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Arbitragem Legal

Aspectos atuais do instituto da arbitragem.

Thiago Marinho Nunes
terça-feira, 28 de abril de 2020

A Nova Lei do Agro e a arbitragem

Em 07 de abril de 2020 foi sancionada a lei 13.986 ("Nova Lei do Agro"), a qual promoveu importantes comandos normativos com o intuito de fomentar o agronegócio nacional. A referida lei, decorre da conversão da Medida Provisória nº 987, de 1º de outubro de 2019, também conhecida como a "MP do Agro". Dialogada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em conjunto com o Ministério da Economia, o Banco Central do Brasil, entidades como a Aprosoja1, Abiove2 Febraban3, entre outros, a novel legislação estabeleceu regramentos definitivos para três institutos que já haviam sido trazidos ao ordenamento por intermédio da aludida MP do Agro, quais sejam o Fundo Garantidor Solidário4, o Patrimônio Rural em Afetação5 e a Cédula Imobiliária Rural6, inter alia. Criticada por alguns como uma legislação muito favorável ao credor7, a Nova Lei do Agro, ao revés, se lida e interpretada de forma ampla e sistemática beneficiando todos os players do agronegócio, sobretudo o produtor rural. Com efeito, a Nova Lei do Agro possibilita e expande o acesso aos produtores a novas modalidades de financiamento privado, como por exemplo a emissão de Certificados de Recebíveis Agrícolas ("CRAs"8), a participarem de operações de fusão e aquisição, entre outros negócios jurídicos de alta complexidade9, com fixação em moeda estrangeira. Além disso, fomentará o financiamento para construção de armazéns, ou financiar a compra de equipamentos agrícolas, entre outros. Em suma, as novas operações criadas pela Nova Lei do Agro não só fomentarão os negócios travados na seara interna, mas também no campo internacional, em que os títulos recebíveis do agronegócio poderão ser atrelados à moeda estrangeira, atraindo o ingresso de capital estrangeiro no Brasil em prol do agronegócio. Diante da complexidade de determinadas operações firmadas no bojo da Nova Lei do Agro e, notadamente, a inclusão dos novos e citados títulos de financiamento que certamente incrementarão as relações mantidas no campo do agronegócio, controvérsias poderão surgir e é inevitável que se pense a melhor forma de resolvê-las. Nesse momento, pode se afirmar, com toda a segurança, que a arbitragem surge como mecanismo mais apropriado para a resolução dessas disputas. Para tanto, é necessário que os títulos de financiamento a serem estruturados contenham cláusulas compromissórias, i.e, aquelas que remetem todos os eventuais litígios que decorrerem de tais instrumentos à arbitragem, nos termos da lei 9.307/96 ("LArb")10. Em casos, por exemplo, de emissões de títulos como Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio ("CDCA"), ou uma CRA, lastreadas em uma Cédula de Produto Rural ("CPR")11, emitidos em moeda estrangeira, como o dólar norte americano, por exemplo, depender do teor da controvérsia (como por exemplo, eventual alta da moeda estrangeira aplicável, a ensejar discussões sobre teoria da imprevisão, onerosidade excessiva, inter alia) é de absoluta certeza que ela poderá ser resolvida por profissionais com preparo técnico adequado não só no mercado agronegocial, mas no próprio mercado bancário e, é claro, no campo do Direito. É justamente a multidisciplinaridade presente na arbitragem, justificada pela boa escolha de árbitros, bem como pela escolha de uma reputada instituição administradora de procedimentos arbitrais, que fazem com que os players ao final da disputa se satisfaçam com o seu resultado, prosseguindo em seus negócios e garantindo segurança jurídica ao mercado. A adoção da arbitragem nesses casos pode ser benéfica, ainda que tais títulos de financiamento (a depender de suas disposições) possam ser objeto de automática ação executiva (a depender, necessariamente, da presença dos requisitos da liquidez, certeza e exigibilidade, conforme previsão do art. 783 do Código de Processo Civil12). Nesses casos, não haverá incompatibilidade do uso da arbitragem em tais títulos, eis que a sua execução será exercida pela via judicial, dada a ausência do chamado poder de imperium na arbitragem13. No entanto, em caso de o devedor contestar a dívida exequenda, deverá fazê-lo por meio da arbitragem, apresentando seus embargos executórios única e exclusivamente pela via arbitral, já que a matéria tocará o mérito da disputa, integralmente reservado à jurisdição arbitral. As questões atinentes à compatibilidade entre execução e arbitragem já estão pacificadas no Brasil, tendo não só a doutrina14 como a jurisprudência dos nossos Tribunais de Justiça como do Superior Tribunal de Justiça ("STJ") firmado entendimento de que ambos os institutos - arbitragem e execução possam conviver de forma harmoniosa15. O ponto principal que se pretende demonstrar nessas breves linhas, e sem qualquer pretensão de esgotar a matéria ainda sujeita a muito debate, é mostrar aos players do agronegócio a importância de se ter um mecanismo eficaz de resolução de disputas. Eficácia não significa que o conflito deva ser resolvido de forma rápida ou açodada. Eficácia deve ser lida no plano da eficiência. Resolução técnica e em espaço de tempo razoável, preservando as relações comerciais e estabilizando a cadeia produtiva agroindustrial. __________ 1 Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado do Mato Grosso. 2 Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais 3 Federação Brasileira de Bancos 4 Fundos de garantia constituídos e regulados por estatuto próprio, afetados ao pagamento de determinadas operações de crédito contratadas por produtores rurais (inclusive para financiamento de infraestrutura e conectividade rural). Os recursos do FGS não respondem por outras dívidas ou obrigações assumidas pelos devedores, alheias aos financiamentos. 