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Erro judicial

Crime da 113 Sul: STJ anula condenação de Francisco Mairlon após 15 anos preso

6ª turma reconhece nulidade de condenação baseada apenas em confissões obtidas na fase policial sem confirmação em juízo, sob coação.

Da Redação

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Atualizado em 15 de outubro de 2025 09:13

A 6ª turma do STJ decidiu, por unanimidade, anular a condenação e trancar a ação penal contra Francisco Mairlon Barros Aguiar, um dos acusados pelo triplo homicídio conhecido como "Crime da 113 Sul", ocorrido em 2009, em Brasília.

O colegiado seguiu o voto do ministro Sebastião Reis Júnior, relator do REsp 2.232.036, que reconheceu que a condenação foi fundamentada exclusivamente em confissões extrajudiciais e depoimentos colhidos na fase policial, sem confirmação em juízo.

Ao acompanhar o relator, o ministro Rogério Schietti Cruz afirmou que o caso expõe a "obsessão pela confissão" e a urgência de rever métodos de interrogatório que "fogem da civilidade".

Diante disso, a turma concluiu que o conjunto probatório era insuficiente para justificar a pronúncia e a condenação, determinando a anulação do processo e a imediata soltura do réu, após quase 15 anos preso.

 (Imagem: Reprodução/Globoplay)

Crime da 113 Sul: STJ anula condenação de Francisco Mairlon, após 15 anos preso.(Imagem: Reprodução/Globoplay)

Relembre o caso

O crime, ocorrido em agosto de 2009, ficou conhecido como "Crime da 113 Sul", em referência à quadra residencial de Brasília onde os assassinatos foram cometidos.

As vítimas foram o advogado e ex-ministro do TSE José Guilherme Villela, sua esposa, a advogada Maria Carvalho Mendes Villela, e a empregada doméstica Francisca Nascimento da Silva.

A arquiteta Adriana Villela, filha do casal, foi acusada de ser a mandante do triplo homicídio. Em 2019, após ser levada a júri popular, foi condenada a 67 anos e seis meses de prisão, pena posteriormente reduzida para 61 anos e três meses.

Ao longo dos anos, a defesa de Adriana alegou diversas nulidades processuais, entre elas o acesso tardio a mídias com depoimentos de corréus, disponibilizadas apenas no sétimo dia de julgamento. Segundo os advogados, a irregularidade comprometeu o direito ao contraditório, configurando cerceamento de defesa.

Em setembro, por maioria de 3 votos a 2, a 6ª turma do STJ acolheu o recurso da defesa e anulou todos os atos do processo penal contra Adriana Villela, incluindo o julgamento do Tribunal do Júri.

Prevaleceu o voto do ministro Sebastião Reis Júnior, que considerou violado o direito de defesa e apontou irregularidades na condução do júri.

Erro judiciário e confissões sob coação

Na tribuna, a advogada Dora Cavalcanti, atuando pelo Innocence Project Brasil, classificou o caso como um grave erro judiciário e defendeu que Mairlon foi "invisibilizado" ao longo de toda a persecução penal, em um processo marcado por provas frágeis e ilegais.

"Mairlon está há 15 anos preso por uma condenação lastreada unicamente em elementos inquisitoriais. Nenhuma decisão judicial chegou a mencionar que essas confissões foram retratadas."

A defesa destacou que as confissões foram obtidas sob coação e exibiu gravações da época que mostrariam o tratamento degradante a que o réu foi submetido.

Dora citou dados do Innocence Project de Nova York, segundo os quais 30% dos inocentados por DNA haviam confessado crimes que não cometeram.

Condenação baseada somente em prova inquisitorial é nula

Em voto detalhado, o ministro Sebastião Reis Júnior afirmou que a condenação de Mairlon violou os arts. 155 e 197 do CPP, uma vez que as confissões e depoimentos de corréus não foram corroborados por provas judicializadas.

"É inadmissível que, em um Estado Democrático de Direito, um acusado seja pronunciado e condenado por juízes leigos apenas com base em elementos da fase extrajudicial, dissonantes da prova produzida sob o crivo do contraditório."

