O termo de referência da perícia na arbitragem
terça-feira, 29 de abril de 2025
Atualizado em 28 de abril de 2025 13:40
Nos últimos anos, a prova técnica na arbitragem tornou-se um dos assuntos de maior relevância e discussão na seara arbitral. Temas como, as modalidades de prova técnica, a realização da prova técnica, a dinâmica da audiência na tomada da prova técnica, dentre outros relacionados, foram objeto de diversos estudos1, e até mesmo de importante precedente emanado da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça ("STJ"2).
No entanto, uma peculiaridade procedimental relativa à prova técnica, apesar de raramente discutida na doutrina, é disseminada com intensidade na prática arbitral: o termo de referência da perícia3.
Tirada da prática da arbitragem internacional e baseada no termo de arbitragem4, documento de vital importância no processo arbitral, o termo de referência da perícia define os contornos da prova técnica, quando esta é realizada numa arbitragem. Considerando a ausência de um catálogo legal acerca da produção de prova técnica no âmbito da Lei nº 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"5), bem como a inegável liberdade procedimental característica desta última6-7, o uso do termo de referência de perícia na arbitragem, tem lugar, normalmente, quando a prova técnica é realizada por perito do tribunal arbitral. Assim, na prática internacional, em que as demandas arbitrais são objeto de minucioso e prévio detalhamento de regras procedimentais, também se incluem as que tocam a prova técnica, como demonstra Pierre A. Karrer:
"Fifth, in Part g of the Order for Directions, one should also include provisions on tribunal-appointed experts even if the written submissions do not make it likely that such an expertise will have to be conducted. One never knows whether the suggestion of an expertise will come up at some later stage in an arbitration, for instance, in connection with the quantum. If it is already covered in the Terms of Reference or in an Order for Directions from the very beginning disputes may be avoided which otherwise would become difficult to resolve at the time when the expertise appears to the party desiring it to be the last chance of averting defeat. If the arbitral tribunal is to appoint a tribunal-appointed expert there are numerous questions to be discussed at a later time, also with the expert who may well contribute valuable ideas, when the Instructions to the expert are fixed, and perhaps at a special preparatory conference with the expert which may be conducted."8-9.
Ainda em sede internacional, as regras providas pela International Bar Association sobre Produção de Provas são ainda mais diretas, ao prever expressamente a adoção do termo de referência quando da realização de prova técnica por perito do tribunal arbitral:
"The Arbitral Tribunal, after consulting with the Parties, may appoint one or more independent Tribunal-Appointed Experts to report to it on specific issues designated by the Arbitral Tribunal. The Arbitral Tribunal shall establish the terms of reference for any Tribunal-Appointed Expert Report after consulting with the Parties. A copy of the final terms of reference shall be sent by the Arbitral Tribunal to the Parties."10.
Normalmente o termo de referência da perícia, tem a sua primeira minuta elaborada de forma conjunta e colaborativa11 pelas partes contendentes, sob o crivo do tribunal arbitral, e contém, basicamente e sem o prejuízo de outros12-13, os seguintes tópicos:
- dados das partes e do tribunal arbitral;
- dados do perito;
- dados dos assistentes técnicos das partes;
- regras sobre imparcialidade e independência do perito e cumprimento do dever de revelação durante o curso do processo;
- breve histórico dos eventos relacionados à prova técnica;
- objetivo e escopo da prova técnica;
- metodologia da realização dos trabalhos;
- regras de forma sobre as reuniões entre peritos e assistentes técnicos;
- regras sobre as comunicações e supervisão da prova técnica;
- cronograma pericial provisório, incluindo prazo para apresentação do laudo pericial e eventuais pareceres divergentes;
- custos e despesas.
Tal como o termo de arbitragem, cujo efeito jurídico principal é o caráter estabilizador da demanda14, o termo de referência da perícia confere previsibilidade e segurança jurídica à produção da prova técnica, protegendo sua higidez, e, sobretudo, a não ocorrência de fatores surpresa, que acarretem mudança no escopo da prova técnica a ser produzida.
Ponto que merece destaque no termo de referência é a regra que garante a supervisão dos trabalhos técnicos pelo tribunal arbitral, o único e verdadeiro destinatário da prova. Com efeito, os trabalhos de produção da prova pericial não só podem como devem ser supervisionados diretamente pelo tribunal arbitral, que poderá se reunir ou se comunicar com o perito a qualquer tempo, independentemente de prévia comunicação às partes ou da presença dos advogados e/ou dos assistentes técnicos. A inserção de uma regra a respeito da supervisão dos trabalhos periciais é essencial para que, a um só tempo, se preserve a natureza auxiliadora perito15 em relação ao tribunal arbitral, e que se evitem eventuais (e infundadas) alegações de cerceamento de defesa em razão de reuniões que porventura sejam feitas entre o perito e os membros do tribunal.
