Um dos temas mais explorados em sede de arbitragem nos últimos tempos diz respeito à possibilidade de aplicação subsidiária, ou, ao menos, por analogia, do Código de Processo Civil ("CPC") na arbitragem1. Trata-se, com efeito, de tema relevante, dada a insuficiência da lei 9.307/96 ("Lei de Arbitragem") no tratamento de certos temas de direito processual lacunosos num sistema igualmente processual, que é o da arbitragem2.
O tão comentado precedente do Superior Tribunal de Justiça ("STJ") oriundo do Recurso Especial 1.851.324/RS3 fomentou o debate sobre o tema, fazendo com que os operadores do direito se deparassem com questionamentos dos mais diversos. Entre eles, se as regras do CPC realmente devem ser descartadas em matéria de arbitragem. A resposta imediata a tal assertiva não pode ser totalmente negativa, dado o caráter processual da arbitragem, que, como no processo civil, tem como fim o estabelecimento de uma prestação jurisdicional, e não podem, bem como não devem, ser tratados de forma isoladas.
Um ponto crucial de natureza processual civil aplicável à arbitragem é o princípio da estabilização de demanda4. A função da estabilização da demanda seja no processo judicial, seja no arbitral, é a de justamente resguardar o amplo direito de defesa e o contraditório, impedindo manobras dilatórias e preservando a boa-fé processual e a lealdade entre as partes, exigindo que apresentem, de uma só vez, todos os argumentos que possam deduzir. Em sede arbitral, os pedidos formulados pelas partes devem constar do termo de arbitragem, bem como devem ser desenvolvidos nas alegações escritas que se sucedem. A respeito desse tema, a doutrina brasileira é uníssona no sentido de que a estabilização da demanda ocorre no momento da assinatura do termo de arbitragem5.
Com o objetivo de resguardar a segurança jurídica do processo arbitral e reafirmar a regra geral segundo a qual a estabilização da demanda se dá com a celebração do termo de arbitragem, observa-se que, na ausência de disposição específica na Lei de Arbitragem, os regulamentos das principais instituições arbitrais usualmente preveem que qualquer alteração, modificação ou aditamento da demanda - inclusive a formulação de novos pedidos - somente poderá ocorrer mediante autorização expressa do tribunal arbitral, após a assinatura do termo de arbitragem. Assim ocorre, por exemplo, no regulamento de arbitragem da Câmara de Comércio Internacional ("CCI"6) do Centro de Mediação de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá ("CAM-CCBC"7), da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem CIESP/FIESP ("CMA-CIESP"8), dentre outros.
Com efeito, pela leitura das regras regulamentares citadas nas notas 6 a 8, observa-se que as disposições lá existentes fazem menção a alterações e inclusões de pedidos no âmbito de uma arbitragem. Não há menção a desistência de pedidos. Daí, surge o objeto das presentes linhas: como se deve lidar com eventual desistência de pedidos no âmbito de uma arbitragem.
Não há, na Lei de Arbitragem, qualquer disposição acerca de desistência de pedidos. De igual forma, os regulamentos arbitrais, em especial, os mencionados acima, não contêm regras específicas sobre o tema.
Por outro lado, o direito processual civil brasileiro regulou tal questão no art. 485, § 4º do CPC: "Oferecida a contestação, o autor não poderá, sem o consentimento do réu, desistir da ação". Na ausência de regra similar a respeito na Lei de Arbitragem e regulamentos arbitrais, indaga-se se a aludida normal processual seria automaticamente aplicável ao processo arbitral. A resposta é negativa.
De longa data, a doutrina brasileira, corroborada pela jurisprudência do STJ firmou o entendimento de que, à exceção de seus princípios, os dispositivos do CPC são inaplicáveis à arbitragem9, notadamente pelo fato de que tais dispositivos foram criados exclusivamente para o processo judicial10, devendo ser analisado, caso a caso, qual norma, e seu respectivo caráter principiológico, poderia ser aplicável, em determinado processo arbitral.