O ministro concluiu que o conjunto probatório era insuficiente para sustentar a pronúncia e a condenação, determinando a anulação do processo e a imediata soltura do réu, preso há quase 15 anos.

"Obsessão pela confissão"

Ao acompanhar o relator, o ministro Rogério Schietti Cruz criticou a persistente cultura da Justiça criminal brasileira de centralizar o valor probatório na confissão, apontando também abusos nos métodos de interrogatório policial.

"A Justiça criminal brasileira, ainda se centra na confissão como rainha das provas. Há uma verdadeira obsessão pela confissão. Em nome da confissão, muitas vezes se usam de expedientes, e nem me refiro necessariamente à tortura, mas se usam de expedientes que fogem de qualquer conceito de civilidade e de um devido processo legal."

Schietti observou que, embora o uso de meios de coerção física tenha diminuído, ainda prevalece uma cultura inquisitorial que admite estratagemas e pressões psicológicas para extrair declarações. 

S. Exa. citou o "método Reid", criado nos EUA na década de 1950 e ainda adotado em investigações brasileiras, que "incentiva o policial a usar de todo tipo de subterfúgio, estratagema, chantagens e ameaças para obter confissões, como acabamos de ver aqui nesses vídeos, que mostram de que maneira as confissões, muitas vezes, são obtidas sem a presença de advogado, após horas exaustivas de interrogatório, suprimindo direitos do investigado, o sono, a alimentação e a assistência jurídica."

O ministro destacou que apenas provas produzidas sob contraditório podem sustentar a pronúncia - etapa que leva o réu ao julgamento pelo júri -, a qual exige base probatória mínima e confiável, o que não se verificou no caso.

"Não é possível que nós continuemos a manter um sistema baseado em depoimentos orais como bastantes para condenações. Se para o início de um processo até se tolera que haja ainda uma dose de subjetivismo na prova, não podemos aceitar mais que se leve a julgamento pelo Tribunal do Júri com base somente em depoimentos colhidos em uma delegacia, não confirmados em juízo e, mais ainda, retratados em juízo, sem que isso seja objeto expresso de uma análise judicial séria, isenta, objetiva e racional."

Schietti defendeu a adoção de protocolos de entrevista e interrogatório compatíveis com os padrões internacionais de direitos humanos, como os Princípios de Méndez, elaborados pela ONU, que orientam a condução de entrevistas investigativas não coercitivas.

"Talvez esteja na hora mesmo de, não sei se pelo CNJ, haver uma provocação para que a maneira de conduzir investigações, de tomar depoimentos - não só de suspeitos, mas de pessoas em geral - não se fie mais nessa técnica que tem sido reverberada já há cerca de 70 anos no Brasil, e passemos a adotar outro tipo de protocolo, um protocolo que dê confiabilidade a essa prova e alguma racionalidade à atividade investigativa na fase pré-processual."

Corrigir falhas

O ministro Carlos Pires Brandão destacou a importância de o Judiciário dialogar com as estruturas de segurança pública para aprimorar os métodos de investigação e evitar novas violações.

"A confissão deve ser contrastada com outras provas colhidas ao longo do processo. O que se viu aqui foi a transformação de elementos meramente informativos em provas, sem qualquer contenção com os demais elementos."

Já o ministro Og Fernandes reforçou as práticas abusivas no inquérito policial. "Os vídeos mostram não uma busca pela verdade, mas uma coação moral aplicada a pessoas vulneráveis. Essa verdade, assim obtida, é falsa, não confiável".

Trancamento da ação penal

Ao final do julgamento, Schietti sugeriu ampliar o alcance da decisão, questionando se haveria justa causa para manter Mairlon como réu após a anulação da pronúncia e da condenação.

A proposta foi acolhida por unanimidade. A turma, então, deu provimento ao recurso especial para trancar a ação penal desde o recebimento da denúncia, ressalvando a possibilidade de nova acusação caso surjam provas válidas.

Cavalcanti, Sion Advogados

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