Questão de Direito

Sanção civil do art. 42, parágrafo único, CDC: Termo inicial de incidência de juros

A coluna aborda como a restituição em dobro de valores cobrados indevidamente pelo fornecedor inclui juros apenas a partir do trânsito em julgado, garantindo segurança jurídica e respeito à boa-fé.

23/10/2025

O parágrafo único do art. 42 do CDC prevê que o “consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável”. Trata-se de uma sanção civil1, a exemplo daquela prevista no art. 940 do CC, e que vem sendo objeto de discussão no STJ, em razão da afetação do Tema 9292. Nele, a Corte decidirá se, para a incidência da pena, basta a violação à boa-fé objetiva, conforme decidido pela Corte Especial no EAREsp 676.608/RS3, ou se é necessário demonstrar a má-fé (como no Tema 622).4

Para além da discussão atualmente em curso no STJ, ainda sem prazo para encerramento, há outra questão de grande relevância, pouco explorada pela doutrina e jurisprudência: o termo inicial dos juros incidentes sobre a sanção de devolução em dobro.

A lei estabelece que, na hipótese de incidência da pena, o consumidor será restituído em valor equivalente ao dobro do que pagou, ‘acrescido de correção monetária e juros legais’. A dúvida recai, portanto, sobre o marco inicial dos juros relativos à sanção, já que, com relação à devolução do valor efetivamente pago pelo consumidor, os juros deverão incidir a partir da citação.5

A resposta não é a mesma quanto à penalidade propriamente dita. Nesse caso, os juros deverão incidir a partir do trânsito em julgado da decisão que impõe a restituição em dobro do valor indevidamente cobrado.

Isso porque a obrigação de pagar a dobra somente surge com a decisão judicial que impõe a sanção, não havendo obrigação anterior. Sendo assim, só se pode falar em juros de mora (que, igualmente, representam sanção)6 após a constituição definitiva da obrigação, o que se dá com o trânsito em julgado.7

O que aqui se defende é confirmado pela interpretação que o STJ dá ao art. 162, CTN8. A súm. 188 do STJ, segundo a qual “Os juros moratórios, em sede de ação de repetição de indébito, são devidos a partir do trânsito em julgado da sentença”. Afinal, como leciona Thais de Laurentiis, as obrigações de pagamento de juros da restituição não se confundem com os juros da repetição de indébito.9

A jurisprudência do STJ, porém, quanto ao termo inicial dos juros nas hipóteses do art. 42, CDC, não é segura. Há decisões que, sem realizar a devida distinção entre a devolução do valor efetivamente pago e a sanção civil, entendem que a incidência de juros se dá a partir da citação10. Esse entendimento não se revela adequado, pois ignora que a obrigação em dobro não decorre automaticamente do pagamento indevido, mas resulta da imposição judicial da penalidade. Por essa razão, os juros devem fluir apenas a partir do trânsito em julgado da decisão condenatória, quando se consolida a exigibilidade da sanção.

A solução, pelo menos parcial, mas, ainda assim, equivocada em nosso sentir, pode ser encontrada no acórdão prolatado nos autos do REsp 1.628.544/SP. Nele, a 3ª turma, seguindo o voto da relatora min. Nancy Andrighi, entendeu que a sanção civil prevista no art. 940 do CC deverá ser acrescida de juros apenas a partir da data do arbitramento:

5. Na espécie, a construtora não tinha a possibilidade de satisfazer a obrigação pecuniária - na espécie, a sanção privada, prevista no art. 940 do CC/02, de pagamento em dobro de quantia cobrada e já paga - enquanto não fixada esta obrigação pelo Tribunal de origem. Portanto, são devidos os juros moratórios desde a data em que condenada a construtora à pena prevista no art. 940. Do CC/02.

Embora, a nosso ver, o termo inicial deva ser o trânsito em julgado (e não a condenação), o julgado lança luz na distinção entre o termo inicial dos juros incidentes sobre a penalidade e sobre o valor principal a ser restituído.

Há, ainda, um outro argumento favorável à tese que ora se sustenta. As multas processuais, sanções civis, terão os valores acrescidos de juros a partir do trânsito em julgado da decisão e não da prática do ato ou da citação11. Não há justificativa para que esta sanção em particular seja tratada de maneira distinta.

Em qualquer caso, tornando-se exigível a obrigação apenas com o trânsito em julgado da decisão que aplica a penalidade - que, como se sabe, demandará um juízo sobre a existência ou não de má-fé ou de, pelo menos, ausência de boa-fé objetiva -, é apenas a partir daquela data que a sanção deve ser aplicada.

