Nesta quarta-feira, 4, o plenário do STF retomou julgamento da constitucionalidade da responsabilização de redes sociais e plataformas digitais por conteúdos publicados por seus usuários.
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O processo, de repercussão geral, discute a aplicação do art. 19 do marco civil da internet.
Ministro André Mendonça, que havia solicitado vista, iniciou a leitura do voto que deverá ser concluído na quinta-feira, 5.
Confira, a seguir, os principais pontos da manifestação.
Premissas
O ministro iniciou o voto destacando que o mau uso da tecnologia é um fenômeno comum a qualquer instrumento desenvolvido pela humanidade.
No entanto, ponderou que as plataformas digitais, em sua essência, não representam ameaça à democracia nem aos valores fundamentais da sociedade contemporânea.
Ao contrário, foram inicialmente celebradas como instrumentos de fortalecimento da chamada "democracia digital", permitindo maior participação da sociedade civil nos debates públicos e ampliando o acesso ao discurso político.
Ao citar os estudiosos Andreas Jünger e Ralph Schroeder, Mendonça destacou que as plataformas não criam os distúrbios sociais — elas apenas amplificam ruídos já presentes, tornando visíveis preferências e opiniões antes marginalizadas. Para ele, a tecnologia digital permitiu novas formas de organização coletiva, expandindo a pluralidade política e social.
O ministro abordou, ainda, a formação de um novo ecossistema de comunicação social, marcado pela ruptura com os paradigmas tradicionais das mídias de massa.
Destacou a descentralização da produção e da distribuição de conteúdo como traço essencial das redes sociais, onde qualquer usuário se torna simultaneamente produtor e consumidor de informação — fenômeno que transformou radicalmente as dinâmicas comunicacionais do século XXI.
Veja o trecho:
Olhar internacional
Mendonça trouxe um panorama do direito comparado ao tratar da experiência dos Estados Unidos com a seção 230 do Communications Decency Act, norma que blinda as plataformas da responsabilidade pelo conteúdo de terceiros e oferece forte proteção à liberdade de expressão online.
Segundo o ministro, esse modelo jurídico foi essencial para o florescimento de negócios digitais inovadores, baseados na interatividade dos usuários.
Em paralelo, destacou o papel do marco civil da internet no Brasil, que, segundo especialistas, teve impacto positivo ao fomentar inovação, pesquisa tecnológica e segurança jurídica. Para o ministro, a distinção entre as plataformas digitais e os meios de comunicação tradicionais deve ser mantida: enquanto estes contam com conselhos editoriais e controle de conteúdo, as redes operam com mecanismos de autorregulação.
Ao tratar da União Europeia, Mendonça mencionou a Diretiva 2000/31/CE, que regula o comércio eletrônico e os serviços da sociedade da informação. Citou Pierpaolo Fratangelo para destacar a importância dos arts. 12 a 15 do diploma, ainda hoje basilares na delimitação da responsabilidade de provedores online.
O ministro também abordou a modernização do marco legal alemão com o Network Enforcement Act, que impôs prazos para remoção de conteúdos ilegais e instituiu obrigações de transparência e supervisão regulatória. Referiu-se às novas legislações europeias, como o DSA - Digital Services Act e o DMA - Digital Markets Act, que impõem às plataformas obrigações em matéria de direitos fundamentais, segurança do consumidor e transparência algorítmica.
No entanto, criticou o modelo europeu por não distinguir adequadamente os regimes aplicáveis às mídias tradicionais e digitais. Citando Ricardo Campos e Thomas Westin, afirmou que as novas normas europeias ainda não conseguiram responder plenamente à complexidade da comunicação multifuncional.
Mendonça observou que o marco brasileiro segue mais de perto o modelo norte-americano, com ênfase na liberdade de expressão e na autorregulação. Defendeu que a análise do art. 19 do marco civil deve ser feita à luz desse valor constitucional estruturante.
Liberdade de expressão
Ao tratar da liberdade de expressão, o ministro ressaltou que este direito ocupa posição preferencial na hierarquia dos direitos fundamentais, por ser indispensável à preservação das demais liberdades.
Advertiu que a restringir em nome da proteção do Estado democrático de direito constitui contradição lógica: o próprio modelo democrático repousa sobre a ampla liberdade de manifestação.
Mendonça citou o art. 359-T do CP, incluído pela lei 14.197/21, segundo o qual críticas aos Poderes, atividade jornalística e reivindicações de direitos não constituem crime contra o Estado Democrático de Direito. Assim, defendeu que esse tipo de manifestação deve ser preservado como expressão legítima da cidadania.
