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Sentença arbitral e coisa julgada material

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Atualizado em 24 de fevereiro de 2025 10:49

Um dos principais e mais importantes institutos existentes no Direito Processual Civil, e mais precisamente, na jurisdição de conhecimento, diz respeito à coisa julgada. Como bem afirma Leonardo Greco, trata a coisa julgada da "garantia da segurança jurídica e da tutela jurisdicional efetiva"1.

A coisa julgada opera seus efeitos, em âmbito civil, no processo estatal e, mais precisamente, jurisdição de conhecimento. Como bem apontado pela doutrina, a coisa julgada, apesar de suas fragilidades (em especial no âmbito do processo estatal2) permanece sendo uma das mais importantes garantias à manutenção da estabilidade e, pois, do justo.

O instituto da coisa julgada é, classicamente, dividido entre coisa julgada formal e material. No primeiro caso há a imutabilidade, no âmbito do processo, do ato processual sentença. Trata-se, exatamente, de pressuposto para o segundo caso, eis que a coisa julgada material torna imutável sua eficácia fora do processo. Como bem afirmam Dinamarco, Badaró e Lopes, apoiando-se nas lições de Liebman, "a coisa julgada não é um efeito ou uma eficácia da sentença, mas uma sua peculiar autoridade, consistente na imutabilidade da eficácia da sentença"3.

Uma das principais característica da coisa julgada é o seu efeito preclusivo. Trata-se do requisito que justamente impede a rediscussão da matéria coberta pelo julgamento de mérito, em prol da segurança e estabilidade jurídica. Assim ensina o saudoso José Carlos Barbosa Moreira:

"A eficácia preclusiva da coisa julgada manifesta-se no impedimento que surge, com o trânsito em julgado, à discussão e apreciação das questões suscetíveis de influir, por sua solução, no teor do pronunciamento judicial, ainda que não examinadas pelo juiz. Essas questões perdem, por assim dizer, toda a relevância que pudesse ter em relação à matéria julgada"4.

O processo arbitral, conhecido por sua inserção num sistema dissociado do processo estatal, e munido de fases que o dividem em início, meio e fim5, tem como objetivo máximo a entrega de uma tutela de natureza jurisdicional, delineada nos limites da lide, e, que resolva, de forma definitiva, as pretensões que estiverem em jogo. Tal assertiva se justifica muito em razão do disposto nos arts. 186 e 317 da lei 9.307/96 ("lei de arbitragem"). O produto da arbitragem - a sentença, cujos efeitos são os mesmos que possuem sentença judicial - não comporta rediscussão em qualquer instância que seja e ainda que seja considerado um julgado "injusto". Essa é a regra do jogo.

Não há dúvidas de que o instituto da coisa julgada material é plenamente aplicável à arbitragem8. O fato de o regramento arbitral brasileiro não dispor sobre o termo "coisa julgada" não significa que tal instituto, caro ao direito processual-constitucional brasileiro não seja aplicado no sistema arbitral9. Do contrário, os arts. 18 e 31 da lei de arbitragem perderiam sua razão de ser.

Recentemente, de forma aprofundada e munido de alta técnica, julgado emanado do TJ/SP, enalteceu o efeito da indiscutibilidade da sentença arbitral, ao se deparar com demanda judicial que, de forma inexplicável, ignorou a existência de anterior julgado arbitral, nitidamente conflitante com o que fora julgado pelo Judiciário, em primeira instância.

Em breve síntese, uma parte (geradora de energia), ingressou com ação judicial contra uma seguradora na qual pleiteava rescisão contratual e pagamento de seguro. Ocorre que, anos antes, a mesma discussão fora travada em sede arbitral, tendo o correspondente tribunal decidido pela rescisão contratual e decidido pleitos favoráveis a ambas as partes contendentes. Em especial, todos os fatos que gerariam algum possível dano indenizável à parte apelada já haviam sidos discutidos à exaustão na arbitragem, tendo-se chegado à conclusão substancial da inexistência de inadimplemento contratual e prejuízo indenizável. Transcreve-se aqui, parte da ementa do brilhante acórdão de lavra da 35ª câmara de Direito Privado do TJ/SP10:

"SEGURO GARANTIA. Cobrança de indenização securitária. Apólice previa cobertura para prejuízos decorrentes do inadimplemento das obrigações assumidas pela contratada, tomadora do seguro, em contrato de prestação de serviços e fornecimento de materiais na construção de central hidroelétrica. Sentença arbitral, exarada em procedimento instaurado pela segurada em face da tomadora do seguro e transitada em julgado, reconheceu que esta não descumpriu o contrato que era objeto de garantia. Questão prejudicial sobre a qual se formou coisa julgada material, pois produzida em procedimento arbitral que não possui restrição probatória nem limitação cognitiva. Impossibilidade de a jurisdição estatal se imiscuir nas questões que já foram definitivamente decididas pelo Tribunal Arbitral. Inadmissibilidade de decisões conflitantes entre órgãos que integram o atual modelo brasileiro de Sistema de Justiça Multiportas, o qual pressupõe harmonia e cooperação entre seus integrantes a fim de se alcançar a efetividade e a eficiência das resoluções dos conflitos. Viabilidade, na sistemática do atual Código de Processo Civil, da invocação da coisa julgada sobre questão prejudicial pelo terceiro que foi beneficiado pela decisão transitada em julgado. Doutrina. Inteligência dos arts. 503 e 506 do Código de Processo Civil".

A essência do julgado objeto dessas linhas é uma: o prestígio à coisa julgada arbitral, cujo efeito prático e imediato é o de impedir as partes de submeter nova demanda - seja judicial ou arbitral - que visem à rediscussão do mérito da causa anteriormente apreciado em sede arbitral11.

No julgado objeto dessas linhas, a sentença arbitral anteriormente proferida já havia se posicionado acerca dos mesmos fatos que deram ensejo à ação de indenização securitária subsequente, na qual a autora pretendia, segundo o acórdão, rediscutir o que fora decidido em sede arbitral, sob a alegação do "comprometimento do grau da produção probatória naquele procedimento (arbitral) o que atrairia a exceção à formação da coisa julgada prevista no art. 503, § 2º, do CPC". Ao rechaçar tal alegação, o TJ/SP foi firme:

"Todos esses eventos envolvendo a obra (descumprimento do cronograma, ajustes de marcos temporais defasados, alterações de projetos executivos, descoberta de risco geológico imprevisível, desvio de rio e canal de fuga, divergência acerca do volume de materiais, inundação da casa de força, manifestações e paralisação da obra pelos funcionários, etc.) foram exaustivamente discutidos e analisados em procedimento instaurado no CAM-CCBC - Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá. (sic)
Nesse campo, a jurisdição estatal não pode e não irá se imiscuir nas questões que já foram apreciadas pelo Tribunal Arbitral, de modo que toda a prova produzida nesta demanda que seja incompatível com as matérias decididas pela câmara de Arbitragem não será considerada, pois não se pode admitir decisões conflitantes entre órgãos que integram o atual modelo brasileiro de Sistema de Justiça Multiportas, o qual pressupõe harmonia e cooperação entre seus integrantes a fim de se alcançar a efetividade e a eficiência das resoluções dos conflitos. Ademais, havendo coisa julgada sobre questão prejudicial, revela-se absolutamente descabida a rediscussão da matéria já definitivamente julgada".

O julgado do TJ/SP representa um exemplo importantíssimo do prestígio que se deve dar ao instituto arbitral, bem como a certas noções basilares de Direito Processual que não podem e nem devem escapar da arbitragem. Arbitragem é processo e, apesar da sua conhecida autonomia procedimental12, não sobrevive sem a observância de parâmetros diretos na legislação processual. O professor Ricardo de Carvalho Aprigliano bem explica tal fenômeno:

"Fruto da força julgada, impede-se a realização de novo julgamento acerca do mesmo tema. Isso se aplica em todos os possíveis fluxos. A coisa julgada formada em processo judicial impede o exame da questão em novo processo judicial ou arbitral, repercute sobre quaisquer processos, inclusive o administrativo. Se a coisa julgada se forma na arbitragem, o mesmo se aplica. Não poderá haver uma segunda demanda arbitral ou judicial sobre o mesmo objeto, e demandas subsequentes terão que levar em consideração o conteúdo do que foi decidido"13.