E aqui está o ponto nodal que diferencia essa sanção das cláusulas penais. Com o inadimplemento, a cláusula penal já é exigível (art. 408, CC). No entanto, para a incidência do art. 42, p. ú, não basta a cobrança indevida. O suporte fático para incidência da norma pressupõe além da cobrança o reconhecimento judicial da ausência de boa-fé objetiva ou da existência de má-fé, como se espera que decida o STJ.

A questão também não se confunde: (i) com a prevista no art. 398 e na súm. 54/STJ, uma vez que, nesses casos, discute-se a reparação dos prejuízos causados e não os juros sobre sanção civil; e (ii) com a prevista no art. 407, uma vez que, na hipótese em análise, não é que a obrigação seja ilíquida, ela não existe.12

Assim, a correta distinção entre a devolução simples do indébito e a sanção pecuniária impõe o reconhecimento de que os juros legais sobre a penalidade somente podem incidir a partir do trânsito em julgado da decisão condenatória. A adoção de entendimento diverso, especialmente aquele que antecipa a incidência de juros a momentos anteriores à formação da obrigação, impõe ao fornecedor penalidade retroativa, incompatível com o devido processo legal, com a segurança jurídica e com o equilíbrio nas relações de consumo.

 

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1 “A repetição em dobro representa uma punição contra o fornecedor ou prestador, independentemente da prova de prejuízo para a sua aplicação. Por sua natureza, a repetição em dobro não afasta o direito de o consumidor pleitear outros prejuízos do pagamento do indevido, caso de danos materiais e morais, premissa retirada do princípio da reparação integral dos danos (art. 6º, inc. VI, do CDC). Com se nota, a punição introduzida pelo CDC é maior do que a tratada pelo Código Civil, uma vez que a repetição da norma geral privada abrange o valor da dívida paga acrescida de correção monetária e juros legais)”: NEVES, Daniel Amorim Assunção; TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Consumidor: direito material e processual. 9. ed. São Paulo: Método, 2020, p. 424. E, ainda: “Prevista como uma sanção pedagógica e preventiva, a evitar que o fornecedor se “descuidasse” e cobrasse a mais dos consumidores por “engano”, que preferisse a inclusão e aplicação de cláusulas sabidamente abusivas e nulas, cobrando a mais com base nestas cláusulas, ou que o fornecedor usasse métodos abusivos na cobrança correta do valor (...)”: MARQUES, Cláudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 593.

2 Questão submetida a julgamento: “Discussão quanto às hipóteses de aplicação da repetição em dobro prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC.”

3 “13. Fixação das seguintes teses. Primeira tese: A restituição em dobro do indébito (parágrafo único do artigo 42 do CDC) independe da natureza do elemento volitivo do fornecedor que realizou a cobrança indevida, revelando-se cabível quando a referida cobrança consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva. Segunda tese: A ação de repetição de indébito por cobrança de valores referentes a serviços não contratados promovida por empresa de telefonia deve seguir a norma geral do prazo prescricional decenal, consoante previsto no artigo 205 do Código Civil, a exemplo do que decidido e sumulado no que diz respeito ao lapso prescricional para repetição de tarifas de água e esgoto (Súmula 412/STJ). Modulação dos efeitos: Modulam-se os efeitos da presente decisão - somente com relação à primeira tese - para que o entendimento aqui fixado quanto à restituição em dobro do indébito seja aplicado apenas a partir da publicação do presente acórdão. A modulação incide unicamente em relação às cobranças indevidas em contratos de consumo que não envolvam prestação de serviços públicos pelo Estado ou por concessionárias, as quais apenas serão atingidas pelo novo entendimento quando pagas após a data da publicação do acórdão”: Relator Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em 21/10/2020, DJe de 30/3/2021.

4 “A aplicação da sanção civil do pagamento em dobro por cobrança judicial de dívida já adimplida (cominação encartada no artigo 1.531 do Código Civil de 1916, reproduzida no artigo 940 do Código Civil de 2002) pode ser postulada pelo réu na própria defesa, independendo da propositura de ação autônoma ou do manejo de reconvenção, sendo imprescindível a demonstração de má-fé do credor.” (REsp n. 1.111.270/PR, relator Ministro Marco Buzzi, Segunda Seção, julgado em 25/11/2015, DJe de 16/2/2016.)

5 REsp n. 1.891.409/MG, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 7/4/2025, DJEN de 10/4/2025; e AgInt no REsp n. 1.433.215/SC, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 7/12/2020, DJe de 10/12/2020.