Para o ministro, a liberdade de expressão tem também dimensão coletiva, pois promove o pluralismo, o debate público e o acesso à informação. Afirmou que a verdadeira tolerância consiste na defesa das pessoas que expressam opiniões divergentes — não na aceitação acrítica de todas as ideias, mas no respeito aos que as sustentam, mesmo que se combata suas proposições com argumentos.
Ao citar John Stuart Mill, Mendonça lembrou que a liberdade de expressão abrange o pensamento íntimo e a conduta pessoal, permitindo ao indivíduo viver conforme suas convicções, mesmo que consideradas erradas ou ofensivas por outros.
Abordando diretamente as críticas às instituições, afirmou que "a Justiça Eleitoral brasileira é confiável e digna de orgulho", mas reconheceu como legítimo o direito do cidadão de duvidar ou questionar.
"No Brasil, é lícito duvidar da existência de Deus, de que o homem foi à Lua e também das instituições", disse.
Contudo, alertou que o discurso que apresentar risco claro e iminente à integridade de terceiros pode justificar responsabilização do emissor.
Veja os trechos:
Precedentes
O ministro relembrou julgados emblemáticos da Corte, como a ADIn 4.815, em que a ministra Cármen Lúcia reafirmou que a liberdade de expressão não pode ser restringida por normas infraconstitucionais. Ressaltou também o voto do ministro Ayres Britto na ADPF 130, que a descreveu como pilar da dignidade humana e da democracia.
Mencionou a ADIn 4.451, que invalidou trechos da lei eleitoral que proibiam sátiras, reforçando a proteção constitucional mesmo em ambientes politicamente sensíveis.
Citou ainda o jurista norte-americano Oliver Wendell Holmes, que defendeu a liberdade de expressão sobretudo para as ideias que se odeia, não apenas para aquelas com as quais se concorda.
Fake news
Mendonça abordou a desinformação como fenômeno complexo e historicamente recorrente. Citou Fernando Schuller para traçar paralelos entre as atuais fake news e os temores que sucederam à invenção da imprensa, com tentativas de censura aos "livros heréticos".
Defendeu que as fake news são mais sintomas do que causas das divisões sociais, consumidas principalmente por grupos que já desconfiam das instituições públicas. Citou estudos que indicam que seu alcance é limitado e que não têm poder de alterar convicções profundas.
Afirmou que as redes sociais refletem, mais do que moldam, as preferências dos usuários. E destacou que, embora a manipulação informacional seja um desafio, o crescimento da diversidade de vozes e o surgimento de verificadores independentes têm enriquecido a esfera pública — especialmente em países com democracias frágeis.
Crise representativas
O ministro alertou para um fenômeno mais preocupante: a desconexão da população com os mecanismos políticos tradicionais. Citou o exemplo do movimento "Ocupar Wall Street", marcado pela falta de coesão organizacional e ausência de propostas concretas para o debate institucional.
Segundo Mendonça, esse tipo de organização espontânea não substitui os canais formais de participação democrática. Advertiu que o combate à desinformação não pode obscurecer os benefícios de uma arena pública desordenada, mas vibrante, onde novos atores políticos surgem e desafiam o status quo.
Afirmou que combater fake news exclusivamente com medidas jurídicas pode ser contraproducente, agravando a crise de confiança social.
Disse que, embora mentir seja eticamente condenável, a censura de discursos mentirosos só se justifica juridicamente quando houver risco concreto e imediato de dano.
Confira:
Separação de Poderes
Ao final, o ministro defendeu a necessidade de respeito às balizas constitucionais da separação de Poderes. Observou que o Congresso Nacional é o foro adequado para definir normas sobre temas moralmente sensíveis, como a regulação da desinformação.
Criticou o ativismo judicial em temas de elevada controvérsia e destacou que a supremacia da CF não deve ser confundida com supremacia do STF sobre os demais Poderes.
Para Mendonça, cabe ao Legislativo, por deter legitimidade popular direta, responder aos desafios da comunicação digital, preservando os princípios democráticos e evitando a judicialização excessiva do debate público.
Concluiu que, no contexto das fake news, a atuação do Judiciário deve ser contida e respeitosa das competências institucionais, sob pena de aprofundar o ciclo de desconfiança social. A solução, reiterou, exige equilíbrio, diálogo e cooperação entre os Poderes da República.
Veja o trecho: