Estado de São Paulo deve implementar o MEPCT/SP, mecanismo estadual de prevenção e combate à tortura, órgão responsável por inspecionar locais de privação de liberdade e prevenir violações de direitos fundamentais.
Sentença é da juíza de Direito Luciana Ortiz Tavares Costa Zanoni, da 8ª vara Cível Federal de São Paulo/SP que acolheu pedido do MPF e da DPE/SP em ação civil pública.
A decisão também impôs à União a obrigação de cooperar tecnicamente com o Estado bandeirante no processo de implementação, embora tenha reconhecido que a responsabilidade operacional é estadual.
O MEPCT/SP deverá ser implantado com estrutura, orçamento e pessoal suficientes para permitir visitas periódicas a todos os estabelecimentos de privação de liberdade do Estado — presídios, unidades da Fundação Casa, hospitais psiquiátricos, entre outros.
O prazo para apresentação do plano de ação é de 180 dias, contados a partir do trânsito em julgado da decisão.
Para a magistrada, a implantação do MEPCT é um dever do Estado brasileiro decorrente de compromissos internacionais, não podendo ser tratada como política pública discricionária.
Ela reforçou que o sistema carcerário paulista — alvo de reiteradas inspeções com relatos de tortura, maus-tratos e violações à dignidade humana — exige respostas institucionais imediatas.
A juíza também reconheceu que o processo judicial em questão tem natureza estruturante, e que a intervenção do Judiciário é legítima e necessária diante da omissão do Executivo.
- Processo: 5009616-82.2024.4.03.6100
Veja a sentença.
Superlotação é só a ponta do iceberg
O IDDD - Instituto de Defesa do Direito de Defesa atuou na ação como amicus curiae, apresentando manifestações técnicas que reforçaram o caráter urgente e inadiável da medida judicial.
Na petição, o institudo ressaltou que a superlotação é apenas a face mais visível de um sistema estruturalmente degradado, marcado por:
- falta de ventilação e iluminação adequadas;
- alimentação e acesso à saúde precários;
- restrições ao banho de sol e imposição de banho gelado;
- violações sistemáticas da integridade física, em especial durante ações do Grupo de Intervenção Rápida (GIR) da Polícia Penal.
"O Estado de São Paulo possui a maior parcela da população do sistema carcerário do país. No entanto, não apenas não aderiu ao pacto como não fez qualquer esforço para criar o Comitê e instituir o Mecanismo. Essa resistência é escandalosa", afirmou Guilherme Carnelós, presidente do IDDD.
Ele destacou o paralelo com a ADPF 347, do STF, que reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, e classificou as atuais condições como formas de tortura institucionalizada.
Na ação, a Corte reconheceu que o sistema prisional brasileiro está em colapso, exigindo uma resposta estrutural e federativa.
Segundo o instituto, desde a decisão, pouco foi feito para reverter o cenário de violação, especialmente em São Paulo, que concentra mais de 30% da população carcerária nacional e opera com superlotação de 156,33%.
"O governo do Estado se preocupa em prender. Todas as propagandas que se veem são das prisões feitas. E o que acontece depois da prisão?", questionou o presidente do instituto.
Para o IDDD, a sentença da Justiça Federal é um marco na responsabilização do Estado.
"A importância da procedência dessa Ação Civil Pública é o Poder Judiciário reconhecer que esse quadro sistemático de violação de direitos não pode ser ignorado. Estamos muito satisfeitos com a sensibilidade do Judiciário em reconhecer a gravidade da situação."
- Veja a íntegra da petição.
Torturas
Relatórios do Nesc - núcleo especializado de situação carcerária da DPE/SP evidenciam a realidade degradante das prisões paulistas: jejum forçado por até 15 horas, fornecimento de água por apenas 1 hora ao dia, celas escuras e sem ventilação, e violência sistemática promovida por grupos como o GIR - grupo de intervenção rápida.
Resistência histórica
A omissão de São Paulo não é recente. Desde 2015, o MNPCT e o Subcomitê da ONU para Prevenção da Tortura recomendam a criação do mecanismo.
Em 2018, a Assembleia Legislativa aprovou o PL 464, que foi vetado integralmente em 2019 pelo então governador João Doria, sob justificativas institucionais contestadas por mais de 40 organizações da sociedade civil.
A não adesão ao Pacto Federativo para Prevenção e Combate à Tortura, instituído pela portaria 346/17 do ministério dos Direitos Humanos, reforça o desinteresse do Estado pela construção de uma rede preventiva robusta.
Na última visita ao Brasil, o Comitê da ONU contra a Tortura destacou a ausência de mecanismos preventivos eficazes em todas as jurisdições e instou o Brasil a agir com urgência.
Dignidade e o mínimo existencial
Como bem destaca o IDDD, o que está em jogo é o respeito à dignidade da pessoa humana.
A ideia de que presos devem ser tratados de forma degradante é contrária à ordem jurídica brasileira, que reconhece a dignidade como fundamento da República e impõe a todos os poderes o dever de proteção dos direitos fundamentais — mesmo de quem está sob custódia do Estado.
Regras internacionais como as regras de Mandela, o protocolo de Istambul, as regras de Havana e as regras de Bangkok complementam esse arcabouço normativo, que é constantemente violado na prática. A decisão judicial é, portanto, um passo fundamental para corrigir essa distorção e garantir, minimamente, o respeito à condição humana no cárcere.
Problema nacional
A omissão paulista se insere em um cenário nacional de violações sistemáticas de direitos humanos no cárcere.
Em 2023, o Migalhas noticiou as denúncias de tortura no presídio Elias Alves de Souza, em Itatinga/CE.
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Técnicas como a "posição taturana", o "amassamento de testículos" e espancamentos generalizados foram documentadas, levando ao afastamento da direção da unidade e à instauração de investigações.
Os métodos de tortura, longe de serem isolados, foram identificados em diversos Estados, como Ceará, Minas Gerais, Rio Grande do Norte e Pará, conforme apontado por inspeções do MNPCT desses locais.