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STF: Responsabilidade do Estado por ferido alheio a protesto é objetiva

Corte fixou que cabe ao poder público, e não à vítima, provar excludente de responsabilidade em ações policiais durante manifestações.

29/10/2025

Nesta quarta-feira, 29, o STF, por maioria, definiu em sessão plenária que a vítima alheia à manifestação não precisa comprovar a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes da atuação policial.

Prevaleceu o voto do ministro Flávio Dino, relator, que fixou a tese de que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, ou seja, independe de prova por parte da vítima, cabendo ao próprio poder público demonstrar eventual excludente, como culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior.

Ministro Nunes Marques divergiu parcialmente. Embora tenha reconhecido que a responsabilidade do Estado é objetiva, defendeu que, no caso concreto, o arquivamento do inquérito policial militar, que concluiu pelo estrito cumprimento do dever legal pelos policiais, deveria ser considerado parâmetro fático vinculante. Para S. Exa., caberia ao cidadão demonstrar ser "terceiro inocente".

Veja o placar:

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O tribunal fixou a seguinte tese:

"1. O Estado do Paraná, em conformidade com os postulados adotados pelo Supremo Tribunal Federal na fixação da tese no tema 1.055 da repercussão geral, responde objetivamente pelos danos concretos diretamente causados por ação de policiais durante a "Operação Centro Cívico" ocorrida em 29 de abril de 2015. Cabe ao ente público demonstrar em cada caso os fatos que comprovem virtual excludente da responsabilidade civil, não havendo coisa julgada criminal a ser observada.

2. Não se presume o reconhecimento da excludente de culpa exclusiva da vítima, unicamente pelo fato desta estar presente na manifestação."

Veja a prolação da tese:

Entenda

No caso, o MP/PR contestou decisão do TJ/PR sobre a atuação da PM na chamada "Operação Centro Cívico".

O episódio ocorreu em 29/4/15, quando servidores estaduais, a maioria professores, protestavam em frente à Assembleia Legislativa do Paraná.

Durante a manifestação, um grupo teria derrubado a barreira de proteção, levando a PM a intervir com o uso de bastões e spray de pimenta.

Em seguida, unidades de operações especiais lançaram bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e balas de borracha, resultando em 213 feridos, sendo 14 em estado grave.

O tribunal estadual entendeu que a responsabilidade do Estado se limita aos casos em que a vítima comprove ser terceiro inocente, ou seja, que não tenha participado da manifestação ou contribuído para a reação policial.

No STF, o MP paranaense defendia que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, ou seja, independe da comprovação de dolo ou culpa, bem como do fato de a vítima ser ou não um terceiro inocente.

Sustentação oral

Nesta quarta-feira, 29, o procurador-geral do Estado do Paraná, Luciano Borges dos Santos, sustentou oralmente pela manutenção da decisão do TJ/PR e pelo desprovimento do recurso do MP.

O representante do Estado iniciou sua fala mencionando o luto nacional pelos recentes episódios de violência no Rio de Janeiro e contextualizou o caso paranaense, afirmando que o episódio de 2015 não se tratou de uma operação policial, mas de uma ação de contenção voltada a assegurar o cumprimento de decisão judicial que impedia a invasão da Assembleia Legislativa do Paraná durante a votação da reforma da Previdência.

Segundo ele, havia liminar judicial proibindo carros de som e acesso de manifestantes ao prédio, mas a ordem foi descumprida, resultando em confronto.

Destacou que, à época, o Estado atuava no estrito cumprimento do dever legal, tendo seguido medidas graduais de contenção e sem excesso comprovado.

O procurador argumentou que o arquivamento do inquérito militar, com base na inexistência de abuso, confirma a licitude da conduta policial.

Defendeu, ainda, que exigir que o Estado identifique, em cada ação, quem era ou não manifestante representaria ônus desproporcional à Administração Pública, já que o evento envolveu grande número de pessoas e cenário de tumulto.

Concluiu pedindo que o STF negue provimento ao recurso e mantenha a tese fixada pelo TJ/PR, segundo a qual cabe à vítima demonstrar que era terceiro inocente, sem qualquer participação na manifestação ou contribuição para a reação policial.