5 Regime de afetação constituído perante o Serviço de Registro de Imóveis competente, que destaca um determinado imóvel rural, no todo ou em parte (exceto lavouras, bens móveis e semoventes), do patrimônio do seu titular, vinculando-o ao pagamento de dívidas consubstanciadas em Cédulas de Produto Rural (CPR) ou em Cédulas Imobiliárias Rurais (CIR). 6 Título de crédito cuja emissão é privativa de proprietários rurais, representativo de promessa de pagamento em dinheiro e, em caso de inadimplemento, de obrigação de entregar um imóvel sujeito a Patrimônio Rural de Afetação. 7 Notadamente em razão da perda do patrimônio afetado, sobretudo em casos que o valor do imóvel seja maior do que o da dívida (art. 28 da Nova Lei do Agro) 8 O chamado "CRA", título lastreado em direitos creditórios do agronegócio, constituem títulos de crédito nominativos de livre negociação lastreados em créditos agropecuários de emissão exclusiva das companhias securitizadadoras (regulamentado pela lei 11.076, de 30 de dezembro de 2004). 9 A respeito do nível de complexidade de tais operações, ver ZANCHIM, Kleber Luiz e NOVAES, Natália Fazano. Infraestrutura e Agronegócio: modelagem de projetos estruturados. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 18-27. 10 Diversas instituições arbitrais contêm modelos de clausulas compromissórias de arbitragem, dos mais diversos tipos, e podem ser consultadas nos respetivos websites das citadas instituições. A título de exemplo, citamos: (i) CAMARB:; (ii) CAM-CCBC:, inter alia. 11 De acordo com Marcos Hokumura Reis, "Criada pela lei 8.929, de 22 de agosto de 1994, a CPR representa uma obrigação de entrega, em data futura, de produtos rurais (ou subprodutos), conforme a quantidade, especificação do produto e local definidos no próprio título. Trata-se, portanto, de um título de crédito líquido, certo e exigível na forma expressa na cédula, passível somente de ser emitido por produtor rural, pessoa física ou jurídica, suas associações ou cooperativas". REIS, Marcos Hokumura. Títulos de financiamento do agronegócio e cláusula arbitral: coexistência pacífica e benéfica. In: REIS, Marcos Hokumura (Coord.). Arbitragem no agronegócio. São Paulo: Verbatim, 2018. p. 151-157. 12 Art. 783. A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível. 13 O árbitro possui o poder de dizer o direito - a jurisdictio -, pondo fim à "crise do direito material", condenando o vencido a reaver o bem violado. A pretensão arbitral assimila-se assim a uma demanda, normalmente, de cunho condenatório. E tão somente condenatório, não executório, pois os atos de coerção são próprios da força pública, do imperium do juiz estatal. Nesse sentido, já dizia Charles Jarrosson: "La formule exécutoire ne peut être apposée sur les décisions de justice que par le juge étatique, à l'exclusion de l'arbitre, puisqu'elle ouvre la voie à un éventuel recours à la force publique. On ne comprendrait pas comment un arbitre qui tire son pouvoir juridictionnel de volontés privées, pourrait disposer ce cette force" (Réflexions sur l'imperium. Études offertes à Pierre Bellet. Paris: Litec, p. 268). 14 Ver, nesse sentido: REIS, Marcos Hokumura. Títulos de financiamento do agronegócio e cláusula arbitral: coexistência pacífica e benéfica. In: REIS, Marcos Hokumura (Coord.). Arbitragem no agronegócio. São Paulo: Verbatim, 2018. p. 151-157. O assunto ora tratado também foi objeto de debates na I Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios do Conselho da Justiça Federal, que culminou com a aprovação do Enunciado 12: "A existência de cláusula compromissória não obsta a execução de título executivo extrajudicial, reservando-se à arbitragem o julgamento das matérias previstas no art. 917, incs. I e VI, do CPC/2015". Para uma noção geral e completa acerca do tema, cita-se a dissertação de mestrado de Fernanda Gouvêa Leão ("Arbitragem e Execução". Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2012, acessível aqui. 15 Nesse sentido, citam-se os seguintes julgados, ambos emanados do STJ: "Deve-se admitir que a cláusula compromissória possa conviver com a natureza do título [...]. Não é razoável exigir que o credor seja obrigado a iniciar uma arbitragem para obter juízo de certeza sobre uma confissão de dívida que, no seu entender, já consta do título executivo" (STJ, REsp 944.917/SP, 3ª Turma, Relª Min. Nancy Andrighi, J. 19.08.2008); "É competente para decidir as questões de mérito relativas a contrato com cláusula arbitral, a câmara eleita pelas partes para fazê-lo. Tal competência não é retirada dos árbitros pela circunstância de uma das partes ter promovido, antes de instaurada a arbitragem, a execução extrajudicial do débito perante o juiz togado. Tendo em vista a competência da câmara arbitral, não é cabível a oposição, pela devedora, de embargos à execução do mesmo débito apurado em contrato. Tais embargos teriam o mesmo objeto do procedimento arbitral, e o juízo da execução não seria competente para conhecer das questões nele versadas" (STJ, MC 3.274/SP, Relª Min. Nancy Andrighi, J. 13.09.2007). Vide ainda, o RESP 1.465.535, de relatoria do Min. Luiz Felipe Salomão: "(...) O Juízo estatal não terá competência para resolver as controvérsias que digam respeito ao mérito dos embargos, às questões atinentes ao título ou às obrigações ali consignadas (existência, constituição ou extinção do crédito) e às matérias que foram eleitas para serem solucionadas pela instância arbitral (kompetenz e kompetenz), que deverão ser dirimidas pela via arbitral (...)". STJ, REsp 1.465.535/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Luiz Felipe Salomão, J. 21/6/2016.
