Migalhas de Peso

Bitcoins em velocidade de "dobra"

Por enquanto sinto o forte cheiro de uma corrente da felicidade, na qual os primeiros serão os primeiros e os últimos os últimos mesmo, que ficarão vendo os navios carregados de bitcoins afundando.

9/4/2014
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Notícias neste prestigioso Migalhas, do dia 8/4/14 nos deram conta que a Receita Federal passou a equiparar os bitcoins a ativos financeiros para o fim de sua informação como "outros bens" nas declarações de bens e, quando for o caso, objetivando o pagamento do imposto correspondente pelos seus titulares. A notícia não diz, mas parece que a Receita não aceitará pagamento em tal "moeda", mas apenas no nosso não muito velho, mas já bem conhecido real.

Mas, afinal de contas, o que é um bitcoin? Para simplificar a explicação, trata-se de uma moeda eletrônica que foi criada no ambiente virtual e que nele circula.

Suponhamos que este autor desejasse criar uma moeda dessa espécie, à qual desse o nome de bitduclerc. Assim sendo, eu anuncio no mercado que emiti um bilhão de bitduclercs e que aceito fazer negócios os dando em pagamento. Já que tal moeda seria virtual, naturalmente os bens a serem comprados também deveriam ter a mesma característica e, de tal forma, eu teria apenas criado mais um joguinho do tipo banco imobiliário, embora eletrônico.

Não é essencial para tal fim, mas eu poderia fazer outra coisa, para dar maior credibilidade à moeda da minha invenção. Se eu tivesse, eu poderia separar um bilhão de reais (patrimônio de afetação) e os destinaria como capital do meu banco eletrônico, fazendo um registro em cartório. Isto seria o lastro da minha nova moeda.

Mas o meu interesse é fazer negócios no mundo real, dando em pagamento a minha moeda eletrônica, mais ou menos a mesma coisa que a Coréia do Norte procura fazer com o que quer que seja usado como moeda naquele país fora da curva, em palavras da moda.

Digamos que eu ache pessoas interessadas em fazer negócios comigo, dada a facilidade operacional, que leva a pagamentos e recebimentos instantâneos, sem fronteiras e sem regulação. Basta que as partes passem a ter confiança umas nas outras, o que dependerá de muitos fatores. E isto parece já ter acontecido, pois se teria formado um mercado da ordem de bilhões de bitcoins.

Considerando que viesse a existir um mercado de bitduclercs, então eu poderia comprar qualquer coisa do mundo físico usando-os em pagamento. Mas o pressuposto seria o estabelecimento de uma taxa de câmbio entre a minha moeda e as do mundo real, uma vantagem considerável, especialmente se ela viesse a evoluir para a categoria moeda conversível, isto é, aceita em todos os mercados do mundo.

Dado um sistema de câmbio flutuante, como seria o do Brasil (tem que ainda acredita em contos da carochinha), o mercado estabeleceria a taxa, que mudaria conforme diversos fatores, inclusive o humor dos governantes; o resultado de campeonatos internacionais; a escalação de um candidato a presidente; um PIBÃO; ou um pibinho, etc.

Cabe uma perguntinha indigesta? Onde estarão depositados os meus bitduclercs? A resposta é simples, numa conta que eu mesmo abri e que eu mesmo administro no Banco Eletronico Duclerc (fora da esfera de atuação do Banco Central do Brasil), fazendo lançamentos a débito e a crédito conforme os negócios efetuados. O meu ganho estará em dois momentos: (i) no lucro que eu tiver ao comprar um bem no mundo real pagando em bitduclercs e na venda por preço mais elevado, de volta ao mundo físico pela mesma moeda. Isto tem o nome de arbitragem. feita entre mercados diversos.

Mas suponhamos que eu não tenha cabeça para negócios e aplique boa parte do meu dinheiro no mundo real no ramo do pré-sal, ou empreste para certos países que andam para lá de inadimplentes aqui pela América Latina. Neste caso eu terei um grande prejuízo em real, dólar, ou seja lá o que for e não terei condições de retornar para o meu banco de bitduclercs a mesma quantidade que saquei nele. Então eu não serei capaz de honrar minhas obrigações em tal moeda eletrônica. Se a coisa chegar a um nível extremo, meu banco quebrará e a minha moeda passará a se chamar bitconceição, que, pelo que eu me lembro muito bem, onde está ninguém sabe, ninguém viu.

Mas o inverso poderá ter o mesmo desfecho. Eu perco a maior parte dos meus bitduclercs em maus negócios no mundo eletrônico e eu e os meus credores estaremos quebrados no mundo real.

Poderia demorar um pouco mais, mas já que eu sou muito burro para negócios – não façam mal juízo de mim pensando que eu cedi à tentação e saquei todo o meu lastro em moeda real e me mandei para um país que não tem acordo de deportação com o Brasil – é que eu não era mesmo do ramo mercantil, um verdadeiro Rei Midas ao contrário, que quebraria de qualquer jeito.

Um fator relevante quanto aos meus bitduclercs é que eles não têm valor forçado, pois não são moeda emitida pelo Estado, de sua responsabilidade. Desta forma, sua aceitação não pode ser determinada por um juiz e se dará como o cartaz no caixa das padarias: "Não aceitamos cheques... nem bitduclercs". Somente os aceita quem assim desejar, sob o seu próprio risco.

Os economistas que me digam se essa invenção tem alguma base econômica, e se ela seria uma expressão da famosa criatividade dos comerciantes, que vem desde a Idade Média. Eu estou perplexo. Por enquanto sinto o forte cheiro de uma corrente da felicidade, na qual os primeiros serão os primeiros e os últimos os últimos mesmo, que ficarão vendo os navios carregados de bitcoins afundando no oceano distante, sem qualquer possibilidade de resgate.

Tudo bem. Alguém já disse que a coisa mais difícil do mundo é manter um trouxa junto do seu dinheiro.

E cá para nós, Dona Receita, qual a cotação pelo qual eu deverei declarar os meus bitduclercs se um dia os emitir, para fazer a minha declaração? Um por um não dá, não é verdade? Seria covardia, um verdadeiro caso de expropriação descarada.

Ah, sim, e o que têm os bitcoins com a "velocidade de 'dobra'"? Fácil. Se o capitão Kirk acerta todas as vezes que engata a marcha de sua nave para alcançá-la e assim chegar ao outro lado do universo, duvido que o mesmo aconteça com tal moeda. Mais fácil será ela bater de cara com a lua ou bem mais perto, no Pico do Jaraguá quando lançada aqui de São Paulo.

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* Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é consultor do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados e professor de Direito Comercial da USP.


Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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