A regra disposta no art. 485, § 4º do CPC tem como objetivo impedir o autor de desistir unilateralmente de uma ação após a apresentação da contestação, protegendo, assim, o direito do réu de ter a lide resolvida. Com efeito, a obtenção de uma sentença de improcedência, oferece ao réu "inegável segurança jurídica"11. Trata-se de uma regra de índole processual-constitucional, na medida em que se está em jogo o próprio acesso à justiça, vez que tanto o autor quanto o réu têm o lídimo direito de obter uma tutela jurisdicional, seja de procedência, no caso do autor, seja de improcedência, no caso do réu12.
Ocorre que tal regra, mesmo no âmbito do processo judicial, não deve ser lida de forma automatizada, como se qualquer recusa a uma desistência devesse ser considerada legítima. A uma, porque a recusa a que se refere o art. 485, § 4º do CPC deve ser motivada, sob pena de configuração de abuso de direito13-14, o que é vedado pela regra fundamental da boa-fé processual, prevista no art. 5º do CPC.
Ademais, a pretensa aplicação do aludido regramento, de forma subsidiária, automática e superficial no âmbito da arbitragem não faz qualquer sentido. Cada caso, em particular, deve ser analisado em sua especificidade, de modo a medir as consequências de eventual desistência. Com efeito, deve se analisar o momento processual da arbitragem em que a desistência é apresentada, se o escopo do direito de defesa da parte requerida foi reduzido a ponto de lhe causar violação a seus direitos fundamentais de natureza processual-constitucional, para então se aplicar, por analogia, a regra do consentimento da parte requerida.
Da mesma forma, um pedido de desistência poderia ocorrer em razão de uma demanda de caráter executivo paralela à arbitragem, entre as mesmas partes, que porventura faça com que a parte requerida desista de um pedido de natureza reconvencional formulado no termo de arbitragem. Nesse caso, a desistência poderia ser acolhida para fins de se evitar decisões potencialmente conflitantes, o que não geraria a aplicação automática da regra prevista no art. 485, § 4º do CPC, mas, por outro lado, causaria reflexos na alocação de custos e despesas da arbitragem, avaliado pelo comportamento da parte que desiste.
Não se está aqui a afirmar que o regramento proposto pelo art. 485, § 4º do CPC não possa ser aplicado, ainda que por analogia, à uma arbitragem. Numa demanda em que, por exemplo, a requerente pretenda receber uma indenização por danos materiais decorrentes de quebra de relação contratual, a seu ver, injusta, pela contraparte. Nada impede que a requerente desenvolva seus pleitos formulados no termo de arbitragem e, após a fase instrutória, desista do pedido de condenação da parte requerida em danos morais, provavelmente porque seu pleito fora mal comprovado. Não há dúvida aqui que o tribunal arbitral, cioso de seu dever jurisdicional, ouvirá a contraparte acerca de seu consentimento para decidir sobre a desistência do pedido de condenação em danos morais. Com efeito, nessa hipótese, a parte requerida se defendeu, produziu provas a seu favor e agora tem o seu direito de obter provimento jurisdicional que resguarde seus direitos15.
O objetivo dessas linhas é procurar demonstrar que não há campo para aplicação subsidiária da disposição contida no 485, § 4º do CPC na arbitragem, de forma automática e superficial. A ratio da norma deve ser preservada, isto é, garantir à parte demandada o direito de receber uma sentença de improcedência sobre o ponto objeto da desistência, mas é preciso que se investigue caso a caso, o nível de escopo de defesa que tenha sido reduzido pela desistência, o estado do processo, a motivação da recusa, bem como, em geral, todas as peculiaridades16 que orbitarem em torno da desistência, sempre levando em consideração o comportamento da parte que desiste, cujo ônus deve ser suportado, o que gerará reflexos na alocação de custos e despesas da arbitragem, em sede de sentença17.
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1 A esse respeito, vide a obra de referência no assunto no direito brasileiro: APRIGLIANO, Fundamentos Processuais da Arbitragem. Curitiba: Editora de Direito Contemporâneo, 2023.