A arbitragem no Brasil, apesar de ter sua prática existente há muitos anos, consolidou-se a partir da edição da lei 9.307/1996. O anteprojeto de aludida lei, capitaneado por Carlos Alberto Carmona, Pedro A. Batista Martins e Selma Ferreira Lemes, se baseou em experiências alheias. No caso do Brasil, a base de apoio para a redação do anteprojeto de lei foi a antiga lei espanhola de arbitragem, bem como a Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da UNCITRAL de 19851. Tais experiências ditas alheias, praticadas em outros povos do globo podem ser benéficas para o aperfeiçoamento do direito nacional2, como o foi no direito arbitral brasileiro. O que o direito brasileiro fez, foi, na realidade, o uso do direito comparado para aperfeiçoar o seu próprio sistema jurídico. A força e importância do direito comparado conduzem a doutrina a classificá-lo como sendo mais do que um método, mas uma verdadeira disciplina jurídica autônoma3. Como ponderou Leontin-Jean Constantinesco, "no curso do tempo, os juristas se tornam cada vez mais conscientes do fato de que as experiências dos outros povos constituem uma reserva indispensável para qualquer reforma jurídica válida"4. Essa afirmação se coaduna com as metas do direito comparado e se encaixa perfeitamente no propósito das presentes linhas. O estudo da arbitragem (sobretudo a internacional) sob a perspectiva do direito comparado é fato relevante nesses dias em que, na ausência de uma regra adequada a ser a aplicada num conflito entre partes de diferentes nacionalidades, envolvendo negócios jurídicos típicos do comércio internacional, buscam os árbitros preencher uma lacuna do direito aplicável por meio de soluções advindas do direito comparado. É o que ensina Bénedicte Fauvarque-Cosson: "International commercial arbitration has become a particularly important context for the use of comparative law in recent years. A comparative approach not only brings a sense of legitimacy to the process, it is also useful as source of law. Arbitrators often like to refer to a variety of legal sources in order to justify the application of one national rule instead of another, or in order to fill a gap when there is no satisfactory solution in domestic law"5. Com efeito, por meio do direito comparado, é possível encontrar soluções que possam preencher eventuais lacunas jurídicas existentes em um determinado sistema legal, observando os diferentes sistemas legais, suas convergências e divergências, até que se chegue a um denominador comum. Foi num exercício de puro direito comparado, por exemplo, que a nova lei espanhola de arbitragem consolidou num único artigo de seu corpo legal, todas as possibilidades de caracterização da internacionalidade da arbitragem6. Da mesma forma, aplaude-se o legislador brasileiro, que, também num exercício de direito comparado, tomou por "empréstimo"7 o clássico conceito de "contrato internacional"8 de Henri Battiffol9, na redação da nova lei de franquias de 27 de dezembro de 2019 (lei 13.966/2019)10. Fez-se aqui o que alude Jan Smits, que o direito comparado preenche uma importante função no direito interno pois, influencia na eventual reforma de um direito nacional11, ou, como disse Edward Wise, possibilita e promove o "transplante" de regras dos diversos modelos estrangeiros para o direito nacional12. Pensa-se que o direito comparado sirva como verdadeira disciplina autônoma do direito, capaz de influenciar legislações e julgados em redor do mundo, aperfeiçoando tais legislações e julgados13. Um ponto que mereceria particular atenção de nosso legislador, diz respeito às regras sobre prescrição existentes no direito brasileiro e sua compatibilidade com a arbitragem14. Alguns pontos ainda restam obscuros e incompletos no direito brasileiro, merecendo destaque a comparação com diplomas como a Convenção de Nova York de 197415, bem como os Princípios Unidroit 201616 (em especial o capitulo 10 dos referidos princípios) assim como diversas legislações estrangeiras, que trazem um corpo de regras completas e específicas acerca das implicações do instituto da prescrição no âmbito da arbitragem17. É partir desse ponto que o direito comparado pode oferecer uma relevante contribuição ao direito interno brasileiro, pois, como assevera Marc Ancel, isso permitirá ao jurista uma melhor compreensão do direito nacional, cujas características particulares se evidenciam, muito mais, mediante uma comparação com o direito estrangeiro18. Mas como, tudo na vida, a cautela deve existir. A utilização do direito comparado dever ser cuidadosa, verificando-se, entre os sistemas legais, a existência de pontos comuns, pontos de divergência e pontos de convergência. Como diria Rodolfo Sacco, uma das maiores referências do direito comparado, "o comparatista [...] não pode transferir uma noção de um sistema estranho ao próprio sistema conceitual sem tomar certas precauções. Ele deve, isto sim, buscar nas regras operacionais os denominadores comuns dos diversos sistemas conceituais, para avaliar divergências e concordâncias"19. Espera-se que essas breves linhas tragam à lume as ideias desenvolvidas em outros povos, seja do ponto jurídico ou mesmo do ponto de vista sócio-político e econômico, de modo que o Brasil possa se aperfeiçoar ainda mais, aprimorando sua legislação, e sua forma de se portar perante o mundo. __________ 1 Ver, nesse sentido, STRAUBE, Frederico José. A Evolução da Arbitragem no Brasil Após a Lei 9.307/96 in Revista de Arbitragem e Mediação, Vol. 50. São Paulo: RT, (jul-set. 2016), pp. 177-183. 