Tal precedente merece todos os aplausos e demonstra o quão especializado é o Judiciário paulista no tratamento de questões relacionadas à arbitragem. Num momento em que a lei de arbitragem está prestes a completar 30 anos de vigência, o julgado ora comentado é mais um exemplo da evolução do instituto arbitral no Direito brasileiro.



1 GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In: Novos Estudos Jurídicos, ano VII, 14, p. 9-68, abril/02, p. 25.

2 A esse respeito ver GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In: Novos Estudos Jurídicos, ano VII, 14, p. 9-68, abril/02, p. 26.

3 DINAMARCO, Cândido Rangel, BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy e LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 35ª Ed. São Paulo: Ed. Juspodivm e Malheiros, 2024, p. 458.

4 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A eficácia preclusiva da coisa julgada material no sistema do processo civil brasileiro. In: Temas de direito processual: primeira série. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 100.

5 Ver, a esse respeito: NUNES, Thiago Marinho. Processo arbitral: início, meio e fim. Fonte: disponível aqui. Acesso em 21 fev. 2025.

6 Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário.

7 Art. 31. A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo.

8 Dispõe o art. 502 do CPC, plenamente aplicável à arbitragem: "Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso".

9 Tal ponto foi corretamente abordado por Ricardo de Carvalho Aprigliano em sua festejada tese de livre docência: "A despeito de constituir uma noção fundamental para o processo e para a própria ideia da jurisdição, a coisa julgada é um conceito lógico-jurídico cuja conformação legal decorre do direito positivo. Não é possível compreender a exata definição da coisa julgada, seus elementos e abrangência, sem recorrer aos parâmetros legais de determinado ordenamento. E no Direito brasileiro esses parâmetros, que constituem verdadeiras normas processuais gerais, encontram-se no Código de Processo Civil. A lei de arbitragem nada menciona a esse respeito. Isso pode significar que as partes ou os árbitros poderiam desprezar a noção legal de coisa julgada e aplicar uma própria, construída para o caso concreto? Ou que poderiam desprezar a existência de uma decisão anterior (judicial ou arbitral), protegida pela coisa julgada, sob o argumento de que a legislação específica nada dispõe a respeito?". APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Nomas processuais aplicáveis à arbitragem. Parâmetros para a aplicação de normas processuais gerais ao processo arbitral. Tese de Livre Docência. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022, p. 75.

10 TJ/SP, 35ª câmara de Direito Privado, apelação cível 1115867-25.2017.8.26.0100, rel. des. Gilson Delgado de Miranda, j. 19/8/24.

11 A esse respeito, leciona Felipe Scripes Wladeck: "Fala-se em "coisa julgada arbitral", portanto, para designar a qualidade de imutabilidade do conteúdo do dispositivo da sentença arbitral de mérito" (...) A "coisa julgada arbitral" impede que as partes (ainda que de comum acordo) submetam ao Judiciário o mérito da causa julgada pelos árbitros: o controle judicial que se admite sobre a arbitragem no ordenamento brasileiro encontra-se restrito a aspectos de forma do processo e da sentença arbitral (arts. 32 e 33 da lei 9.307/96)". WLADECK. Felipe Scribes. Impugnação da sentença arbitral. Salvador: Ed. Judpodivm, 2014, p. 93.

12 Ver, a esse respeito: NUNES, Thiago Marinho. Autonomia procedimental da arbitragem e o CPC. Fonte: disponível aqui. Acesso em 23 fev. 2025.

13 APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Nomas processuais aplicáveis à arbitragem. Parâmetros para a aplicação de normas processuais gerais ao processo arbitral. Tese de Livre Docência. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022, p. 309-310.