Migalhas de Peso

Proibindo o proibido: a Câmara de Vereadores de São Paulo e a Uber

Gustavo Justino de Oliveira e Caio Cesar Figueiroa

Não são poucos os que defendem que o arcabouço legal apresentado poderia ser compreendido de outra forma, fazendo-se uma interpretação conforme a Constituição.

18/9/2015
Gustavo Justino de Oliveira Caio Cesar Figueiroa e

Reiterando posicionamento firmado na primeira sessão de votação, a Câmara Municipal de São Paulo se posicionou em definitivo a favor do Projeto de Lei nº 349/2014, de autoria do vereador Adilson Amadeu (PTB), que proíbe o uso de carros particulares cadastrados em aplicativos para o transporte individual de passageiros no âmbito da capital. Independentemente da sanção ou veto do prefeito Haddad (PT), é possível concluir que os esforços do PL só estão replicando algo que já está positivado, isto é, considerando o quadro de normas que regulamentam o exercício da atividade econômica de transporte individual de passageiros, hoje, os motoristas parceiros da Uber já atuam em plena ilegalidade.

Apresentando sucintamente o contexto regulatório que nos permite chegar a esta conclusão, devemos partir das competências distribuídas pela Constituição Federal para disciplinar sobre trânsito e transporte, bem como sobre as diretrizes da Política Nacional de Transportes (art. 22, incisos IX e XI). Neste sentido, as normas infraconstitucionais que abordam os serviços de transportes de passageiros individual foram abordadas em três específicas legislações: (i) o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), (ii) a Lei Federal que regulamenta a profissão dos taxistas e (iii) a Lei Federal das diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU).

Dispõe o CTB, no seu art. 135, que os veículos empregados para qualquer serviço remunerado devem estar "devidamente autorizados pelo poder público concedente". Certamente não haveria empecilho da Uber em relação a esta norma, pois na ausência de regulamentação, prevalece a liberdade de empresa, nos termos do art. 170, parágrafo único da Constituição. A Lei que regulamentou a profissão dos taxistas, por sua vez, conferiu suposto regime de exclusividade para a categoria para o transporte público individual de passageiros. Apesar da Uber defender ferrenhamente que a prestação dos serviços oferecidos pelos seus motoristas não se confunde com a atividade exercida pelos taxistas, uma vez que sua atividade se enquadraria na modalidade de transporte privado individual, a Lei Federal que entabulou as diretrizes da PNMU define claramente quais as modalidades de transporte urbano são reconhecidas por lei.

O art. 4º da Lei Federal nº 12.587/2012 (diretrizes da PNMU) apresenta as definições contidas no seu corpo normativo, identificando dentre seus conceitos uma única modalidade para o transporte individual de passageiros. No conceito do inciso VIII, temos: "transporte público individual: serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas". Há, no mesmo artigo, inciso X, definição para o transporte motorizado privado. O instituto é definido pelo legislador como "meio motorizado de transporte de passageiros utilizado para a realização de viagens individualizadas por intermédio de veículos particulares". Parece claro que o intuito do legislador ao definir esta última modalidade de transporte em nada se relaciona com a exploração de uma atividade econômica em sentido estrito.

E nem poderia ser diferente, pois caso o legislador tivesse a real intenção de permitir a exploração da atividade econômica destes serviços com total liberdade, haveria a necessidade de revogar ou alterar as legislações anteriores, seja o Código de Trânsito por exigir a autorização para sua exploração, seja a norma que regulamentou a profissão dos taxistas por constituir regime de exclusividade para a categoria.

Vale ainda registrar outro aspecto. Ao retomar o conceito dado pelo inciso VIII do art. 4º da Lei de diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, questiona-se se os serviços ofertados pelos motoristas da Uber escapariam de seu enquadramento. Ainda que a Uber alegue que seus serviços não estão indistintamente abertos ao público, parece razoável que o legislador não aceitou o transporte de pessoas por mera liberalidade de contratação ante a ausência de fiscalização do Poder Público. A estrutura da norma, na verdade, revela conclusão contrária, no sentido de que independente da classificação da atividade de transporte que será explorada, a livre iniciativa não estará totalmente livre da regulação para operar. Um bom exemplo de serviços de transporte privado de passageiros é o caso das peruas escolares. Veja que até mesmo nesta modelagem, a Lei da PNMU (art. 11) condiciona o exercício da atividade à autorização do poder público.