2 Nesse sentido, v. DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4. No mesmo sentido, v. SACCO, Rodolfo. Introdução ao direito comparado. Tradução de Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001. p. 49. 3 Sobre o objetivo do direito comparado, na condição de disciplina autônoma do direito, afirmam Mary Ann Glendon, Michael W. Gordon e Christopher Osakwe: "Comparative law then, as an academic discipline in its own right, is a study of the relationship, above all the historical relationship, between legal systems or between rules of more than one system" (Comparative Legal Traditions. Saint Paul: West Publishing, 1985. p. 7) 4 CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Tratado de direito comparado: introdução ao direito comparado. Edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 152 5 FAUVARQUE-COSSON, Bénédicte. Development of Comparative Law in France. In: REIMANN, Mathias; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). The Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 59-60). De igual forma é o pensamento de Emmanuel Gaillard: "Il n'est pas surprenant que le droit comparé soit, aux cotés de la jurisprudence arbitrale, des conventions internationales, et de tous les autres éléments permettant de montrer l'existence d'une acceptation générale de la règle, la première des sources auxquelles les arbitres ont recours lorsqu'ils souhaitent faire usage de la méthode des règles transnationales [...]" (Aspects philosophiques du droit de l'arbitrage international. Leiden/Boston: Les livres de poche de l'académie de droit international de l'Haye, Martinus Nijhoff Publishers, 2008. p. 84). 6 Nesse sentido, ver Lei 60, de 23.12.2003, revista em 2011. Texto integral em: https://noticias.juridicas.com/base_datos/Anterior/r2-l60-2003.html. Acesso em 30.03.2020. Ver ainda, nosso estudo publicado nesta Coluna no seguinte link: https://www.migalhas.com.br/coluna/arbitragem-legal/303150/arbitragem-domestica-vs--arbitragem-internacional. Acesso em 26/3/2020. 7 Nesse sentido, ao explicar a prática do "empréstimo" de regras jurídicas, em vez de inventar uma regra própria, diz Edward Wise o seguinte: "The history of law is characterized by prodigious amount of borrowing. Lawmakers are apt to use foreign models, with minor modifications, rather than invent entirely new rules". WISE, Edward M. The Transplant of Legal Patterns. The American Journal of Comparative Law, v. 38, p. 5, 1990 8 Nesse sentido, o art. 7º, § 2º da nova lei de franquia: "Para os fins desta Lei, entende-se como contrato internacional de franquia aquele que, pelos atos concernentes à sua conclusão ou execução, à situação das partes quanto a nacionalidade ou domicílio, ou à localização de seu objeto, tem liames com mais de um sistema jurídico." 9 O texto do parágrafo segundo do art. 7º da nova Lei de franquias adota o exato conceito de contrato internacional estabelecido por Henri Batiffol, que ensina que o contrato é internacional "quando, pelos atos concernentes à sua conclusão ou sua execução, ou à situação das partes quanto à sua nacionalidade ou seu domicílio, ou à localização de seu objeto, ele tem liames com mais de um sistema jurídico" (Contrats et conventions. Répertoire Dalloz de droit international privé, n. 9, p. 379, tradução livre). 10 Nesse sentido, vide nosso estudo publicado nesta Coluna no seguinte link: https://www.migalhas.com.br/coluna/arbitragem-legal/319283/a-nova-lei-de-franquia--arbitragem-e-contratos-internacionais. Acesso em 26/3/2020. 11 Nos dizeres originais do referido autor: "It is well known that alongside the scholarly pursuit of knowledge of similarities among and differences between legal systems, comparative law may fulfil a role in national legal practice. The most obvious example of this is the use of comparative law by national legislatures and courts in creating, reforming, and interpreting national law". SMITS, Jan M. Comparative Law and its Influence on National Legal Systems. In: REINMANN, Mathias; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). The Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford: University Press, 2008. p. 514 12 Nesse sentido v. WISE, Edward M. The Transplant of Legal Patterns. The American Journal of Comparative Law (AJCL), v. 38, p. 1-22, 1990. 13 Já dizia René David que um dos pontos de utilidade do direito comparado é justamente conhecer melhor e aperfeiçoar o nosso direito nacional (DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 4.). 14 O que há, até hoje, é a criticável norma prevista no art. 19, parágrafo 2º da Lei nº 9.307/1996. 15 Convenção sobre Prescrição em Matéria de Venda Internacional de Mercadorias, firmada em Nova York, em 14.06.1974. Íntegra em: https://uncitral.un.org/sites/uncitral.un.org/files/media-documents/uncitral/en/limit_conv_e_ebook.pdf. Acesso em 26/3/2020. 16 UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts 2016. Íntegra em: https://www.unidroit.org/english/principles/contracts/principles2016/principles2016-e.pdf. Acesso em 26.03.2020. 17 Exemplos disso, são: o Código Civil Italiano, o Código Civil Português assim como o Código de Obrigações da Suíça. A esse respeito, ver NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014. 18 ANCEL, Marc. Utilidade e métodos do direito comparado: elementos de introduçao geral ao estudo comparado dos direitos. Tradução de Sérgio José Porto. Porto Alegre: Fabris, 1980. p. 17-18 19 SACCO, Rodolfo. Introdução ao direito comparado. Tradução de Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001. p. 67).