2 A esse respeito, ver, por todos, a lição de Cândido Dinamarco: "Em resumo, e com outras palavras: a) o Código de Processo Civil só se aplica quando não houver lex specialis contida na Lei de Arbitragem nem a escolha de qualquer outra fonte normativa pelas partes; b) a Lei de Arbitragem sobrepõe-se ao Código de Processo Civil mas só se aplica naquilo que não haja sido disciplinado pelas próprias partes, diretamente ou mediante remissão ao regulamento de alguma instituição arbitral; c) nada dispondo as partes acerca do procedimento, 'caberá ao árbitro ou ao tribunal arbitral discipliná-lo'; d) as regras de procedimento traçadas pelas partes ou pelo árbitro sobrepõem-se às contidas no Código de Processo Civil e na própria Lei de Arbitragem sempre que não contrariem a ordem pública e as garantias integrantes da tutela constitucional do processo". (DINAMARCO, Cândido Rangel. A arbitragem na teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 46-47).
3 STJ - Terceira Turma, REsp 1.851.324/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 21/8/2024.
4 Sobre o tema, ver: LEÃO, Fernanda de Gouvêa. Processo arbitral - a estabilização de demanda. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022.
5 Por todos, "O termo de arbitragem tem na delimitação do objeto do litígio e do pedido das partes seus pontos mais importantes, que representam a estabilização da demanda. Apesar de ser a convenção de arbitragem o instrumento originário e vinculante da arbitragem, não se pode deixar de considerar que o termo de arbitragem tem o condão de reiterar os termos da convenção de arbitragem, delimitar a controvérsia e ressaltar a missão do árbitro, que deverá ater-se às suas disposições, para não gerar motivos para a anulação da sentença arbitral." (LEMES, Selma M. F. A função e o Uso do Termo de Arbitragem. Valor Econômico, p. e-2 - E-2, 08 set. 2005)
6 Regulamento de Arbitragem da CCI, art. 23 (4): "Após a assinatura da Ata de Missão ou a sua aprovação pela Corte, nenhuma das partes poderá formular novas demandas fora dos limites da Ata de Missão, a não ser que seja autorizada a fazê-lo pelo tribunal arbitral, o qual deverá considerar a natureza de tais novas demandas, o estado atual da arbitragem e quaisquer outras circunstâncias relevantes".
7 Regulamento de Arbitragem do CAM-CCBC, art. 23 (4): "As partes poderão alterar, modificar ou aditar suas demandas até a data de assinatura do Termo de Arbitragem". Art. 23 (5): "Após a assinatura do Termo de Arbitragem, a alteração, modificação ou aditamento da demanda, assim como a inclusão de novos pedidos deverá ser autorizada pelo tribunal arbitral. O tribunal arbitral deverá considerar a natureza de tais novas demandas, o estado atual da arbitragem e quaisquer outras circunstâncias relevantes".
8 Regulamento de Arbitragem do CMA-CIESP, art. 5.3. "Após a assinatura do Termo de Arbitragem, as partes não poderão formular novas pretensões, salvo se aprovado pelo Tribunal Arbitral".
9 Conforme já se tratou em outro estudo (ver, NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem, dispositivos e princípios do Código de Processo Civil. Disponível aqui. Acesso em 19 jun. 2025), tratar da aplicação do direito processual no âmbito da arbitragem constitui tema sensível e que deve ser tratado de forma extremamente cautelosa. Isso porque, conforme lecionado por autorizada doutrina, "no âmbito interno, por mais que os dispositivos do CPC não sejam aplicados à arbitragem, não há dúvidas de que seus princípios se aplicam" (CARMONA, Carlos Alberto. O Processo Arbitral. In: Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: RT, V. 1, n. 1, jan-abr, 2004, p. 28).
10 A esse respeito, a opinião de Fábio Peixinho Gomes Corrêa: "De outro lado, o CPC foi promulgado em função das necessidades e dos desígnios do direito processual civil, tal como aplicado pela jurisdição estatal. A teoria geral do processo civil captura elementos desse ramo do processo para apurar pontos em comum com outros ramos. Se está claro, desde o início, que diversos pontos cardeais da arbitragem diferem daqueles do CPC, utilizar a teoria geral do processo civil para justificar a incidência do CPC na arbitragem seria apenas uma forma de mascarar essas diferenças. A prevalecer tal raciocínio, a teoria geral do processo civil não se limitaria a identificar os pontos em comum, mas justificaria a modificação do sistema arbitral para sujeitá-lo ao CPC (...)". (CORRÊA, Fábio Peixinho Gomes. Comentário: a impossibilidade de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, à revelia das normas procedimentais eleitas pelas partes. In Revista Brasileira de Arbitragem, Vol. 21, Issue 84, 2024, p. 149-150).
