O Direito se vale de linguagem própria, técnica e estruturada, para classificar condutas e aplicar normas que regulam a vida em sociedade.
Contudo, esse aparato normativo nem sempre alcança a totalidade do teor humano contido nos processos.
Em certos casos, os tribunais têm recorrido a recursos simbólicos que ajudam a revelar dimensões subjetivas dos litígios, e entre esses recursos está a música.
Quando o discurso jurídico encontra limites, a força expressiva de uma canção pode ampliar a compreensão sobre a dor, a exclusão ou o sofrimento que motivaram a disputa judicial.
A música, nesse contexto, não substitui a norma, mas a complementa como meio de expressão sensível.
Humanizar a jurisprudência
Duas decisões recentes do TST ilustram como trechos de músicas foram utilizados por ministros para dar relevo ao conteúdo humano dos conflitos, sem prejuízo do rigor técnico.
A ministra Maria Helena Mallmann, da 2ª turma do TST, ao relatar um caso de dispensa discriminatória por idade, após três décadas de dedicação de um bancário à mesma instituição, citou versos da canção "Guerreiro Menino", de Gonzaguinha.
"Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E a vida é o trabalho
E sem o seu trabalho
Um homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata."
A decisão se fundamentou em dispositivos constitucionais, legislação trabalhista e tratados internacionais. Mas os versos do compositor ajudaram a comunicar algo que a linguagem jurídica sozinha não alcançaria: o impacto existencial do rompimento entre trabalho e identidade pessoal.
- Processo: 1019-55.2022.5.17.0007
Veja o acórdão.
O ministro Fabrício Gonçalves, da 6ª turma do TST, ao julgar ação de indenização por danos morais movida por familiares de uma das vítimas da tragédia de Brumadinho, citou trecho da música "Lágrima de Amor", interpretada por Beto Guedes.
"Luz e drama
O rio que passou agora é lama
Lágrima de amor
Que nenhum de nós jamais chorou."
- Veja o acórdão.
A canção simbolizou o luto coletivo causado pelo rompimento da barragem da Vale, reforçando a gravidade da perda vivida por centenas de famílias.
Essas inserções não representaram meros adornos retóricos. Foram instrumentos de comunicação com a sociedade e com os próprios jurisdicionados, conferindo às decisões um alcance simbólico que não se resume à lógica do enquadramento legal.
No STF
O Supremo Tribunal Federal também recorre à linguagem artística para expandir os horizontes interpretativos das decisões.
Em plenário, é comum que ministros citem livros, músicas, filmes ou séries para ilustrar aspectos simbólicos ou históricos dos julgamentos.
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Em setembro de 2023, ao votar na ação do marco temporal das terras indígenas, ministro Dias Toffoli fez referência à série "O Hóspede Americano", dirigida por Bruno Barreto e disponível na HBO.
A obra, que narra a expedição de Theodore Roosevelt à Amazônia brasileira guiado por Marechal Rondon, foi lembrada como forma de contextualizar historicamente o papel do Estado brasileiro nos territórios indígenas.
Relembre:
No mesmo mês, ministra Cármen Lúcia citou referências culturais durante voto na AP 1.060, que tratou dos atos antidemocráticos: o livro O Grande Confronto, de Raphaël Glucksmann, e o filme O Testamento do Dr. Mabuse, de Fritz Lang.
As obras foram evocadas para exemplificar os mecanismos simbólicos e retóricos usados por movimentos autoritários.
No julgamento da ADPF 779, sobre a chamada "legítima defesa da honra", a ministra Rosa Weber (atualmente aposentada) citou Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, ressaltando como a literatura pode oferecer subsídios para compreender padrões patriarcais ainda presentes nas estruturas sociais e jurídicas.
Já no emblemático julgamento de 2019 sobre a execução provisória da pena, os ministros também recorreram ao repertório cultural.
Alexandre de Moraes citou Memórias da Segunda Guerra, de Churchill, e Luiz Fux evocou Shakespeare, com um trecho de Júlio César, para reforçar suas posições sobre responsabilidade institucional e efeitos das decisões judiciais.
A tradição ainda foi reafirmada por Luís Roberto Barroso, em voto sobre cotas de exibição de filmes nacionais nos cinemas. Ao defender a importância da cultura, o ministro citou os versos da música Comida, da banda Titãs: "A gente não quer só comida / A gente quer comida, diversão e arte."
Esses exemplos demonstram que, mesmo no vértice do sistema judiciário, a linguagem artística não está dissociada da técnica jurídica.
Ao contrário, pode ser ferramenta legítima de aproximação entre o Direito e a vida real.