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Alteração de pedidos no curso da arbitragem

Um dos mais delicados temas tratados na arbitragem, tanto doméstica quanto a internacional, diz respeito à possibilidade ou não de alteração, emendas ou até mesmo a formulação de pedidos novos no curso de um procedimento arbitral. Tal polêmica pode ser explicada muito em razão do momento em que a demanda arbitral é estabilizada, o que ocorre quando o Termo de Arbitragem ou Ata de Missão1 são firmados. Com efeito, é exatamente neste documento - Termo de Arbitragem - que há a delimitação do objeto da lide e contém os pedidos das partes a serem, necessariamente, detalhados e quantificados nas alegações escritas (Alegações Iniciais e Resposta). Isso representa o que a mais autorizada doutrina denomina "estabilização da demanda"2. No entanto, exceções podem ocorrer. A ausência do fator rigidez na arbitragem em comparação com o processo civil pode justificar, a depender de determinados pontos durante o desenvolvimento do procedimento arbitral, a inclusão (no curso da demanda) de pedido originalmente não formulado no Termo de Arbitragem3. A esse respeito, o Regulamento de Arbitragem da CCI contém a regra disposta em seu art. 23 (4), segundo a qual: "Após a assinatura da Ata de Missão ou a sua aprovação pela Corte, nenhuma das partes poderá formular novas demandas fora dos limites da Ata de Missão, a não ser que seja autorizada a fazê-lo pelo tribunal arbitral, o qual deverá considerar a natureza de tais novas demandas, o estado atual da arbitragem e quaisquer outras circunstâncias relevantes". A interpretação da regra acima citada leva a crer que o procedimento arbitral possa conviver com modificações nos contornos objetivos da disputa após a assinatura do Termo de Arbitragem. Para tanto, é necessária autorização específica do Tribunal Arbitral ou Árbitro Único4, o qual deverá levar em consideração "a natureza das demandas, o estado atual da arbitragem e quaisquer outras circunstâncias relevantes". Mas, o que constituiria uma alteração de pedido no curso da arbitragem, a ensejar um pedido novo? A doutrina estrangeira, com foco nas arbitragens regidas pelo Regulamento da CCI, responde com clareza: "Normally, ICC arbitral tribunals do not consider a change in argument as a new claim. Typically, a new claim will imply that the relief requested is based on an entirely new ground. That new ground would need to be more than a mere correction or adjustment to the language of an existing request for relief. In a case administered under the 1998 Rules, the claimant sought to change its cause of action, preferring to argue the tort of deceit rather than contractual misrepresentation. The respondent objected by alleging that the claim was entirely new. In its final award, the arbitral tribunal found that the switch from contract to tort did not result in the making of a new claim. The tort argument was based on the same set of facts as the contractual argument. Furthermore, the claimant did not seek additional forms of relief. Accordingly, the sole arbitrator determined that the claimant's modification of its case merely amounted to a "new characterization of a claim already presented in the Terms of Reference". Similarly, adjusting the quantum of a quantified claim is not usually considered as amounting to a new claim"5. Em procedimentos arbitrais complexos, pedidos originalmente não formulados no Termo de Arbitragem, que surgem no curso da demanda, mas cujo fato gerador nasce no curso da arbitragem, podem eventualmente ser admitidos, dependendo da natureza de tais novas demandas, o estado atual da arbitragem e quaisquer outras circunstâncias relevantes. Em casos de disputas societárias, por exemplo, ajustes de auditoria realizados durante o curso do procedimento, podem ensejar a inclusão de novos pedidos que impliquem na majoração da disputa. De igual forma, em casos de construção, nada impede que um pleito adicional, decorrente de ajustes na obra realizados durante o curso da arbitragem, seja incluído no procedimento. Tudo dependerá, não apenas dos requisitos acima citados, mas que haja clara similitude fática dos pedidos novos em relação aos que restaram consignados no Termo de Arbitragem, mas, sobretudo, que haja intenso debate sobre tais novos pleitos, sem que haja distúrbios ao calendário do procedimento arbitral6. O exercício do contraditório nessas situações é de crucial importância, de modo a viabilizar a admissão do pedido novo, e afastar quaisquer alegações de nulidade dos atos praticados no procedimento arbitral7. Em suma, a questão relativa à alteração de pedidos no curso da arbitragem, apesar de constituir tema delicado, deve ser visto com cautela e caso a caso. Conforme já tivemos a oportunidade de expor em outro escrito desta Coluna8, os dispositivos do Código de Processo Civil não são direta ou automaticamente aplicáveis à arbitragem, e, na questão relativa aos pedidos, eventuais alterações no curso do procedimento podem representar uma exceção, e serem eventualmente acolhidos9. O mais importante de tudo é que o pedido novo não tenha o condão de gerar mais ônus às partes (como a imposição de propositura de novo procedimento arbitral, por exemplo10), tenha utilidade para garantir uma resolução completa e eficiente da disputa e, o mais importante, seja objeto de intensos e profundos debates entre as partes e o Tribunal Arbitral, assegurando o pleno contraditório e a ampla defesa das partes no procedimento arbitral. __________ 1 Nomenclatura utilizada pelo Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional - CCI. 2 "O termo de arbitragem tem na delimitação do objeto do litígio e do pedido das partes seus pontos mais importantes, que representam a estabilização da demanda. Apesar de ser a convenção de arbitragem o instrumento originário e vinculante da arbitragem, não se pode deixar de considerar que o termo de arbitragem tem o condão de reiterar os termos da convenção de arbitragem, delimitar a controvérsia e ressaltar a missão do árbitro, que deverá ater-se às suas disposições, para não gerar motivos para a anulação da sentença arbitral". (LEMES, Selma M. F. A função e o Uso do Termo de Arbitragem. Valor Econômico, p. e-2 - E-2, 08 set. 2005). No mesmo sentido, aduz Cândido Rangel Dinamarco: "Seja como for, o objeto do processo arbitral é determinado sempre pelo pedido endereçado aos árbitros, qualquer que haja sido o iter de sua formulação. Quando o compromisso não for claro, o pedido será especificado por solicitação dos árbitros, chegando-se com isso à estabilização da demanda (CPC, art. 294), que outra coisa não é senão a definitiva delimitação do objeto do processo arbitral. Quando tudo houver sido feito, havendo as partes ajustado concretamente um compromisso e nomeado os árbitros, vindo estes a aceitar o encargo, o instrumento desse ato complexo terá desde logo definido o objeto do processo arbitral que assim se instaura, cabendo ao conselho arbitral pronunciar-se afinal sobre a divergência pendente entre os contendores". (DINAMARCO, Cândido Rangel. Limites da sentença arbitral e de seu controle jurisdicional. In: AZEVEDO, Andre Gomma de (ORG.