A operação policial deste 28 de outubro nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, já soma mais de 120 mortos, entre civis e policiais - o maior número já registrado em uma ação desse tipo na história do Rio de Janeiro.
As cenas de dezenas de corpos enfileirados em praça pública escancararam o colapso da política de segurança fluminense, e reacenderam o debate sobre a eficácia das medidas impostas pelo STF na ADPF 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, julgada em abril deste ano. O processo trata justamente da redução da letalidade policial e do controle das operações em comunidades.
O episódio levanta o questionamento: o Estado do RJ descumpriu determinações do STF ao conduzir a chamada operação Contenção?
Descumprimento das decisões do STF
O acórdão do STF na ADPF 635 é claro ao exigir que o Estado do Rio de Janeiro adote medidas de controle, transparência e redução da letalidade policial, como o uso de câmeras corporais, a preservação de locais de crime, a presença de ambulâncias em ações com risco de confronto e a remessa imediata de relatórios ao Ministério Público.
As primeiras informações sobre a operação, contudo - envolvendo remoção irregular de corpos, ausência de socorro imediato e agentes sem câmeras de gravação - indicam que essas exigências não foram cumpridas.
Ainda que o governo alegue combate a organizações criminosas, o descumprimento de protocolos fixados pela Corte pode configurar violação direta da decisão judicial.
Na prática, caberá agora ao STF avaliar se houve desrespeito às ordens estruturais da ADPF e se será necessário impor novas medidas coercitivas ou de responsabilização ao Estado.
"Deboche"
O advogado Guilherme Pimentel, que atuou como ouvidor da Defensoria Pública do RJ de 2020 a 2023, conhece de perto a realidade das comunidades. Em entrevista ao Migalhas, ele avaliou que "certamente" a decisão do Supremo foi descumprida. E destacou que cabe, agora, ao Judiciário, dar resposta à altura.
"Certamente o Estado do Rio de Janeiro descumpriu, porque, quando nós falamos da decisão da ADPF, nós falamos de um plano de redução de letalidade, e não de aumento vertiginoso da letalidade. Além disso, nós falamos de reversão do estado inconstitucional de coisas na segurança pública. E, ontem, o que a gente viu foi o ápice do estado inconstitucional de coisas na segurança pública no Rio de Janeiro. Então, sem dúvida, é um deboche à decisão do STF, e é um desafio institucional à Suprema Corte brasileira."
STF acionado
Em manifestação enviada ao STF nos autos da ADPF ainda na terça-feira, 28, dia da realização da operação, o CNDH - Conselho Nacional de Direitos Humanos, na qualidade de amicus curiae, apontou o descumprimento das ordens do Supremo por parte do Estado.
A entidade afirmou que, não obstante o acórdão proferido pela Corte, com plano de redução da letalidade policial e respeito ao uso proporcional da força, bem como instalação de equipamentos de gravação nas fardas, o RJ realizou a "operação policial mais letal da história do RJ", e requereu uma série de medidas ao relator.
O processo, que estava sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso (aposentado), foi assumido por Alexandre de Moraes. Em resposta à manifestação da CNDH, o ministro determinou que a PGR se manifeste em 24 horas sobre os pedidos de fiscalização e de novas diligências feitos pelo CNDH para que o governador do Rio, Cláudio Castro, apresente informações sobre a operação Contenção.
O que é a ADPF das Favelas
A ADPF 635 foi proposta em 2019 pelo PSB - Partido Socialista Brasileiro, com apoio de entidades civis e movimentos de favelas, para denunciar o uso desproporcional da força policial no Rio de Janeiro.
A ação cita a violação de direitos fundamentais, como vida, igualdade e dignidade humana, apontando o Estado do Rio de Janeiro como responsável por omissões e práticas letais nas operações realizadas em comunidades periféricas.
Em 2020, o relator original, ministro Edson Fachin, concedeu liminar, no auge da pandemia, proibindo operações policiais em favelas durante o período, salvo em casos excepcionais. Desde então, por meio da ADPF, o Tribunal passou a acompanhar o comportamento do Estado em políticas de segurança pública.
O que o STF decidiu
Após cinco anos de audiências, relatórios e despachos, o julgamento da ADPF foi concluído em abril de 2025, com voto per curiam unânime.
Voto per curiam: decisão emitida em nome do Tribunal como um todo, de forma unânime e coletiva, sem que haja uma autoria individual de ministro específico.
O Supremo reconheceu avanços, mas também violações persistentes, e determinou 23 medidas de cumprimento obrigatório pelo Estado do Rio de Janeiro.
Entre elas:
- Transparência de dados: o governo deve publicar indicadores detalhados sobre mortes decorrentes de intervenção policial e de agentes de segurança.
- Uso de câmeras corporais e viaturas equipadas com gravação: a implantação é obrigatória, com regulamentação em até 180 dias.
- Ambulâncias em operações com risco de confronto armado.
- Preservação de locais de crime e proibição de remoção irregular de corpos.
- Relatórios de operação: toda ação policial deve gerar documento detalhado enviado ao Ministério Público em até 24 horas.
- Investigação de mortes por intervenção de agentes do Estado sob responsabilidade do Ministério Público.
- Criação de um grupo de trabalho coordenado pelo CNMP para monitorar o cumprimento da decisão e publicar relatórios semestrais.
O acórdão também determinou a instauração de inquéritos federais para investigar organizações criminosas e possíveis conivências institucionais, reconhecendo que o cenário de violência envolve omissões do Estado e violações de direitos por facções armadas.
- Veja a íntegra do acórdão.
ADPF mostrava resultados expressivos
Em artigo publicado em fevereiro deste ano na Folha de S.Paulo, o advogado Daniel Sarmento, que atua pro bono na ADPF das Favelas, afirmou que a ação já havia produzido resultados concretos no Rio de Janeiro.
Em 2019, quando foi ajuizada, o Estado registrava 1.814 mortes causadas por policiais. O número caiu para 699 em 2024 – uma redução de mais de 60%, segundo dados oficiais.
Sarmento ressaltou, naquela oportunidade, que a ADPF não proibia operações, mas impunha controles e transparência, como o uso de câmeras corporais e investigações independentes pelo Ministério Público.
Ele também destacou que a queda na letalidade não aumentou a criminalidade, ao contrário, os principais índices se mantiveram estáveis ou diminuíram.
Para o advogado, o controle sobre a polícia fortalece o combate à criminalidade, especialmente em um contexto de corrupção e milícias. Ele, por fim, defendeu a fiscalização, pelo STF, do cumprimento da decisão, para garantir que a Constituição “chegue, enfim, às favelas e periferias do país”.
Expectativa x Realidade
A nova tragédia no Rio de Janeiro evidencia o abismo entre a expectativa de transformação gerada pela ADPF das Favelas e a realidade das operações policiais no Estado do Rio.
Quando o Supremo julgou a ação, em abril de 2025, a promessa era de que suas determinações, como o uso de câmeras, o controle das forças de segurança e o respeito à vida dos moradores, representassem um passo histórico para que a Constituição, enfim, chegasse às favelas.
A operação desta terça-feira, porém, mostra que as normas fixadas pela Corte ainda não se traduziram em prática, e que a proteção dos direitos fundamentais nas periferias continua sendo um desafio urgente e distante de solução.