TJ/MG manda devolver imagem sacra do século XVIII à paróquia de origem
Mesmo com a demolição do templo original, tribunal reconheceu vínculo histórico-cultural da peça com a comunidade religiosa.
Da Redação
terça-feira, 8 de julho de 2025
Atualizado às 15:53
A 6ª câmara Cível do TJ/MG determinou a restituição da imagem sacra "Santana Mestra" à Paróquia de Santa Luzia, localizada na região Metropolitana de Belo Horizonte/MG. A escultura, entalhada em cedro maciço e com mais de 200 anos de história, deverá ser reintegrada à comunidade católica da cidade após sete décadas de ausência.
O MP/MG ajuizou a ação civil pública após constatar a tentativa de venda irregular de diversas obras sacras originalmente confiadas à Galeria Leone, no início dos anos 2000. Parte do acervo foi apreendida, mas outras peças ainda permanecem em posse de terceiros.
Em 1º instância, o juízo reconheceu o valor artístico e cultural de sete imagens sacras, submetendo-as à proteção da lei 4.845/65. Apesar disso, negou o retorno da "Santana Mestra" sob o argumento de que o templo original que abrigava a peça - a antiga Capela de Santana - havia sido demolido.
O parquet, então, apelou da decisão.
Ao analisar o recurso, o relator, juiz de Direito convocado Renan Chaves Carreira Machado, destacou que os conceitos de "paróquia" e "templo religioso" não se confundem.
A primeira diz respeito à comunidade eclesiástica, enquanto o segundo refere-se à estrutura física. Para o magistrado, "a restituição ao lugar de origem se refere à comunidade cuja história se relaciona à imagem", e não ao edifício demolido.
A decisão enfatiza que a proteção ao patrimônio cultural deve considerar o sentido de pertencimento da obra à coletividade. O colegiado reconheceu que, mesmo com a demolição do templo, a escultura mantém seu elo com a Paróquia de Santa Luzia, fundada no antigo arraial de José Correia, no século XVIII.
Segundo os autos, a imagem permaneceu na Capela de Santana até a década de 1950, quando o local entrou em decadência e acabou sendo demolido.
Em 2003, o colecionador João Bosco Vianna Gonçalves alegou ter adquirido a obra de uma antiga capela. Pouco depois, ela foi localizada em um leilão no Rio de Janeiro, com valor estimado de R$ 350 mil.
Com cerca de 90 cm de altura, a peça é composta por três blocos - trono, Santana e Maria criança - e apresenta traços típicos do barroco mineiro, como a expressividade dramática e o olhar para baixo das figuras. Um laudo técnico aponta que a obra é provavelmente do século XVIII.
Apesar de laudo complementar ter sugerido a realização de novas pesquisas, o relator entendeu que as provas documentais e testemunhais presentes nos autos foram suficientes para demonstrar a origem e o vínculo da escultura com a paróquia de Santa Luzia.
A decisão também confirmou a improcedência dos pedidos relativos a outras três imagens - São José, Nossa Senhora e São João Nepomuceno - por ausência de comprovação do valor histórico e artístico necessário à proteção legal.
- Processo: 2660469-10.2006.8.13.0024
Veja o acórdão.
Antiquários e cidades históricas
Em 1984, o jornal O Globo divulgou matéria especial na qual narrava uma série de leilões de arte sacra em Minas Gerais suspensos por decisão judicial, após suspeitas de que peças haviam sido desviadas do patrimônio de cidades históricas como Congonhas, Sabará e a própria Santa Luzia.
Em um dos episódios, o prefeito de Congonhas, Gualter Monteiro, obteve liminar para interditar o leilão de 14 obras, sob alegação de furto ao patrimônio municipal.
A medida gerou reações em cadeia, com prefeitos de outras cidades aderindo às ações judiciais, inclusive interditando o leilão de peças na Galeria Fernando Paz - à época, dirigida pelo então também diretor do Museu de Arte da Pampulha.
Contudo, laudos técnicos posteriores indicaram que diversas imagens não tinham qualquer vínculo com os municípios mineiros.
Um parecer da professora Myriam Ribeiro de Oliveira, especialista em imaginária sacra, apontou que muitas obras - entre elas uma imagem de Santana Mestra - apresentavam características típicas de outras regiões, como o uso de olhos de vidro, comum na escultura portuguesa do século XIX, e técnicas de entalhe utilizadas na Bahia e em Alagoas. A imagem atribuída a Santa Luzia, por exemplo, teria sido esculpida em Alagoas, e não em Minas.
Esses embates expuseram a ausência de um inventário nacional de bens móveis protegidos, situação que dificultava a rastreabilidade de peças sacras e favorecia alegações imprecisas sobre sua origem.
Apesar das divergências e críticas à atuação do então prefeito de Congonhas, Gualter Monteiro, a ofensiva judicial nos anos 1980 contribuiu diretamente para a reativação de mecanismos de controle sobre o comércio de obras de arte sacra.
Segundo a reportagem, a pressão institucional resultou na retomada da aplicação dos arts. 26 e 27 do decreto-lei 25/37, norma-base da proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.
Por força dessas medidas, a delegacia regional do então Sphan - Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atualmente, Iphan), em Minas Gerais, passou a notificar todos os leiloeiros de Belo Horizonte para que, com antecedência mínima de 20 dias, comunicassem a realização de leilões de antiguidades, obras de arte, manuscritos e livros raros.
A notificação visava permitir a realização de vistorias técnicas e perícias, para evitar o comércio clandestino ou o desvio de peças de valor histórico.
O próprio delegado do Sphan, Dimas Dario Guedes, apontou que o verdadeiro avanço institucional dependia de uma tarefa monumental ainda pendente: a elaboração de um inventário nacional dos bens móveis de interesse cultural - algo que, à época, sequer havia sido iniciado.