Migalhas Quentes

Juízes transformaram a toga em ponte com a realidade social; conheça

Exemplos no Brasil e no exterior mostram que Justiça ganha força quando deixa os salões solenes.

29/9/2025

A Justiça não se constrói em torres de marfim, mas em pontes que alcançam a vida concreta.

Quando juízes abandonam, ainda que por instantes, a liturgia do fórum e se sentam na calçada, no salão comunitário ou levam a rotina de trabalho com olhar humanizado, o Direito reencontra sua vocação mais genuína: servir pessoas.

Conheça magistrados lembrados pela sensibilidade e atuação empática.

Audiência na calçada

Em Maceió/AL, o juiz Federal Antônio José de Carvalho Araújo, da 9ª vara, realizou audiência fora das paredes do fórum: cadeiras foram dispostas na calçada do bairro da Levada para ouvir Amarildo Francisco dos Santos Silva, 57 anos, em situação de rua há mais de uma década.

O processo tratava do direito de Amarildo ao BPC – Benefício de Prestação Continuada.

O encontro teve origem em um gesto singelo de um assessor, que parou para ouvir Amarildo em vez de simplesmente recusar um pedido de ajuda. A conversa revelou a existência do processo, que, por coincidência ou destino, estava nas mãos do magistrado.

Diante da vulnerabilidade e do estado de saúde do homem, a audiência improvisada assegurou não só um benefício mensal, mas também um efeito simbólico: a Justiça nas ruas, próxima de quem mais precisa.

Como destacou o magistrado, em entrevista ao Migalhas, "uma folha de papel não serve de nada se não se traduzir em direitos concretos".

Casamento coletivo no quilombo

Em Cavalcante/GO, a juíza de Direito Isabela Rebouças Maia, recém-chegada à comarca, viveu experiência semelhante de aproximação.

Em vez de apenas celebrar, ela mesma se tornou noiva em um casamento coletivo com 45 casais da comunidade quilombola Kalunga.

A iniciativa integrou o projeto Raízes Kalungas – Justiça e Cidadania, do TJ/GO, que busca ampliar o acesso a direitos e valorizar a identidade quilombola.

Para a magistrada, nada a diferenciava das demais noivas:

"É uma emoção muito grande poder casar junto à comunidade, que me acolheu maravilhosamente bem."

O gesto reforçou o simbolismo de um Judiciário que não apenas presta serviços formais, mas compartilha experiências de vida ao lado daqueles a quem serve.

Veja:

Linguagem da empatia

Em Propriá/SE, às margens do rio São Francisco, o juiz Federal Kleiton Ferreira, do TRF da 5ª região, tornou-se conhecido nas redes sociais pela forma humana e acessível de conduzir audiências.

Consciente do nervosismo que as partes sentem diante da toga, ele busca "quebrar o gelo" e estabelecer uma comunicação mais clara e empática.

Nascido em Arapiraca/AL, Kleiton foi advogado por dez anos antes de ingressar na magistratura em 2020.

Durante a pandemia, percebeu a dificuldade das pessoas em audiências virtuais e decidiu adotar uma postura acolhedora, que depois passou a compartilhar em vídeos.

O contraste com o estereótipo do "juiz sisudo" fez com que seu trabalho viralizasse, revelando que a boa comunicação também é forma de garantir o acesso à Justiça.

Além da atuação na vara, o magistrado mantém o perfil @KleitonEscritor, no qual publica reflexões e narrativas. 

Relembre a entrevista:

Juiz da compaixão

Reconhecido mundialmente pelo programa Caught in Providence, Frank Caprio transformou pequenos casos de trânsito em grandes lições de empatia.

Nascido em Providence, Rhode Island, Caprio se tornou juiz em 1985 e levou ao tribunal as lições herdadas do pai, motorista de caminhão de leite que jamais deixava de entregar às famílias com crianças, mesmo sem pagamento.

Exerceu a magistratura por quase quatro décadas, chegando a juiz-chefe da Corte Municipal de sua cidade natal. Aposentou-se em 2023 e faleceu em 20 de agosto deste ano, aos 88 anos, vítima de câncer no pâncreas.

Caprio ganhou projeção internacional ao exibir julgamentos em que não se limitava a aplicar a lei de forma fria.

Sua marca era ouvir os acusados, conhecer suas histórias e considerar o impacto humano de cada decisão.

"Não uso um distintivo sob minha toga, uso um coração sob minha toga", costumava dizer.

Veja momentos da atuação do juiz:

Ao longo dos anos, a televisão e as redes sociais transformaram seu pequeno tribunal em palco global de reflexão sobre o sentido da Justiça. 

Em entrevista à CBS, perguntaram-lhe quem merecia misericórdia em seu tribunal. "Todo mundo", respondeu.

E explicou: "Sou um juiz municipal lidando com ofensas de menor potencial ofensivo. Em alguns casos há previsão de prisão, mas quando vejo alguém multado em US$ 180 e sem condições de pagar o aluguel ou colocar comida na mesa... isso é justiça?".

Caprio deixava claro que sua atuação não era permissividade, mas uma concepção de Justiça que reconhece o humano por trás da infração.

Para ele, um juiz não deveria ser um justiceiro embriagado de arrogância, mas alguém justo - e, acima de tudo, misericordioso. "Prefiro exagerar na compaixão do que exagerar na punição", dizia.

Justiça que respira

Quatro cenários distintos revelam uma mesma mensagem: a toga não pode ser encarada como escudo que distância, mas como ferramenta que aproxima.

Quando a Justiça se mistura ao cotidiano, ela deixa de ser mero texto legal e se torna prática social, capaz de transformar realidades.

Ao lado de pessoas em situação de rua, de comunidades tradicionais ou de cidadãos comuns que enfrentam infrações diárias, esses juízes mostram que o Direito respira quando se lembra de que lida, acima de tudo, com gente.

Veja a versão completa

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