STJ: Ao julgar HC 1 milhão, ministro critica sistema recursal penal
Para Ribeiro Dantas, HC deveria ser usado para proteção da liberdade, mas se tornou recurso "genérico".
Da Redação
quarta-feira, 30 de abril de 2025
Atualizado às 18:14
Nesta quarta-feira, 30, STJ atingiu uma métrica histórica ao julgar o HC de número 1.000.000. Ao julgar o caso, ministro Ribeiro Dantas aproveitou a ocasião para fazer um alerta: o número expressivo é "antinatural", evidencia a banalização do remédio constitucional e a existência de sistema recursal ultrapassado.
O caso tratava do pedido de liberdade de um condenado a oito anos de reclusão por tráfico de drogas no Estado de Sergipe. Apesar de não ter conhecido da impetração, o ministro concedeu a ordem de ofício para reduzir a pena do paciente, sem, contudo, alterar o regime inicial fechado.
Mais do que o desfecho do processo, o julgamento foi um meio para desabafo do relator.
Ribeiro Dantas criticou utilização excessiva do HC, instrumento que, segundo ele, perdeu a finalidade original de proteger a liberdade de locomoção e passou a ser utilizado como um recurso universal para qualquer questão penal.
"Chegamos ao número antinatural de 1.000.000 de habeas corpus distribuídos perante o Tribunal da Cidadania", lamentou o ministro.
Afirmou que a banalização contribui significativamente para a sobrecarga do STJ, a ponto de ter sido necessário recorrer ao auxílio de juízes de 1º grau para dar conta da demanda da 3ª seção, especializada em Direito Penal.
Nesse contexto, Ribeiro Dantas propôs reflexão aos operadores do Direito.
"É fundamental, neste momento marcante, que todos reflitam sobre sua postura e sobre o quanto podem contribuir para mitigar as consequências do excesso de impetrações mandamentais."
Obsolescência
O ministro ainda sugeriu que o legislador reforce os recursos penais ordinários, à semelhança do que ocorreu no Processo Civil com o agravo de instrumento. Tal medida, segundo Ribeiro Dantas, poderia contribuir para que o HC volte a ocupar seu papel originário no ordenamento jurídico.
Por fim, apontou que o uso excessivo do HC é reflexo de sistema recursal ultrapassado e da fragilidade dos instrumentos processuais penais, que frequentemente deixam o jurisdicionado sem alternativas eficazes de defesa.
Veja a íntegra da manifestação:
"Todavia, antes da análise de eventual manifesta ilegalidade no acórdão impugnado, impõe-se o registro de uma preocupante constatação: como dito acima, atingimos o número antinatural de 1.000.000 de habeas corpus distribuídos perante o Tribunal da Cidadania.
Remontando às origens do habeas corpus que, para a maioria dos doutrinadores, deriva da Magna Charta Libertatum, de 1215, imposta ao monarca inglês João Sem Terra, somos obrigados a reconhecer que, no Brasil, a garantia constitucional perdeu quase totalmente sua essência de regulação do direito ambulatório, sendo utilizada como remédio para tudo que envolve o processo penal.
Esta Corte, no presente momento, por causa de tal excessiva demanda, conta com auxílio de Juízes de 1ª Instância ? infelizmente não mais neste Gabinete ?, para que os Ministros que integram a Terceira Seção consigam cumprir à importante tarefa de prestar a jurisdição de forma célere, como determina a Constituição da República, sem prejuízo ao jurisdicionado.
Tal é o resultado da utilização desmedida de um instituto criado para impedir violações imediatas ou mediatas ao direito de ir e vir, mas que se volta, na atualidade, para temas como nulidades, dosimetria e outras questões que só muito longínqua e indiretamente se referem ao direito de ir e vir.
De quem é a culpa? Creio de uma estrutura recursal ultrapassada e não revista devidamente pelo legislador, mas também de todos os operadores do Direito, os quais demoraram a perceber que o desvirtuamento da garantia constitucional, aliada ao enfraquecimento dos institutos próprios do processo penal, tumultuariam de tal maneira o andamento deste Tribunal a ponto de ser necessária a convocação de 100 juízes para auxiliar na missão que pertence aos Ministros desta Casa, qual seja, o julgamento de processos.
Fundamental, neste momento marcante, que todos os que vivem do Direito reflitam sobre sua postura e sobre o quanto podem contribuir para mitigar as consequências do excesso de impetrações mandamentais, a fim de que, resolvidos os problemas legais envolvidos ? como se fez no Cível, reforçando os recursos, em especial o agravo de instrumento, que passou a ser interposto diretamente nos tribunais e com a possibilidade de conter as mais variadas formas de tutela de urgência, o que fez parar o abuso dos mandados de segurança já em meados da década de 1990 ? se consiga devolver o habeas corpus a seu devido lugar de garantia constitucional que obsta comportamentos ilegais ou ameaças perpetradas contra o direito de liberdade."
Caso concreto
O caso que marcou o milionésimo HC no STJ dizia respeito à dosimetria da pena. A defesa apontava excesso na fixação da pena-base, alegando bis in idem, má valoração da culpabilidade e desproporcionalidade na consideração da quantidade de drogas apreendidas (cerca de 98g de cocaína).
Apesar de reconhecer que o habeas corpus não é substitutivo de recurso próprio, o ministro entendeu haver ilegalidade flagrante na fixação da pena-base, que havia sido majorada em três anos com fundamento em apenas duas circunstâncias judiciais desfavoráveis.
A pena final foi, então, reduzida para seis anos e nove meses de reclusão e 680 dias-multa.
- Processo: HC 1.000.000
Veja a decisão.