Existe um “mantra” no “direito da insolvência”, em especial quando se trata de uma recuperação de empresa, que não cabe ao judiciário o controle de viabilidade econômica do plano de recuperação judicial, devendo somente zelar pela legalidade dos atos (v.g., REsp 2.003.989/PE, rel. min. Maria Isabel Gallotti, 4ª turma, DJEN de 4/12/2025), baseando-se esse entendimento, em grande medida, na natureza contratual da elaboração e aprovação do plano de recuperação, assumindo que o controle de viabilidade do plano e, consequentemente, da própria empresa, é exercido por seus credores.
Mas na realidade é notório o axioma do qual muitos credores concursais se valem de que “é melhor aceitar um plano ruim para receber alguma coisa do que quebrar a empresa e não receber nada”, o que expõe a falta de interesse e de participação ativa da grande maioria dos credores na elaboração do plano e fiscalização de sua viabilidade econômica e da própria viabilidade econômica da empresa, reservado esse interesse somente àqueles credores mais qualificados e essenciais ao desenvolvimento das atividades empresariais.
A premissa, até então, de que não compete ao judiciário analisar a viabilidade econômica do plano e da empresa se pauta exclusivamente na relação credor concursal e recuperanda, desconsiderando a relação com os credores extraconcursais, a quem eram relegadas tarefas hercúleas de comprovação de prescindibilidade e penhorabilidade de bens da recuperanda para a legítima satisfação de seus créditos, lutando contra planos de recuperação judicial usados como escudos de escusas para o cumprimento de qualquer obrigação que não estivesse embaixo de seu “guarda-chuva recuperacional”.
Nessas condições, muitas recuperandas acabavam focando apenas na reestruturação de seus créditos concursais, ignorando os extraconcursais.
As alterações promovidas pela lei 14.112/20 na lei de recuperação de empresas e falência foram capazes de trazer alguma equalização, ainda que tímida, para essa relação também com os credores extraconcursais - mesmo que ainda exista alguma resistência em aplicá-las -, como a exigência de respeito ao stay period (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2228766-74.2025.8.26.0000; rel. desa. Rosana Santiso; Núcleo de Justiça 4.0 em Segundo Grau - Turma IV (Direito Privado 2); Data de Registro: 24/10/2025) e a possibilidade de o juízo da recuperação manifestar-se somente sobre a essencialidade do bem penhorado, não decidindo mais sobre a penhora propriamente (art. 6º, §7º-A e §7º-B, lei 11.101/05).
É indiscutível a necessidade de também se pensar no pagamento dos créditos extraconcursais porque a responsabilidade patrimonial (concursal e extraconcursal) recai sobre um único acervo patrimonial da empresa em recuperação judicial.
Daí que se extrai a possibilidade de, eventualmente, o poder judiciário exercer o controle de viabilidade econômica do plano de recuperação judicial - e até mesmo da empresa -, extraindo-se essa possibilidade da redação do art. 73, §3º, lei 11.101/05, incluído pela lei 14.112/20:
Art. 73. O juiz decretará a falência durante o processo de recuperação judicial: [...]
§ 3º Considera-se substancial a liquidação quando não forem reservados bens, direitos ou projeção de fluxo de caixa futuro suficientes à manutenção da atividade econômica para fins de cumprimento de suas obrigações, facultada a realização de perícia específica para essa finalidade.
Dentre as possibilidades legais típicas de recuperação (art. 50) estão a cisão da empresa (inciso II), dação em pagamento (inciso IX), venda parcial de bens (inciso XI), adjudicação de ativos em pagamento (inciso XVI) e venda integral da devedora (inciso XVIII), tratando-se de formas de obtenção de capital mediante o desfazimento dos ativos.
Todavia, se quaisquer das formas de pagamento dos credores concursais previstas no plano de recuperação, como as hipóteses acima, ou mesmo o desenvolvimento da atividade empresarial, ocasionar o esvaziamento patrimonial da empresa, prejudicando sua capacidade de pagamento dos créditos extraconcursais, não reservando “bens, direitos ou projeção de fluxo de caixa futuro suficientes à manutenção da atividade econômica para fins de cumprimento de suas obrigações”, poder-se-á decretar-lhe a falência nos termos do art. 73, §3º, acima indicado.
Duas das formas mais claras de evitar essa forma de convolação em falência são, a primeira, a recuperanda espontaneamente já demonstrar que o seu plano de recuperação é suficiente para reestruturar suas dívidas concursais e ainda cumprir com suas obrigações ordinárias, e, a segunda, a realização de perícia específica, determinada pelo juízo, para essa finalidade de constatação do potencial prejuízo ao qual os credores extraconcursais e as Fazendas Públicas possam estar submetidos decorrente da substancial liquidação da empresa.
Dessa forma, entendemos, ainda que o plano de recuperação seja aprovado pelos credores concursais, prevendo condições de reestruturação e pagamento do crédito concursal de forma extremamente desvantajosa para o credor sob o argumento de ser o meio necessário para a “preservação da empresa” - outro mantra -, a viabilidade econômica do plano e da empresa pode ser periciada para identificar potenciais prejuízos aos credores extraconcursais, bastando pensar, por exemplo, a projeção de receita e faturamento estimados que, ainda que suficientes para potencialmente quitar o crédito novado, não sejam suficientemente robustos para também contemplar o crédito extraconcursal, resultando somente em adiamento da falência.
Diante desse cenário de necessário olhar e respeito sobre o crédito extraconcursal, já vemos indícios de mitigação da ideia de que ao judiciário cabe apenas zelar pela legalidade dos atos, como se fosse um árbitro equidistante no processo, podendo promover atos indispensáveis para a verificação da viabilidade econômica da recuperanda, o que é imprescindível para, de fato, garantir a recuperação somente daquelas empresas viáveis, excluindo do mercado as inviáveis e permitindo a rápida realocação útil de ativos na economia.