STF julga se polícia deve informar direito ao silêncio em abordagens
Supremo discute se ausência de advertência na abordagem policial torna prova ilícita.
Da Redação
quarta-feira, 29 de outubro de 2025
Atualizado em 30 de outubro de 2025 11:02
Nesta quarta-feira, 29, o STF começou a julgar, em sessão plenária, se policiais têm o dever de informar ao suspeito o direito de permanecer em silêncio já no momento da abordagem - e não apenas durante o interrogatório formal - sob pena de ilicitude da prova.
A discussão, que envolve os princípios constitucionais da não autoincriminação e do devido processo legal, é tratada no Tema 1.185 da repercussão geral.
O aviso é conhecido como alerta de Miranda, em referência a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Miranda vs. Arizona (1966), que estabeleceu a obrigação de informar ao detido seus direitos básicos, como o de permanecer em silêncio e o de ser assistido por advogado.
A sessão desta quarta-feira foi dedicada às sustentações orais e às manifestações de amici curiae. O julgamento será retomado na quinta-feira, 30.
Caso concreto
O recurso foi interposto por um casal preso em flagrante após policiais militares encontrarem, na residência dos suspeitos, uma pistola, uma espingarda e munições (cartuchos e projéteis) com registros vencidos.
Durante o cumprimento de mandado de busca e apreensão expedido pela vara Criminal de Brodowski/SP, a mulher, ao ser questionada por um dos policiais, teria admitido, de forma voluntária e informal, a posse da pistola localizada no quarto.
A declaração poderia configurar confissão do delito de posse irregular de arma de fogo (art. 12 da lei 10.826/03 - estatuto do desarmamento) ou ser considerada elemento de prova testemunhal.
No recurso, o casal contesta decisão do TJ/SP que entendeu não haver obrigação de os policiais advertirem o abordado sobre o direito ao silêncio no momento da prisão.
A defesa sustenta que a confissão informal ocorreu durante a abordagem policial, sem a advertência prévia do direito constitucional de permanecer calada, em afronta ao art. 5º, LXIII, da CF.
Segundo os advogados, a garantia deve ser observada não apenas antes do interrogatório formal do indiciado ou acusado, mas também em eventuais questionamentos informais feitos por policiais militares no momento da abordagem e da voz de prisão em flagrante.
Sustentações orais
Recorrentes
O advogado Alberto Zacharias Toron, da banca Toron Advogados, defendeu, em nome dos recorrentes, o reconhecimento do dever de os agentes estatais advertirem o suspeito sobre o direito de permanecer em silêncio já no momento da abordagem policial, e não apenas no interrogatório formal.
Toron destacou a relevância histórica do julgamento, comparando-o ao precedente norte-americano Miranda vs. Arizona, que consagrou a obrigatoriedade da advertência sobre o direito ao silêncio nos Estados Unidos. Segundo ele, o caso brasileiro traz dimensão semelhante à cidadania e à efetividade das garantias constitucionais.
O advogado citou precedentes do próprio Supremo, como voto do saudoso ministro Sepúlveda Pertence, que já reconhecia, em 1999, que o dever de advertência não se restringe ao interrogatório formal, mas abrange também qualquer oitiva informal, inclusive fora do processo penal.
Mencionou ainda lição doutrinária da professora Maria Elizabeth Queijo, para quem declarações informais obtidas sem a advertência configuram violação ao direito ao silêncio e ao princípio nemo tenetur se detegere.
Toron ressaltou que, no caso concreto, a confissão informal da acusada foi utilizada para fundamentar a condenação, embora tenha sido colhida sem qualquer advertência prévia.
Citando precedentes do ministro Gilmar Mendes e decisões do STJ, o criminalista lembrou que a Corte já afirmou que a falta de advertência quanto ao direito ao silêncio torna ilícita a prova produzida contra si, inclusive em conversas informais, gravadas ou não.
Também rebateu a possibilidade de modulação dos efeitos de eventual decisão favorável, proposta sob o argumento de que a jurisprudência do STJ seria divergente. Para ele, a modulação criaria "contradição inadmissível".
Por fim, pediu que o STF reconheça a ilicitude de confissões obtidas sem advertência do direito ao silêncio e reafirme que o Estado de Direito exige contenção da força estatal dentro dos limites das garantias fundamentais.
MP/SP
O procurador-geral de Justiça de São Paulo Paulo Sérgio de Oliveira e Costa defendeu o improvimento do recurso e se opôs à extensão automática da advertência do direito ao silêncio a todas as abordagens policiais.
Para ele, a importação integral do modelo norte-americano (Miranda) geraria insegurança jurídica e uma "enxurrada" de nulidades.
Diferentemente do sistema dos EUA, no Brasil a confissão isolada não basta para condenar; por isso, declarações espontâneas no momento da abordagem não se tornam nulas apenas pela falta de advertência, devendo ser apreciadas em conjunto com o restante do acervo probatório.
No caso concreto, frisou que a condenação do casal não se apoiou só na confissão, mas em provas materiais robustas - armas, pólvora e mais de 2,4 mil munições apreendidas.
Nessa linha, sustentou que o dever de advertir o direito ao silêncio incide quando: (i) a abordagem resulta em prisão; (ii) há intenção de colher declarações incriminadoras; ou (iii) a fala não é espontânea.
