No último dia 13, a exibição de cena da novela "Vale Tudo", da TV Globo, provocou reação imediata nos canais de atendimento da DPE/RJ - Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
A trama mostrou a personagem Lucimar, interpretada por Ingrid Gaigher, em busca de apoio jurídico para exigir pensão alimentícia para o filho. Com o incentivo de uma estudante de Direito, Lucimar toma coragem para acionar judicialmente o genitor do garoto.
O episódio gerou ampla identificação do público e resultou em um expressivo aumento na procura pelos serviços da instituição.
Veja a cena:
?? Cena da novela Vale Tudo impulsionou a busca por pensão alimentícia na Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Após a exibição em 13 de maio, o aplicativo da instituição registrou pico de 4.560 acessos por minuto, um aumento de 300%. | https://t.co/VQ87irZciw pic.twitter.com/l4Mygzrv0k
— Cenarium (@cenariumam) May 20, 2025
Segundo dados oficiais, o aplicativo da Defensoria registrou um pico de 4.560 acessos por minuto — número quatro vezes superior à média habitual, que gira em torno de mil acessos.
No mesmo período, foram realizados 1.148 agendamentos, representando um aumento de 70% em relação à média diária de 2025.
O defensor público-geral do RJ, Paulo Vinícius Cozzolino Abrahão, destacou o poder transformador da arte.
"A Defensoria Pública tem o papel fundamental de garantir os direitos do cidadão, principalmente dos mais necessitados. A discussão na ficção trouxe à tona uma realidade, infelizmente, muito comum do nosso país. No estado do Rio de Janeiro, a maior parte das nossas ações envolve a área de família e o requerimento de pensão alimentícia. A discussão de direitos na novela só vem somar e traz benefícios diretos para população, principalmente para as mulheres. Observamos um aumento imediato na procura por nosso atendimento enquanto a novela estava no ar. É fundamental que todos saibam que, mesmo quando todas as portas se fecham, a Defensoria sempre está aberta para acolher e buscar resolver questões como essa", afirmou.
Além do entretenimento
A repercussão positiva também foi comemorada pela atriz Ingrid Gaigher nas redes sociais. Para ela, o impacto da cena transcende o campo artístico.
"O poder da novela no nosso país é o poder da arte, o poder da identificação, o poder da narrativa! Dar cara e voz à Lucimar representando essa missão é uma honra! São três Maracanãs lotados de mulheres em 1 hora se inspirando na história de Lucimar, que é a história delas", escreveu a atriz.
A atriz ainda agradeceu à autora Manuela Dias por trazer o tema à novela e concluiu: "Isso pra mim é sucesso! Bora mulheres! Estamos juntas!"
A arte muda a vida
A força social das novelas brasileiras não é novidade. Diversas tramas já provocaram repercussões concretas nos serviços públicos e até influenciaram políticas públicas.
Em Explode Coração (1995), de Glória Perez, a busca de uma mãe pelo filho desaparecido mobilizou uma campanha nacional.
A novela destacou o trabalho do grupo "Mães da Cinelândia", que se reunia na Cinelândia (praça no Rio de Janeiro) para buscar seus filhos desaparecidos
Fotos reais de crianças desaparecidas passaram a ser exibidas ao final dos capítulos, além de serem impressas em bilhetes de loteria e embalagens diversas.
A campanha foi reforçada pelo programa Fantástico em 1998, resultando no reencontro de cerca de 60 crianças com suas famílias e na criação de canais institucionais para registros de desaparecidos.
Questão agrária
Outro marco ocorreu com O Rei do Gado (1996), de Benedito Ruy Barbosa, que abordou de forma inédita a reforma agrária e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
A abordagem gerou reações divergentes — tanto de sem-terra que agradeceram pela visibilidade, quanto de fazendeiros que acusaram a trama de incentivar invasões. O autor admitiu à Folha de S.Paulo que tratar do tema foi um dos maiores desafios de sua carreira: "Mexer com a questão fundiária é andar na corda bamba".