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação - volume 2. Brasília/DF/Brasil: Grupos de Pesquisa, 2003. p.19-33. 3 "Aliás, na arbitragem, a informalidade, a deformalização e a economia processual militam em favor desse entendimento. Não há, na arbitragem, a rigidez que se costuma encontrar no processo civil. A estabilização da demanda não se determina com a rapidez e com o rigor encontrados no processo estatal. Ao contrário, o desenrolar do procedimento pode nortear a alteração do próprio objeto controvertido, a necessidade de produção de provas não especificadas e a juntada de documentos a destempo". (MARTINS, Pedro A. Batista. Apontamentos sobre a lei de arbitragem. Rio de Janeiro/RJ/Brasil: Forense, 2008. p 227). No mesmo sentido, o entendimento de Eduardo de Albuquerque Parente: "Nesse prisma, também as alterações do pedido no curso do processo não obedecem ao esquema rígido do processo estatal, e sim aos preceitos inerentes ao sistema do processo arbitral, conforme vimos falando desde o início. (...) A compleição do processo arbitral, com seus influxos e princípios, não permite uma posição sectária no tocante à alteração do objeto do processo, suposto que pautado no contraditório. Evidentemente que deve haver limites, justamente para que o processo não se prolongue indefinidamente, assim como, ainda mais relevante, para que parte e árbitro não sejam surpreendidos por novas demandas". (PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo Arbitral e Sistema. São Paulo/SP/Brasil: Atlas,2012. p 174). 4 "The Terms of Reference also create a cut-off for new claims. Parties may bring new claims not made within the Request for Arbitration or the Answer only prior to the signature or approval of the Terms of Reference. Thereafter, new claims may be made only pursuant to Article 23(4), which requires the arbitral tribunal's authorization". FRY, Jason. GREENBERG, Simon. MAZZA, Francesca. MOSS, Benjamin. The Secretariat's Guide to ICC Arbitration, International Chamber of Commerce: Dispute Resolution Library, 2012 5 FRY, Jason; GREENBEERG, Simon; MAZZA, Francesca. The Secretariat's Guide to ICC Arbitration. International Chamber of Commerce, 2012, §3- 898. 6 Nesse sentido, é a lição de Karin Beyler: "Provided that the new claim is filed at a time that allows the other side to respond to it without seriously delaying the timetable that was previously agreed, there will not normally be any problems of due process and there would, therefore, be no reason not to admit the new claim, even if it could have been made earlier in the proceedings". BEYELER, Karin. Chapter 4, Part II: Commentary on the ICC Rules, Article 23 [Terms of reference], in Manuel Arroyo (ed), Arbitration in Switzerland: The Practitioner's Guide. Kluwer Law International, 2013, p. 786. 7 Nesse sentido: "Nulidade alguma haverá porém quando, apesar de toda essa irregularidade processual, o réu tiver tido oportunidade de defender-se dos novos pedidos ou causas de pedir, e particularmente quando a propósito ele houver efetivamente oferecido defesa pelo mérito, contestando, argumentando e trazendo elementos de prova. [...] Observado efetivamente o contraditório, exclui-se o prejuízo que os aditamentos ou alterações pudessem causar, e também por essa razão infraconstitucional não haverá a anular, o que é uma posição do princípio da instrumentalidade das formas" (ênfase acrescentada). DINAMARCO, Cândido Rangel. A Arbitragem na Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 146 8 Ver, notadamente, NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem, Dispositivos e Princípios do Código de Processo Civil. Coluna Arbitragem Legal. Link para acesso. 9 "O sistema processual civil brasileiro restringe a introdução de novos pedidos ao longo do procedimento. O art. 294 do CPC estabelece que o autor poderá aditar o pedido antes da citação do réu, enquanto que o art. 264, caput, determina que após a citação do réu o pedido somente poderá ser modificado com a concordância do réu. O parágrafo único do art. 164, por sua vez, estabelece que a alteração do pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após o saneamento do processo. Todavia, os arts. 264 e 294 do CPC não tem aplicação na arbitragem, onde o conceito de estabilização deve ser mitigado. Como bem ressaltado pelo magistrado, as formalidades típicas do direito processual civil não são cabíveis na arbitragem e o procedimento arbitral é inegável mais flexível que o processo judicial. É claro que em algum momento ocorrerá a estabilização da demanda também na arbitragem, mas há maior flexibilidade do que no processo judicial, até porque as partes têm maior autonomia na definição de tais questões. A autonomia da vontade tem papel de destaque na arbitragem, já que se trata de jurisdição privada, de origem contratual, onde as partes têm liberdade de escolher os julgadores, o direito aplicável à solução do litígio, assim como a forma de instituição e condução do procedimento arbitral. (LEMES, Selma Maria Ferreira; BARROS, Vera Cecília Monteiro de. Ação de anulação de sentença arbitral - Termo de arbitragem e estabilização da demandada: Comentários à sentença proferida no processo 583.00.2011.200971-0. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, ano 10, n.36, p.391-400)". 10 Nesse sentido. É a lição de Yves Derains e Eric Schawartz: "Although there is broad support for the proposition that, in order to avoid disruption and delay, there ought to be a moment in any arbitration proceeding when new claims should no longer be allowed, not all cases are the same, and in certain circumstances the admission of a new claim may not only be reasonable and legitimate, but preferable to the alternative, i.e., the commencement of a new Arbitration". DERAINS, Yves. A. SCHWARTZ, Eric. A Guide to the ICC Rules of Arbitration. Kluwer Law International, Second Edition, p. 267.