Argumentou, ainda, que o modelo brasileiro, com atuação ostensiva da PM e investigação pela Polícia Civil, pressupõe a comunicação formal de direitos na condução do preso à autoridade, e não em toda interação inicial.
Assim, manifestações espontâneas, sem coação ou abuso, constituem elementos informativos válidos, a serem confrontados com as demais provas.
Para o MP/SP, a falta de advertência, por si, não invalida a declaração; é preciso demonstrar prejuízo. Mesmo reconhecida alguma irregularidade, apenas as provas diretamente derivadas da confissão ilícita seriam anuláveis, preservadas as de fonte independente ou descoberta inevitável.
Concluiu afirmando que a CF (art. 5º, LXIII) já oferece solução ao assegurar que o preso seja informado de seus direitos, inclusive o de permanecer calado.
Requereu, portanto, o desprovimento do recurso e, subsidiariamente, a modulação dos efeitos de eventual decisão em sentido contrário, ex nunc, para evitar retroatividade e instabilidade processual.
Amici curiae
Favoráveis ao aviso
Em sustentação pela DPU, o defensor Leonardo Cardoso de Magalhães afirmou que o direito ao silêncio e a não autoincriminação são pilares do Estado Democrático de Direito e devem ser assegurados desde a abordagem policial, momento de maior vulnerabilidade do cidadão.
O defensor invocou fundamentos constitucionais e tratados internacionais, como o Pacto de San José da Costa Rica e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, para sustentar que o dever estatal de advertir o suspeito não é mera faculdade, mas obrigação jurídica.
Segundo ele, a prática recorrente de confissões informais sem registro e sem defensor gera condenações sobre provas contaminadas desde a origem. Citando o Innocence Project, lembrou que quase 30% das absolvições por DNA nos EUA envolvem confissões falsas.
A DPU propôs a fixação de tese segundo a qual o Estado deve informar acusados, investigados e suspeitos, já na abordagem, sobre seus direitos e garantias, inclusive o de permanecer calado.
Em nome do Gaets/DPEs - Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas, o defensor público da DPE/AM, Fernando Mestrinho, sustentou que o direito ao silêncio deve ser advertido desde a abordagem, e comparou o momento a debates históricos no STF, como as audiências de custódia e o juiz de garantias, inicialmente contestados e depois consolidados como garantias fundamentais.
Segundo ele, negar a advertência é negar a efetividade da CF e perpetuar desigualdades estruturais. Ainda, afirmou que a advertência não inviabiliza a persecução penal, mas a legitima, por conferir transparência e respeito ao devido processo.
Representando o Conselho Federal da OAB, Sérgio Rodrigues Leonardo, da banca Marcelo Leonardo Advogados Associados, defendeu a afirmação positiva da tese que obriga o agente estatal a advertir o abordado sobre o direito ao silêncio e à assistência de advogado, sob pena de ilicitude da prova.
Citou precedentes do STF e tratados internacionais que consagram o princípio da não autoincriminação, como a Convenção Americana de Direitos Humanos e decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos, reforçando tratar-se de avanço civilizatório consolidado na comunidade internacional.
Para o representante da OAB, o Supremo deve reafirmar sua vocação de guardião das liberdades e repúdio a práticas autoritárias.
Em nome do Ibraspp - Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal, o advogado Vinícius Vasconcellos sustentou que o direito ao silêncio é indissociável da informação e da voluntariedade.
Para ele, uma decisão só é legítima se for bem informada e livre de coerção, o que exige o aviso prévio do direito de não falar desde a abordagem.
Apontou dados de pesquisa empírica no Brasil mostrando que entre 20% e 30% das condenações por tráfico de drogas se baseiam em confissões informais.
Pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa, o advogado Roberto Garcia qualificou a discussão como aperfeiçoamento civilizatório e destacou a dimensão social do tema. Citou pesquisa que apontou mais de 15 milhões de abordagens policiais em 2014, nas quais 90% das pessoas negras relataram sensação de humilhação.
Defendeu que o simples aviso "você tem o direito de permanecer calado" não compromete a atuação policial, mas fortalece o Estado de Direito.
Para a entidade, a ausência da advertência causa prejuízo presumido, pois gera prova ilícita contra o abordado. Assim, propôs tese segundo a qual são nulas, independentemente de demonstração de prejuízo, as confissões e provas derivadas obtidas sem o aviso do direito ao silêncio.
Contrário ao aviso
Em nome do MPE/MG, o procurador de Justiça André Estêvão Ubaldino Pereira defendeu que a adoção do modelo norte-americano de advertência ampla seria inadequada à realidade brasileira.
Segundo ele, os próprios votos vencidos no caso Miranda vs. Arizona alertaram que a imposição de um aviso formal não aumenta a proteção do cidadão, apenas desencoraja confissões legítimas.
O procurador afirmou que o tema se relaciona à testemunha policial, que deve poder relatar o que ouviu durante a abordagem sem que isso seja tratado como prova ilícita.
Para o representante do MP mineiro, a solução deve buscar equilíbrio entre segurança pública e garantias individuais, evitando rever milhares de processos baseados em confissões espontâneas obtidas sem coação.
- Processo: RE 1.177.984