Voto do relator

Ao apresentar voto, ministro Flávio Dino destacou que a questão envolve o alcance da responsabilidade civil do Estado em casos de uso da força policial durante manifestações e a correta aplicação do art. 37, §6º, da CF.

O relator propôs uma interpretação simétrica ao Tema 1.055 da repercussão geral (RE 1.209.429), relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, que reconheceu a responsabilidade objetiva do Estado por danos a profissionais de imprensa feridos por agentes policiais durante coberturas jornalísticas.

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Nesse precedente, admitiu-se excludente apenas em situações específicas de culpa exclusiva da vítima, quando comprovado que ela descumpriu advertência clara de risco.

Dino afirmou que a responsabilidade civil objetiva do Estado, fundada na teoria do risco administrativo, independe da licitude da conduta estatal.

"A regra é: dano mais nexo causal é igual à responsabilidade civil do Estado, pela teoria do risco administrativo", afirmou.

Para o relator, o TJ/PR violou essa lógica constitucional ao presumir, de forma abstrata, culpa das vítimas e inverter o ônus da prova por meio de um IRDR.

Segundo o ministro, o art. 373 do CPC permite a redistribuição do ônus probatório apenas em casos concretos e fundamentados, jamais de forma generalizada.

"Todos possuem como direito individual e coletivo a possibilidade de se manifestar livremente. Pode haver culpa exclusiva da vítima? Sim, claro, mas o ônus da prova não é do cidadão", observou Dino.

O ministro também citou os votos vencidos no TJ/PR, que defenderam a análise caso a caso e consideraram indevida a generalização da "culpa exclusiva da vítima" a todos os presentes.

Dino reafirmou que a responsabilidade civil objetiva tem fundamento constitucional e se conecta ao controle democrático da atuação estatal, pois garante que o cidadão não suporte sozinho o ônus de ações públicas que resultem em dano.

Veja trecho do voto:

Concluiu dando provimento ao recurso do MP/PR e propôs a fixação da seguinte tese:

"1. O Estado do Paraná responde objetivamente pelos danos concretos diretamente causados por ação policial durante a "Operação Centro Cívico", cabendo ao ente público demonstrar, em cada caso, os fatos que comprovem eventual excludente da responsabilidade civil.

2. Não se presume a excludente de culpa exclusiva da vítima unicamente pelo fato de ela estar presente na manifestação."

S. Exa. foi acompanhada pela ministra Cármen Lúcia e pelos ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Edson Fachin.

Sugestão na tese

Ao acompanhar o relator, ministro Cristiano Zanin afirmou que a responsabilidade civil do Estado, nos casos em análise, é objetiva, nos termos do art. 37, §6º, da CF.

Zanin observou que o TJ/PR baseou-se na existência de coisa julgada criminal para afastar o dever de indenizar, uma vez que o inquérito policial militar instaurado à época foi arquivado por inexistência de excesso doloso ou culposo por parte dos policiais.

O ministro, contudo, afastou essa interpretação. Para S. Exa., não há que se falar em coisa julgada criminal, já que o arquivamento do inquérito "dizia respeito à investigação dos agentes públicos, e não das supostas vítimas".

Assim, tal decisão não impede a análise da responsabilidade civil do Estado.

"Estou acompanhando o eminente relator por entender que aqui a responsabilidade é objetiva, à luz do art. 37, § 6º, mas proponho apenas um acréscimo à tese, deixando expresso que não há coisa julgada criminal a ser observada, pois esse é o cerne da controvérsia reconhecida pela instância de origem", afirmou.

Zanin, portanto, acompanhou integralmente o voto de Flávio Dino, com a sugestão de acréscimo à tese para explicitar a inexistência de coisa julgada criminal no caso.

O relator acolheu a sugestão.

Reconhecer os próprios erros

Ministra Cármen Lúcia acompanhou integralmente o voto do relator.

Recordou sua trajetória na Procuradoria do Estado, para destacar que o dever do poder público é reconhecer os próprios erros quando há lesão a direitos fundamentais.