Doação de medula
Em Laços de Família (2000), a personagem Camila (Carolina Dieckmann) foi diagnosticada com leucemia mieloide aguda e mobilizou uma onda de solidariedade entre os telespectadores.
Em busca de um doador compatível de medula óssea, a trama comoveu o país — especialmente em uma das cenas mais emblemáticas da teledramaturgia nacional, quando Camila raspa a cabeça ao iniciar o tratamento.
Segundo a revista Veja, o impacto foi imediato: o número médio de inscrições mensais no Redome — Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea — saltou de 20, em novembro de 2000, para 900 em janeiro de 2001. De acordo com o Inca, até o ano 2000, havia apenas 3,5 mil doadores cadastrados; em 2001, foram registrados 6,2 mil novos cadastros.
Violência doméstica
Em Mulheres Apaixonadas (2003), a personagem Raquel, professora agredida pelo marido, encorajou milhares de mulheres a denunciarem casos de violência doméstica. Segundo o site Memória Globo, após a denúncia feita pela personagem à Dean - Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, a unidade do Centro do Rio de Janeiro registrou um aumento de mais de 40% nas denúncias.
À época, a legislação ainda previa penas brandas: no máximo um ano de prisão, geralmente substituído por doações de cestas básicas. Três anos depois, foi sancionada a Lei Maria da Penha (lei 11.340/06), que aumentou a pena para até três anos e autorizou a prisão em flagrante dos agressores.
Estudo das pesquisadoras Gisele Macedo e Verônica Meneses aponta que, em Palmas/TO, as denúncias à Delegacia da Mulher saltaram de 527 (em 2002) para 894 (em 2003), justamente durante a exibição da novela.
Tráfico humano
A novela Salve Jorge (2012), de Glória Perez, tratou o drama do tráfico internacional de pessoas, abordando com profundidade as redes de aliciamento de mulheres para exploração sexual. A trama, protagonizada por Nanda Costa no papel de Morena, escancarou um tema muitas vezes invisibilizado — e, com isso, provocou efeitos concretos na sociedade.
Segundo nota da colunista Mônica Bergamo, publicada na Folha de S.Paulo, a secretaria de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas registrou aumento nas denúncias no período de exibição da novela.
De janeiro a março de 2012, foram contabilizados 11 casos, com 85 vítimas atendidas pelo Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas — contra nove casos e 59 vítimas nos três primeiros meses do ano anterior.
A secretaria atribuiu o crescimento à maior conscientização da população, impulsionada pela ampla exposição do tema na novela.
"A abordagem do tema em Salve Jorge acaba despertando a população para a ação das máfias que comercializam pessoas", destacou a pasta.
Justiça ao alcance
Inspirada por essa conexão entre ficção e realidade, a Faculdade Baiana de Direito anunciou, por meio do NPJ - Núcleo de Prática Jurídica, a oferta de atendimento jurídico gratuito à população carente de Salvador — com foco em famílias que recebem até três salários mínimos.
Sob supervisão de professores e advogados, estagiários do curso atendem especialmente casos de Direito de Família, como pensão alimentícia e regulamentação de visitas — demandas que compõem a maior parte dos atendimentos.
"Essas são questões urgentes do cotidiano. A novela teve o mérito de despertar a atenção para um direito fundamental. E nosso papel é transformar essa consciência em acesso real à Justiça", afirma Thiago Agostinho, advogado e professor da instituição.
O NPJ também atua em áreas como Direito Trabalhista, Previdenciário, do Consumidor, Sucessões e Direitos Reais. Os atendimentos são realizados às terças e quintas-feiras, das 14h às 18h, mediante agendamento prévio.
Referência
MACEDO, Gisele Andrade; MENESES, Verônica Dantas. A telenovela Mulheres Apaixonadas e as denúncias contra a violência doméstica em Palmas/TO. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2005.