Em 27 de dezembro de 2019 foi publicada no Diário Oficial da União a lei 13.966, que revogou a antiga Lei de Franquia, lei 8.955/1994, e dispõe sobre o sistema de franquia empresarial ("Nova Lei de Franquia"). O novel sistema legal disciplina o sistema de franquia empresarial, "pelo qual um franqueador autoriza por meio de contrato um franqueado a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual (...) e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem caracterizar relação de consumo ou vínculo empregatício"1. Entre os diversos (e relevantes)2 pontos da nova legislação sobre franquia empresarial, merecem destaque os parágrafos primeiro e segundo do art. 7º do aludido diploma, que assim dispõem: "§ 1º As partes poderão eleger juízo arbitral para solução de controvérsias relacionadas ao contrato de franquia. § 2º Para os fins desta Lei, entende-se como contrato internacional de franquia aquele que, pelos atos concernentes à sua conclusão ou execução, à situação das partes quanto a nacionalidade ou domicílio, ou à localização de seu objeto, tem liames com mais de um sistema jurídico." Como já afirmara um autor em recente artigo publicado neste portal, a inclusão da arbitragem como método alternativo ao Judiciário para a resolução de controvérsias decorrentes dos contratos de franquia era desnecessária. Com razão, o autor do aludido texto afirma: "A segunda possível razão para o legislador ter inserido a despicienda previsão de "permissão arbitral" na Nova Lei de Franquia Empresarial adviria do entendimento de que o contrato de franquia representaria uma relação de consumo, sujeito, portanto, às normas do Código de Defesa do Consumidor, dentre elas o artigo 51, VII, que prevê a nulidade de cláusula contratual relativa ao fornecimento de produtos e serviços "que determinem a utilização compulsória de arbitragem"3. De fato, a crítica acima mencionada procede, uma vez que a Nova Lei de Franquia não precisava permitir algo que já é permitido pela lei 9.307/1996 ("LArb"), que, em seu art. 1º dispõe: "As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis". Por óbvio, a franquia empresarial, está englobada no âmbito dos direitos patrimoniais disponíveis, tal como dispõe o mencionado art. 1º da LArb. No entanto, em outros aspectos, o legislador andou bem. Somada ao estabelecimento de um caráter efetivamente empresarial, garantindo maior segurança jurídica à relação franqueador-franqueado, merece destaque a inserção expressa da franquia empresarial no âmbito internacional. Nesse sentido, conhecedor das especificidades que permeiam os contratos internacionais4, cujos efeitos jurídicos causam influência direta na própria internacionalidade do litígio, o legislador foi feliz ao conceituar "contrato internacional" no corpo da Nova Lei de Franquia, como se observa no parágrafo segundo do artigo 7º do referido diploma, supratranscrito. Nota-se um extremo cuidado do legislador ao conceituar contrato internacional, levando em consideração critérios objetivos importantes, como "atos concernentes à sua conclusão ou execução, à situação das partes quanto a nacionalidade ou domicílio, ou à localização de seu objeto, tem liames com mais de um sistema jurídico"5. Trata-se, inclusive, de disposição importante no sentido de definir a internacionalidade de eventual procedimento arbitral que venha a surgir, em razão de uma disputa nascida no âmbito de um contrato internacional de franquia. Isso porque, devido à natureza internacional do contrato, eventual procedimento arbitral que surja decorrente desse aludido contrato terá, necessariamente, status internacional6. Trata-se de premissa, inclusive, já confirmada por precedentes emanados do Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido, a Ministra Eliana Calmon, ao julgar a Sentença Estrangeira Contestada (SEC) n.º 349/JP, asseverou o seguinte: "Preliminarmente, afasto a alegação de que não se tem para exame contrato internacional. O contrato foi assinado pela requerida, empresa nacional, com empresa estrangeira, avença esta firmada no Japão e com indicação do foro japonês para dirimir as controvérsias. Logo não se trata de contrato nacional, e sim internacional"7. E, em havendo uma arbitragem puramente internacional, é imperioso que as partes envolvidas (partes, advogados, árbitros e instituição arbitral que eventualmente administre o procedimento) levem em consideração elementos cruciais que fazem com que a arbitragem internacional represente um método bastante peculiar em relação à arbitragem doméstica: (i) árbitros internacionais não estão necessariamente vinculados às disposições da lei da sede da arbitragem (lex arbitri)8, bem como não se vinculam a qualquer método de conflito de leis9; (ii) na arbitragem internacional, a lei escolhida pelas partes (no contrato) pare reger o mérito da controvérsia (lex