Segundo a ministra, o Estado não pode atuar como parte irresponsável, exigindo do cidadão a prova daquilo que ele não tem condições de demonstrar.

"Quando é reconhecidamente caso de lesão ao direito, de dano provocado por uma ação do Estado, é preciso que os Estados comecem a reconhecer, e que a advocacia pública passe a cada vez mais fazer valer os termos do § 6º da CF, no sentido de regressar como obrigação contra quem tenha ou atuado por culpa dolo, ou quem tenha mandado ou permitido, em última instância, que acontecesse, porque é assim que o Estado de direito funciona."

Cármen Lúcia reforçou que o art. 37, §6º, da CF estabelece o dever de reparação sempre que houver dano e nexo causal, independentemente da licitude da conduta estatal.

Criticou a tese fixada pelo TJ/PR, que inverteu o ônus da prova, impondo à vítima o encargo de demonstrar que era "terceiro inocente".

A ministra também destacou que o direito de reunião é fundamental e autoexecutável, não dependendo de autorização do poder público, mas apenas de comunicação prévia para fins de segurança e organização. Assim, condicionar a reparação à prova de inocência do cidadão viola o núcleo essencial das liberdades democráticas.

Cármen Lúcia concluiu afirmando que não há democracia sem juridicidade, responsabilidade e igualdade, e que o Estado deve responder por seus atos de forma exemplar, sob pena de abalar a confiança social nas instituições.

Veja trecho do voto:

Divergência parcial

Ministro Kassio Nunes Marques apresentou voto em que reconheceu a responsabilidade civil objetiva do Estado, mas com ênfase na necessidade de análise fática individualizada e respeito aos limites da coisa julgada criminal.

O ministro manifestou dúvida quanto à extensão do comando que, segundo o relator, afastaria a presunção de culpa da vítima e inverteria o ônus da prova.

Para Kassio, o TJ/PR já havia feito uma avaliação detalhada das provas e dos fatos no IRDR, com base em inquérito militar que examinou a conduta dos policiais.

Ao entrar no mérito, reiterou que a CF adota a teoria do risco administrativo, pela qual o Estado responde por danos causados a terceiros independentemente de culpa, desde que comprovado o nexo causal entre a ação estatal e o dano.

Contudo, lembrou que essa teoria não é de risco integral, admitindo excludentes como culpa exclusiva da vítima, caso fortuito, força maior e estrito cumprimento do dever legal.

Veja trecho do voto:

Nunes Marques destacou que o arquivamento do inquérito policial militar, que concluiu pela atuação regular da polícia e reconheceu as excludentes de legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal, não pode ser ignorado na esfera cível.

Segundo o ministro, as instâncias judiciais devem considerar essas premissas de fato já consolidadas.

"Diante da coisa julgada e verificada na espera penal e da própria limitação cognitiva no âmbito do recurso extraordinário, a ausência de abusos ou excessos dos policiais militares deve ser aceita como incontroversa."

Para S. Exa., a solução adotada pelo TJ/PR, ao restringir o dever de indenizar apenas a terceiros inocentes, pessoas alheias ao tumulto e que não contribuíram para a reação policial, é compatível com a CF e com a jurisprudência do STF no Tema 1.055 da repercussão geral.

O ministro alertou que ampliar a tese para responsabilizar o Estado por qualquer dano em ações de controle de multidões equivaleria à adoção da teoria do risco integral, tornando o poder público "garantidor universal de todos os danos" e desestimulando a atuação legítima das forças de segurança.

"A adoção do risco integral para as ações policiais de gestão de multidões ampliaria, de forma expressiva, o alcance do dever de indenizar, convertendo o Estado em garantidor universal de todos os danos decorrentes de ações policiais em grandes eventos, ainda que praticadas de modo regular", afirmou.

Assim, Kassio Nunes Marques deu provimento ao recurso extraordinário, mas sem aderir à inversão do ônus da prova proposta pelo relator, preferindo deixar ao TJ/PR a análise da matéria fática e a dissolução do incidente de demandas repetitivas.

Veja a versão completa

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