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Muro do contraditório nas provas digitais - acesso integral aos dados brutos

Uma análise da jurisprudência do STF em consonância ao devido processo legal.

9/7/2025
Antonio Belarmino Junior , Dellano Sousa e Joaquim Bartolomeu Ferreira Neto

Em tempos de virtualização da persecução penal, em que o digital permeia todas as etapas do processo, o advogado criminalista continua a enfrentar um antigo e grave obstáculo: o acesso integral aos elementos de prova já documentados nos autos. Trata-se de um paradoxo processual contemporâneo. Apesar da digitalização judicial, persiste um verdadeiro muro de invisibilidade probatória, que impede a defesa técnica de analisar a integralidade das informações extraídas de dispositivos eletrônicos, especialmente os dados brutos oriundos de interceptações, extrações forenses e outros meios de obtenção de prova digital.

A ilusão do “já documentado” e os limites do contraditório

A expressão “já documentado nos autos”, prevista na súmula vinculante 14 do STF, tem sido interpretada de forma reducionista por diversos magistrados, que restringem o acesso da defesa a meros relatórios em PDF, capturas de tela ou resumos produzidos por autoridades policiais ou peritos oficiais. Contudo, a prova digital, por sua natureza técnica e volátil, exige acesso ao conteúdo integral, com preservação da cadeia de custódia, além da possibilidade de reprodução e auditoria independente.

Hoje, a prática forense em smartphone, por exemplo, utiliza diferentes métodos de extração digital, entre os quais:

Tais procedimentos produzem um volume massivo de dados, cuja análise é fundamental a utilização de softwares forenses especializados, por exemplo, IPED (desenvolvido pela Polícia Federal), Cellebrite Physical Analyzer ou Magnet AXIOM, e cuja interpretação requer conhecimentos técnicos avançados. Por isso, negar o acesso ao material bruto implica cerceamento de defesa e violação ao contraditório substancial.

A reclamação constitucional 78.571/PI e o precedente garantista do STF

Em recente e paradigmática decisão, o STF, por meio do ministro Edson Fachin, julgou procedente a reclamação constitucional 78.571/PI, reconhecendo o direito da defesa ao acesso integral às mídias e documentos que fundamentaram interceptações telefônicas. O caso contou com a atuação direta de um dos autores deste artigo, como advogado do reclamante.

O STF fixou um importante marco processual:

"Não cabe ao magistrado censurar ou protelar, aprioristicamente, o acesso a material já documentado, sob a justificativa de que seria ‘desnecessária’ sua utilização no atual momento processual. A opção de utilizar ou não, e em que momento utilizar, os elementos de prova existentes é exclusiva das partes..."

Essa compreensão está em consonância com o pensamento de Luigi Ferrajoli, Scarance Fernandes e tantos outros processualistas, ao reafirmar que não há contraditório sem acesso pleno e tempestivo à prova. A defesa não pode ser obrigada a confiar cegamente em relatórios produzidos unilateralmente - o contraditório demanda simetria epistêmica e possibilidade de refutação técnica.

A contribuição de Alexandre Morais da Rosa: Teoria dos jogos e disparidade digital

O professor Dr. Alexandre Morais da Rosa, em sua obra "Guia do Processo Penal Estratégico: De Acordo com a Teoria dos Jogos e o MCDa-C", defende que o processo penal deve ser lido à luz da racionalidade estratégica. Para ele, o contraditório somente se realiza de forma autêntica quando há simetria de acesso à informação probatória, evitando o que denomina de "disparidade de armas digital".

Em artigo publicado na ConJur (“Disparidade de armas digital no processo penal híbrido”), o autor alerta que, no contexto digital, a defesa frequentemente é colocada em desvantagem técnica, sem acesso às ferramentas e à íntegra dos dados que a acusação manipula com ampla liberdade. Essa assimetria informacional compromete o devido processo legal e fragiliza o contraditório.

No episódio #259 do podcast Criminal Player, Morais da Rosa reforça a necessidade de que a defesa tenha acesso às mesmas ferramentas forenses e dados brutos que embasaram a denúncia ou decisões cautelares, pois só assim se evita a formação de uma narrativa acusatória blindada.

Conclusão: O garantismo digital como prática cotidiana

Não é admissível que o processo penal funcione como um espetáculo de sombras, onde a prova aparece fragmentada, filtrada ou inacessível à defesa. A cadeia de custódia precisa ser auditável, a prova digital deve ser compartilhada em sua integralidade e a simetria informacional deve ser garantida.

Certo é que os advogados de qualquer investigado, têm direito assegurado ao acesso amplo aos elementos de prova já documentados em autos, ainda que em andamento e sob segredo de justiça, sendo que a ausência de manifestação constitui grave violação e verdadeiro atentado ao exercício da ampla defesa, tudo em consonância com o entendimento sumular consolidado (súmula vinculante 14 – STF) que reconhece a essencialidade da advocacia na atividade jurisdicional do Estado, conforme prevê o art. 133 da Constituição Federal (“O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”), aliado ainda ao rol de direitos e prerrogativas elencados no art. 7º da lei Federal 8.906/1994, especialmente quanto ao acesso e exame de elementos de investigação de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos em meio físico ou digital.

A decisão do STF na reclamação 78.571/PI representa uma verdadeira ruptura no muro do contraditório e uma oportunidade histórica de reequilibrar o processo penal digital. Cabe aos operadores do direito, especialmente à advocacia criminal, exigir sua plena efetivação - não apenas como jurisprudência, mas como prática forense cotidiana.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação Constitucional nº 78.571/PI. Relator: Min. Edson Fachin. Julgado em 13 de maio de 2025. Disponível em: www.stf.jus.br

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal Estratégico: De Acordo com a Teoria dos Jogos e o MCDa-C. São Paulo: Emais Editora, 2021.

MORAIS DA ROSA, Alexandre. "Disparidade de armas digital no processo penal híbrido". ConJur, 17 de maio de 2024. Disponível em: ConJur

Podcast Criminal Player #259: "O que você deveria saber sobre provas digitais". Disponível em: Spotify Criminal Player

STEFANO, LEANDRO MORALES BAIER. Dados Ocultos, arte e ciência da extração forense em dispositivos móveis.

Antonio Belarmino Junior

Doutorando pela Universidade de Salamanca, Mestre em Direito Penal e Ciências Criminais- Sevilha, Pós Graduado em Ciências Criminais - FDRP/USP, ex-Presidente da ABRACRIM SP, Professor e autor.

Dellano Sousa

Dellano Sousa é advogado criminalista, especialista em provas digitais e em computação forens, é presidente da Comissão de Investigação Defensiva da ABRACRIM-CE.

Joaquim Bartolomeu Ferreira Neto

Perito digital com certificações internacionais, especialista em contraditório da prova digital e identificação de nulidades ocultas.

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