11 GAJARDONI, Fernando da Fonseca, DELLORE, Luiz, ROQUE, André Vasconcellos e OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Forense, 2022, p. 705.
12 A esse respeito, leciona Cândido Dinamarco: "A tutela jurisdicional é oferecida, também, no processo arbitral, pela sentença que julga o mérito da demanda proposta, em sentido favorável ao autor (requerente), seja do réu (requerido). A improcedência da demanda daquele é sempre uma tutela jurisdicional a este, ao qual propicia uma situação de firmeza e segurança contra a pretensão trazida ao processo pelo autor (...) A prolação de uma sentença de mérito, quer a favor do autor ou do réu, constitui a culminância da oferta de acesso à justiça àquele entre os litigantes que estiver amparado pelo direito material (..)". (DINAMARCO, Cândido Rangel. O Processo Arbitral. Curitiba: Editora de Direito Contemporâneo, 2ª edição, 2022, p 78-79).
13 Assim entende Fredie Didier Jr.: "Vale frisar que a recusa do réu à desistência deve ser motivada, sob pema de configuração de abuso de direito, conduta vedada pelo princípio da boa-fé processual (art. 5º, CPC). Afinal, para postular em juízo é preciso ter interesse (art. 17, CPC). A recusa do consentimento não pode ser fruto de mero capricho do réu. Essa recusa considera-se motivada, por exemplo, pela alegação de que ele também faz jus à resolução do mérito da demanda contra si proposta (...). (DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Parte Geral e Processo de Conhecimento. Salvador: JusPodivm, 18ª edição, 2016, p. 735)".
14 Essa é, inclusive, a posição da jurisprudência do STJ. Ver, a esse respeito: STJ - Primeira Turma, REsp 1.184.935/MG, Rel. Min. Luiz Fux, j. 28/9/2010.
15 A doutrina estrangeira, em matéria de arbitragem, endossa tal posicionamento: "If the claimant files a claim, the claimant has to expect the respondent to defend its case and the claims brought by the claimant. The mere fact that the claimant does not want to continue the proceedings is no reason to deprive the respondent of its right or to limit the respondent's right to do so. The respondent's right is not limited just to react to the actions of the claimant, but the respondent must be entitled to any defence legitimately possible and such defence might include seeking a final and binding decision". (Heiko Haller and Annette Keilmann, 'In Claimant's Hands? Admissibility and Consequences of a Withdrawal of Claim in International Arbitration', in Maxi Scherer (ed), Journal of International Arbitration, (Kluwer Law International; Kluwer Law International 2018, Volume 35, Issue 6), pp. 649 - 664).
16 Ao comentar acerca das ditas peculiaridades do processo arbitral, aduz, com clareza, Fábio Peixinho Gomes Corrêa: "Acontece que o processo arbitral possui funcionamento próprio, o qual a teoria geral do processo destaca amiúde mais por suas peculiaridades do que por suas similitudes com o CPC. Por todos esses motivos, não se deve utilizar a teoria geral do processo para justificar a aplicação subsidiária do CPC na arbitragem, mas sim reconhecer a fortalecer a suas próprias virtudes". (CORRÊA, Fábio Peixinho Gomes. Comentário: a impossibilidade de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, à revelia das normas procedimentais eleitas pelas partes. In Revista Brasileira de Arbitragem, Vol. 21, Issue 84, 2024, p. 137-150).
17 Lei de Arbitragem, Art. 27: "A sentença arbitral decidirá sobre a responsabilidade e das partes acerca das custas e despesas com a arbitragem, bem como sobre verba decorrente de litigância de má-fé, se for o caso, respeitadas as disposições da convenção de arbitragem, se houver".