À luz das considerações acima, pensa-se que a elaboração de um termo de referência (ou de documento que contenha os tópicos acima listados) seja de enorme importância e valia para processos arbitrais em que se realize prova técnica, o que contribuirá, não só para a diminuição de custos e aumento de previsibilidade acerca do processamento da prova, mas para a própria segurança jurídica do processo arbitral.
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1 Ver, a esse respeito: NUNES, Thiago Marinho. O exercício da função de árbitro e a produção de prova técnica in A Função de Árbitro no Brasil (coord. GUANDALINI Bruno e ELIAS, Carlos Eduardo Stefen). São Paulo: Almedina, 2022, p. 399-430; GREBLER, Eduardo. A prova técnica na perspectiva do árbitro. in Arbitragem e outros temas de direito privado. Estudos jurídicos em homenagem a José Emílio Nunes Pinto. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 165-181; MENDES, Lucas Vilela dos Reis da Costa. A prova técnica na prática da advocacia comercial brasileira: o risco da cientificidade. Um estudo a partir do curso "advocacia em disputas complexas: instrução probatória" in Temas de Mediação e Arbitragem VIII (coord. NASCIMBENI, Asdrubal Franco, BERTASI, Maria Odete Duque e RANZOLIN, Ricardo Borges). Porto Alegre: Lex Editora, 2024, p. 263-284.
2 Ver, a esse respeito: STJ, REsp nº 1.903.359-RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 11.05.2021, DJe 14.05.2021. Para comentários a respeito ver NUNES, Thiago Marinho. A evolução do conceito de prova técnica na arbitragem. Fonte aqui. Acesso em 25 abr. 2025.
3 Segundo Victor Madeira Filho: "O emprego do termo de referência decorre especialmente do fato de as partes e os tribunais arbitrais terem percebido a utilidade de delimitar o escopo e as regras procedimentais da prova pericial previamente ao início da perícia, o que implica em maior qualidade dos laudos apresentados, menor custo e a conclusão da perícia de forma mais célere". (MADEIRA Filho, Victor. Perícias técnicas em arbitragens de construção no Brasil in Atualidades da Arbitragem Comercial (coord. DOURADO, Ruy Janoni, VAUGHN, Gustavo Favero, BARROS, Vera Cecília Monteiro e NASCIMBENI). São Paulo: Quartier Latin, 2021, p 364).
4 Documento que complementar a convenção de arbitragem, na forma do art. 19, 1º da Lei de Arbitragem: "Instituída a arbitragem e entendendo o árbitro ou o tribunal arbitral que há necessidade de explicitar questão disposta na convenção de arbitragem, será elaborado, juntamente com as partes, adendo firmado por todos, que passará a fazer parte integrante da convenção de arbitragem".
5 Corroborado pela disposição contida no art. 22, caput, da Lei de Arbitragem: "Poderá o árbitro ou o tribunal arbitral tomar o depoimento das partes, ouvir testemunhas e determinar a realização de perícias ou outras provas que julgar necessárias, mediante requerimento das partes ou de ofício.".
6 Corroborado pela disposição contida no art. 21, caput e § 1º da Lei de Arbitragem: "Art. 21. A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção de arbitragem, que poderá reportar-se às regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento (...) § 1º. Não havendo estipulação acerca do procedimento, caberá ao árbitro ou ao tribunal arbitral discipliná-lo.
7 A liberdade procedimental na arbitragem foi objeto de recente acórdão emanado do STJ, cuja ementa, em parte, se transcreve: "2.2 O procedimento arbitral é, pois, regido, nessa ordem, pelas convenções estabelecidas entre as partes litigantes - o que se dá tanto por ocasião do compromisso arbitral ou da assinatura do termo de arbitragem, como no curso do processo arbitral -, pelo regulamento do Tribunal arbitral eleito e pelas determinações exaradas pelo árbitro (...) 3. O rito da arbitragem guarda, em si, como característica inerente, a flexibilidade, o que tem o condão, a um só tempo, de adequar o procedimento à causa posta em julgamento, segundo as suas particularidades, bem como às conveniências e às necessidades das partes (inclusive quanto aos custos que estão dispostas a arcar para o deslinde da controvérsia), reduzindo, por consequência, eventuais diferenças de cultura processual própria dos sistemas judiciais adotados em seus países de origem (...) 3.1 Na fase instrutória desenvolvida no procedimento arbitral, de toda descolada do formalismo próprio do processo judicial, cabe ao árbitro, exclusivamente, definir, em um contraditório participativo, não apenas a pertinência de determinada prova para o deslinde da controvérsia e o momento em que dará a sua produção, mas, principalmente, o modo como esta será produzida. Essa salutar e conveniente interação entre as partes e o árbitro impede não apenas a prolação de uma decisão surpresa, mas também obsta, por outro lado, que as partes apresentem comportamento e pretensões incoerentes com a postura efetivamente externada durante todo o diálogo processual travado no procedimento arbitral" (STJ - Terceira Turma, REsp nº 1.851.324/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 21.08.2024).
