, uma vez que a noção abstrata de interesse público, por ser indeterminada, compromete a segurança jurídica.

A atuação estatal como um todo só se justifica quando orientada à proteção concreta do cidadão. Um Estado que erra e transfere ao administrado o peso de suas falhas nega sua própria razão de existir. Como defendeu o ministro Gurgel, o Estado deve funcionar "sob pena de a pessoa ficar desguarnecida". A consequência prática é a seguinte: se o Estado nunca assume responsabilidade, e se o contribuinte de boa-fé arca com as perdas mesmo após tomar todas as cautelas exigidas, cria-se um ambiente institucional em que a eficiência administrativa deixa de ser necessária. É um incentivo perverso. Por que o Estado se aperfeiçoaria se, independentemente da qualidade de seus serviços e de seu funcionamento, jamais suportaria o custo de seus equívocos? Isto é, pune-se quem cumpre a lei e absolve-se quem falha na prestação do serviço público. Isso é interesse público?

É a imagem do homem da parábola de Franz Kafka2, em "Diante da Lei", que passa a vida aguardando acesso à lei, sempre impedido por justificativas vagas do porteiro. A porta estava ali, destinada exclusivamente a ele, mas permaneceu fechada até o fim. Assim também ocorre quando o Estado, ao invocar princípios genéricos indistintamente, como a "supremacia do interesse público", nega, como é o caso, os efeitos de um ato válido que ele próprio produziu. Cria-se uma barreira opaca ao exercício de um direito que deveria estar franqueado.

É nesse cenário que o argumento de que "o crédito tributário é da sociedade" perde força diante da realidade. A sociedade é composta por indivíduos concretos, com suas histórias e suas vivências diárias. São justamente aqueles que dependem de segurança jurídica e da confiança no Estado para viverem a vida civil, contratarem, adquirirem bens, investirem e circularem. Não existe interesse público autêntico quando se permite que a injustiça seja feita.

É nesse sentido que o Poder Judiciário precisa recordar, sempre, que suas decisões não se esgotam nos autos do processo. Elas reverberam na vida real do jurisdicionado. Está-se diante do pequeno empregador, do comerciante de bairro, do padeiro, da manicure, de pessoas cuja subsistência depende da continuidade de suas atividades. Todos são afetados pelas decisões judiciais, e ignorar essa dimensão humana distorce a própria razão de ser do Estado.

Como advertiu o ministro Gurgel de Faria, os privilégios fiscais encontram limites, sob pena de se desnaturar a função estatal, que é servir à sociedade, protegê-la e assegurar a fruição dos direitos do administrado. É o que diz o art. 20 da LINDB: "não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão".

O julgamento, que já conta com o voto-vista divergente da ministra Regina Helena Costa pelo desprovimento do recurso e com o voto do ministro Paulo Sérgio Domingues acompanhando o relator para dar provimento ao recurso, encontra-se agora em vista coletiva pelos ministros Sérgio Kukina e Benedito Gonçalves.

O Poder Público deve atuar de forma positiva para concretizar condições materiais de bem-estar, especialmente por meio da adequada prestação de serviços de saúde, educação, transporte, segurança e infraestrutura. Contudo, há um percurso que não pode ser desviado, que é o da justiça. Se, de um lado, incumbe ao Estado empregar recursos públicos para garantir direitos sociais e ofertar serviços de qualidade à coletividade, de outro, não lhe é dado restringir direitos individuais quando diante de situações concretas que exigem proteção efetiva. Trata-se, afinal, de harmonizar deveres públicos com o respeito inafastável às garantias do cidadão.

O caso em discussão, antes de tudo, fala sobre confiança, dignidade, qualidade de vida e proteção, real, ao cidadão. Como dizia Rudolf von Ihering: "a vida do direito é a luta: luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos"3.

_________

1 Ávila, Humberto Bergmann. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, p. 186.

2 Kafka, Franz. O processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

3 Ihering, Rudolf von. A Luta pelo Direito. Editora Martin Claret Ltda. São Paulo, 2020, p. 145/146.

Martha R. Leonardi

Martha R. Leonardi

Formada em Direito pela UnB, é pós-graduanda em Direito Tributário pelo IBET. Integra a banca Tourinho Leal Drummond de Andrade Advocacia.

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