6 Nesse sentido, Álvaro Villaça Azevedo afirma que os juros de mora existem para punir o que se aproveita do alheio, como uma sanção: “Entretanto, mesmo que não se convencionem os juros moratórios, ou se forem convencionados sem taxa estipulada, ou, ainda, quando provierem de determinação de lei, sempre serão devidos a taxa legal. A vontade da lei, aqui, existe para punir o que se aproveita do alheio, como sanção inibitória dessa atividade ilícita”: AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações e responsabilidade civil. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2011 – (Curso de direito civil), p. 203. No mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira indica que os juros “Podem, ainda, ser moratórios ou compensatórios. Os primeiros são devidos como pena imposta ao devedor em atraso com o cumprimento da obrigação”: PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – V. II / Atual. Guilherme Calmon Nogueira da Gama. 29 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 119.

7 Em sentido semelhante, tratando de sentença da ação revisional, que possui natureza constitutiva-condenatória, Nelson Nery Jr. sustenta que os juros de mora no pagamento do novo aluguel fixado só é devido após o trânsito em julgado: “Se a obrigação ao pagamento do novo aluguel fixado na sentença só se constitui com o trânsito em julgado da mesma, lógico é que se reconheça que os juros moratórios só poderão incidir se o devedor não efetuar o pagamento após o trânsito em julgado da sentença fixadora do novo aluguel. É dizer, apenas se houver a impontualidade no pagamento do novo aluguel fixado e se essa impontualidade ocorrer após o trânsito em julgado da sentença é que os juros moratórios serão devidos”: JÚNIOR, Nelson Nery. Mora. Conceito. Termo a quo para fluência de juros. Soluções Práticas de Direito - Nelson Nery Junior | vol. 6/2014 | p. 151 - 168 | Set / 2014 DTR\2014\17361.

8 “As normas jurídicas que põem no ordenamento as sanções tributárias integram a subclasse das regras de conduta e ostentam a mesma estrutura lógica da regra-matriz de incidência. Tem uma hipótese descritora de um fato do mundo real e uma consequência prescritora de um vínculo jurídico que há de formar-se entre dois sujeitos. A proposição hipótese está ligada à proposição-tese ou consequência pelo conectivo dever-ser na sua função neutra, enquanto outro conectivo deôntico, modalizado nas formas permitido, obrigado ou proibido, une os sujeitos da relação – credor e devedor”: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 469.

9 LAURENTIIS, Thais de. Restituição de tributo inconstitucional. São Paulo: Noeses, 2015. p. 192. No mesmo sentido é o que ensina Paulo de Barros Carvalho: Na mesma linha garantidora dos limites da atividade administrativa e dos direitos subjetivos do contribuinte, ressalva o CTN, no art. 167, que a restituição total ou parcial do tributo dá lugar à restituição, na mesma proporção, dos juros de mora e das penalidades pecuniárias, salvo as referentes a infrações de caráter formal não prejudicadas pela causa da restituição. E em seu parágrafo único: A restituição vence juros não capitalizáveis, a partir do trânsito em julgado da decisão definitiva que a determinar”: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 485.

10 AgInt nos EDcl no REsp n. 2.029.860/MG, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 21/8/2023, DJe de 23/8/2023.

11 "AGRAVO DE INSTRUMENTO. LITIGÃNCIA DE MÁ-FÉ. TERMO INICIAL PARA CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS. 1. A incidência dos juros e da correção monetária é decorrência lógica de toda e qualquer condenação. 2. Não há dúvida, portanto, de que a penalidade por litigância de má-fé é também corrigida monetariamente a partir da data de seu arbitramento, ou seja, desde a data, no caso em exame, da publicação da decisão proferida nos embargos de declaração que fixou, em definitivo, o valor da condenação por litigância de má-fé. 3. Também, e pelo mesmo fundamento, incidem juros de mora sobre a penalidade por litigância de má-fé, desde que, é óbvio, haja mora do devedor, com termo inicial a partir do momento em que se verifique a exigibilidade da condenação, ou seja, desde o trânsito em julgado da mesma decisão que fixou a penalidade.” (TJRJ. 0014007-94.2020.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). JOSÉ CARLOS MALDONADO DE CARVALHO - Julgamento: 03/12/2020 - PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL)

12 Sobre a discussão envolvendo o termo inicial dos juros de mora nos casos previstos no art. 407, vide: TEPEDINO, Gustavo; VIÉGAS, Francisco. Notas sobre o termo inicial dos juros de mora e o artigo 407 do Código Civil. SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 21, n. 1, p. 55-86, Mar/2017.

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão & Lins Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.