8 KARRER. Pierre A. Pros and Cons of Terms of Reference and Specific Procedural Agreements in Arbitration Clauses: Storm in to Calm the Sea, in Albert Jan van den Berg (ed), ICCA Congress Series No. 7 (Vienna 1994): Planning Efficient Arbitration Proceedings: The Law Applicable in International Arbitration, ICCA Congress Series, Volume 7 (Kluwer Law International; ICCA & Kluwer Law International 1996), pp. 73 - 86.
9 Na mesma linha de entendimento, a lição de Derains e Schwartz, ao tecer comentários sobre o antigo art. 20 (4) do Regulamento e Arbitragem da CCI (atualmente, o art. 25(3)): "Article 20(4) expressly requires the Arbitral Tribunal to consult with the parties before appointing an expert. Such consultation should normally concern not only the question of whether an expert should be appointed, but the precise nature of the expert's mission ("terms of reference") as well as his identity and cost. (236) The requirement of consultation assumes that it is either the Arbitral Tribunal itself or one of the parties that is proposing the appointment of an expert. But there may also be circumstances in which the parties jointly request such an appointment. Although Article 20(4) does not itself require the Arbitral Tribunal to do so in such case, it could ordinarily be expected to give effect to the parties' joint wishes in this respect." (DERAINS, Yves e SCHWARZ, Eric. Chapter 5 The Arbitral Proceedings (Articles 13-23), in Eric Schwartz and Yves Derains, Guide to the ICC Rules of Arbitration (Second Edition), (Kluwer Law International; Kluwer Law International 2005), pp. 209-302.
10 Fonte aqui. Acesso em 25 abr. 2025.
11 Assim entende Victor Madeira Filho: "Em tais casos, o tribunal arbitral, o perito, os assistentes técnicos e as partes se reúnem para definir, em conjunto, uma referência procedimental e de escopo elaborada de maneira colaborativa, na qual os trabalhos periciais serão pautados, o que geralmente resulta em um laudo que aborda de maneira mais próxima e eficaz os pontos controvertidos que se entendem ser prioritários, bem como implica na redução de custos e tempo, já que a estipulação prévia das regras procedimentais da perícia diminui a intervenção desnecessária do tribunal e disputas improdutivas das partes sobre visitas ao local das obras, entrega de documentos, etc." (MADEIRA Filho, Victor. Perícias técnicas em arbitragens de construção no Brasil in Atualidades da Arbitragem Comercial (coord. DOURADO, Ruy Janoni, VAUGHN, Gustavo Favero, BARROS, Vera Cecília Monteiro e NASCIMBENI). São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 364-365).
12 Exemplo tirado da prática internacional é o que consta das regras sobre administração de procedimentos periciais da CCI ("Rules for Administration of Expert Proceedings"), que dispõe, em seu art. 6, as regras que deverão nortear a missão do expert (ver, a esse respeito aqui. Acesso em 25 abr. 2025).
13 Segundo Victor Madeira Filho: "Entre as matérias que normalmente se encontram previstas no termo de referência, destaca-se: definição das tarefas do perito e do escopo da perícia, definição dos direitos do perito (especialmente em relação ao pagamento e reembolso de despesas), eventual dever do perito de manter a confidencialidade, de ser imparcial e independente, de relevar potenciais situações de conflito, regras de comunicação entre os peritos, as partes e o tribunal arbitral e o cronograma da perícia, incluindo procedimentos de entrega de documentos e eventuais diligências presenciais do perito e assistentes técnicos" (MADEIRA Filho, Victor. Perícias técnicas em arbitragens de construção no Brasil in Atualidades da Arbitragem Comercial (coord. DOURADO, Ruy Janoni, VAUGHN, Gustavo Favero, BARROS, Vera Cecília Monteiro e NASCIMBENI). São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 365.
14 O termo de arbitragem tem na delimitação do objeto do litígio e do pedido das partes seus pontos mais importantes, que representam a estabilização da demanda. Apesar de ser a convenção de arbitragem o instrumento originário e vinculante da arbitragem, não se pode deixar de considerar que o termo de arbitragem tem o condão de reiterar os termos da convenção de arbitragem, delimitar a controvérsia e ressaltar a missão do árbitro, que deverá ater-se às suas disposições, para não gerar motivos para a anulação da sentença arbitral." (LEMES, Selma M. F. A função e o Uso do Termo de Arbitragem. Valor Econômico, p. e-2 - E-2, 08 set. 2005).
15 Nesse mesmo sentido, é a lição de Moacyr Amaral Santos: "É o perito uma pessoa que, pelas qualidades especiais que possui, geralmente de natureza científica ou artística, supre as insuficiências do juiz no que tange à verificação ou apreciação daqueles fatos da causa que para tal exijam conhecimentos especiais ou técnicos. Suprindo deficiências do juiz, não o substitui, porém, nas suas atividades; apenas auxilia, isto é, colabora na formação do material probatório, quer recolhendo percepções dos fatos, que emitindo pareceres, transmitindo umas e outros ao juiz para que ele, após o trabalho crítico devido, forme convicção quanto aos mesmos fatos". (SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil, 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 474).