A nova dosimetria do dano moral e o preço da "culpa grave"
PL 4/25 propõe dosimetria objetiva do dano moral, mas a "culpa grave" pode gerar novo subjetivismo e aumentar risco financeiro das empresas.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2025
Atualizado em 12 de dezembro de 2025 14:34
Há décadas, o ambiente de negócios brasileiro convive com uma anomalia jurídica: a fixação aleatória do dano moral. Em litígios estratégicos, que envolvem desde grandes acidentes e falhas em operações complexas até a responsabilidade de administradores, a ausência de critérios legais claros transformou a quantificação indenizatória em um exercício de subjetivismo judicial. O resultado é a total incapacidade de precificação racional da exposição financeira processual da companhia.
O PL 4/25, que visa reformar o CC, chega com a promessa de racionalizar esse sistema. A proposta de nova redação para o art. 944 impõe, pela primeira vez, uma dosimetria civil. O texto obriga o magistrado a fundamentar o quantum indenizatório em vetores objetivos: a gravidade da ofensa, a extensão do dano, as condições da vítima e a capacidade econômica das partes.
Aparentemente, é a vitória da segurança jurídica. Contudo, uma leitura atenta do texto revela que a reforma não apenas organiza o cálculo, ela altera a natureza da responsabilidade civil brasileira, aproximando-a dos punitive damages do direito anglo-saxão. E é aqui que reside o "risco oculto" para a alta gestão.
O projeto positiva a função pedagógica e dissuasória da indenização. Em termos práticos, isso significa que a condenação judicial deixa de mirar apenas a recomposição do passado (o prejuízo da vítima) para focar na correção do futuro (o comportamento da empresa). O Judiciário passa a utilizar o valor da indenização como um mecanismo de "governança forçada", impondo um custo financeiro severo o suficiente para tornar a negligência ou a reincidência economicamente inviáveis. O texto prevê expressamente que, em casos de dolo ou culpa grave, o juiz poderá majorar o valor da condenação. O objetivo é nobre: desestimular condutas lesivas. O problema prático, contudo, é a definição do gatilho.
O conceito de "culpa grave" no Direito Civil é, historicamente, uma zona cinzenta. Diferente do dolo (intenção clara de lesar), a culpa grave habita a fronteira tênue entre a negligência comum e o descaso absoluto. Ao transformar a "culpa grave" em um multiplicador financeiro, o PL 4/25 corre o risco de substituir a loteria dos valores pela loteria das qualificações.
Se não houver rigor técnico na aplicação desse conceito, corremos o risco de ver falhas operacionais sistêmicas, naturais à atividade empresarial de risco, serem rebatizadas judicialmente como "culpa grave" apenas para justificar indenizações mais robustas. Estamos trocando um subjetivismo (o valor) por outro (a qualificação da conduta).
Para o executivo, o impacto é contábil e imediato. Como provisionar esse risco?
Pelas normas contábeis vigentes (CPC 25), a empresa deve provisionar perdas prováveis. Hoje, estima-se o valor com base na jurisprudência média. Mas, em um cenário onde a qualificação de "culpa grave" pode duplicar ou triplicar a condenação, a volatilidade das provisões aumentará drasticamente. A matriz de risco deixa de ser linear. Um passivo avaliado como "risco remoto" de valor alto pode se tornar "risco provável" se a tese de culpa grave prevalecer.
Isso impõe ao contencioso estratégico uma nova missão. A defesa corporativa não poderá mais se limitar a discutir a existência do dano ou o nexo causal. A batalha central se deslocará para a qualificação da conduta. Será necessário blindar a companhia contra a caracterização de negligência exacerbada. Isso exige que compliance, operações e jurídico trabalhem em simbiose para documentar que, mesmo diante de um dano, houve diligência e boa-fé.
O novo CC vive, portanto, um paradoxo. A promessa de objetividade aritmética na fixação do valor colide frontalmente com a subjetividade inerente à qualificação da "culpa grave". Se esse conceito for vulgarizado nos tribunais, a pretendida segurança jurídica dará lugar a um novo contencioso de pânico, onde o preço do erro corporativo será inflacionado não pela extensão do dano, mas pela adjetivação moral da conduta.
Caroline Ribeiro Souto Bessa
Sócia gestora da área do Contencioso Cível Estratégico de Martorelli Advogados.