Vale registrar outro fator importante que a Lei da PNMU aborda. Ela atribuiu a competência de organização e fiscalização dos serviços de transporte individual de passageiros aos Municípios, atendidas as preocupações mínimas voltadas para segurança dos usuários, qualidade dos serviços e controle de preços (art. 12). Na cidade de São Paulo, o transporte individual de passageiros é classificado como serviço de interesse público desde o final da década de 60 (Lei Municipal nº 7.329/1969), e na condição de atividade relevante para a coletividade deve se submeter à fiscalização mediante autorização do poder público. A vetusta lei, no entanto, só condiciona a esta autorização os veículos de aluguel providos de taxímetro.

Todavia, a Lei Municipal nº 15.676/2012 veda expressamente a prestação de serviços de transporte individual de passageiros, por meio de remuneração, sem a devida autorização da prefeitura para esta finalidade: "Art. 1º. É vedado o transporte remunerado individual de passageiros sem que o veículo esteja autorizado para esse fim". É dentro deste panorama normativo que se chega a conclusão indicada inicialmente: os serviços prestados pelos motoristas parceiros da Uber já são ilegais. Considerando que já há previsão legal vedando a prestação de serviços de transporte individual de passageiros sem a respectiva autorização pelo município, a norma, se aprovada, será de conteúdo repetitivo.

Não são poucos os que defendem que o arcabouço legal apresentado poderia ser compreendido de outra forma, fazendo-se uma interpretação conforme a Constituição. A técnica de interpretação conforme a Constituição, todavia, não pode flexibilizar a norma ao ponto de alterar o sentido de "proibido" para "permitido". O problema da atual conjuntura regulatória é que os motivos que antes ensejavam uma intervenção indireta do Estado foram atenuados pela implementação de novos modelos de negócio, uma vez que a tecnologia se mostrou muito mais eficiente para amenizar as preocupações da regulação da atividade analisada.

Sob o ponto de vista técnico-científico, malabarismos hermenêuticos para desvirtuar o sentido de uma norma não merecem prosperar. Se temos um problema em relação ao desenho regulatório de uma atividade, a solução, inevitavelmente, será conferir uma nova modelagem que permita atender, acima de tudo, ao interesse dos consumidores enquanto destinatários finais destes serviços.

Para que a legislação alcance seus objetivos, não basta introduzir arranjos institucionais importados, seja da Califórnia, Nova York ou Detroit, segundo a máxima one size, fits all. O simples transplante de instituições e modelos regulatórios tendem a surtir efeitos distintos caso não seja ponderada as peculiaridades que o destinatário destes arranjos está submerso. É preciso compreender as singularidades institucionais, isto é, dada a evolução das razões que ensejaram uma intervenção estatal tão intensa no transporte individual de passageiros, questiona-se como conciliar o novo modelo de transportes sem prejudicar a atuação do modelo anterior, que ainda exerce significativo papel no arranjo da mobilidade urbana.

Reformas sempre enfrentam um cenário de incerteza em relação ao futuro, o que poderá levar a um adiamento das decisões. É possível uma terceira via, assim como já apontou o CADE no relatório oficial sobre os impactos econômicos da Uber em relação aos serviços de táxi, de modo que seja possível conciliar a existência entre ambos os modelos de transporte, seja fomentando a concorrência em prol de todos os usuários ou estabelecendo assimetrias regulatórias que equalizem (no mínimo) as condições na qual os prestadores destes serviços se submeterão.

Não obstante a atual conjuntura normativa, inovações como a Uber carregam pontos positivos na medida em que ensejam melhorias na qualidade dos serviços para seus usuários. De toda forma, a implementação de novas matrizes regulatórias não poderá fugir do único instrumento hábil a alterar a realidade já consolidada, a lei. A Uber pode ter sua atividade reconhecida pela legislação brasileira, mas, antes de tudo, é preciso respeitar o fluxo da democracia ao invés de continuar dirigindo na contramão.

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*Gustavo Justino de Oliveira é Professor de Direito Administrativo na USP e fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados.

*Caio Cesar Figueiroa é Professor Assistente de Direito Econômico na UNIB, advogado em Direito Regulatório e Infraestrutura no escritório Justino de Oliveira Advogados.

Gustavo Justino de Oliveira

Professor Doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília), árbitro, mediador, consultor, advogado especializado em Direito Público. Membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

Caio Cesar Figueiroa

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