causae e/ou a lex contractus). Trata-se de elementos amplamente aceitos na seara da arbitragem internacional10. Importante ressaltar que tais premissas acima colocadas, não se conflitam com quaisquer dispositivos da Nova Lei de Franquia. Pelo contrário, a lei é bastante clara ao facultar às partes a escolha do foro de um de seus países de domicílio11, privilegiando a ampla autonomia das partes, o que está em plena harmonia com fator "internacionalidade"12. Em suma, apesar de ser realmente desnecessária a inclusão do permissivo para utilização da arbitragem em contratos de franquia empresarial, o novel diploma encampa a importante definição da internacionalidade do contrato, o que, sem dúvida, traz segurança aos que eventualmente firmarem contratos de franquia no âmbito internacional, sobretudo no caso da existência de futuros litígios, os quais, por consequência lógica, se darão na seara da arbitragem comercial internacional, cujos efeitos jurídicos são mais abrangentes e peculiares do que os da arbitragem doméstica. __________ 1 Art. 1º da lei 13.966/2019. 2 A importância do novel diploma sobre franquia empresarial é discorrido com precisão por Luis Fernando Guerrero e Hugo Tubone Yamashita em recente artigo publicado no Jornal Empresas e Negócios ("A Busca por um Sistema de Franquias Definitivamente Empresarial"). Acesso em 18/1/2020. 3 GIUSTI, Gilberto. Nova Lei de Franquia Empresarial (13.966/19) - Qual a necessidade de dispositivo expresso "permitindo" a solução de conflitos por Arbitragem? Migalhas, edição de 30/12/2019. 4 Para uma noção geral das especificidades dos contratos internacionais ver ALMEIDA, Ricardo Ramalho. O Conceito de Contrato Internacional. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: RT, v. 53, 2017, p. 355, 2017. 5 Curiosamente, o texto do parágrafo segundo do art. 7º da Nova Lei de Franquias adota o exato conceito de contrato internacional estabelecido por Henri Batiffol, que ensina que o contrato é internacional "quando, pelos atos concernentes à sua conclusão ou sua execução, ou à situação das partes quanto à sua nacionalidade ou seu domicílio, ou à localização de seu objeto, ele tem liames com mais de um sistema jurídico" (Contrats et conventions. Répertoire Dalloz de droit international privé, n. 9, p. 379, tradução livre). 6 A fórmula, segundo Antoine Kassis, é simples, eis que, considerando-se o contrato como internacional no sentido da utilização da regra do conflito de leis, bastaria somente saber se a internacionalidade do contrato esbarraria ou não em determinadas regras imperativas de um direito nacional. Ver, nesse sentido, KASSIS, Antoine. La réforme du droit de l'arbitrage international: Réflexions sur le texte proposé par le Comité français de l'arbitrage. Paris: L'Harmattan, 2008. p. 67 7 STJ, Corte Especial, SEC 349/JP, rel. Min. Eliana Calmon, j. 21/3/2007, DJ 21.05.2007, p. 528). De forma similar, a Ministra Nancy Andrighi, ao julgar o Recurso Especial n.º 712566/RJ, tomou como pressuposto básico para a caracterização da arbitragem internacional a internacionalidade do contrato, eis que todos os pontos de ligação da relação jurídica conectavam-se com leis de diferentes países, excluindo-se assim todas as características das quais são revestidos os contratos internos em que apenas uma única ordem jurídica é contemplada (STJ, 3.ª Turma, REsp 712566/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.08.2005, DJ 05.09.2005, p. 407). 8 Nesse sentido, a lição de Arthur Von Mehren: "In the case of judicial proceedings, sovereignty is focused; in the case of international commercial arbitrations, it is diffused or distributed. As a result, unlike the judge, the arbitrator has no lex fori." (Limitations on Party Choice of Governing Law: do they exist for International Commercial Arbitration?. The Mortimer and Raymond Sackler Institute of Advanced Studies. Tel Aviv University, 1986. p. 20). 9 Segundo Berthold Goldman: "we come across a remarkable innovation: the arbitrator is called upon to rule 'in accordance with (the rules of law) which he deems appropriate'. Thus, total freedom is left to him as to the choice of the rules of applicable law, and this choice will be direct: no allusion is made, indeed, to the passage by a rule of conflict, not only of an "arbitral" claim, but of any legal system." (La volonté des parties et le rôle de l'arbitre dans l'arbitrage international. Revue de l'Arbitrage, Paris: Comité français de l'arbitrage, p. 482, 1981, free translation). 10 FOUCHARD, Philippe; GAILLARD, Emmanuel; GOLDMAN, Berthold. Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996. p. 881 11 Art. 7º, inciso II da Nova Lei de Franquias: "Art. 7º Os contratos de franquia obedecerão às seguintes condições (...) II - os contratos de franquia internacional serão escritos originalmente em língua portuguesa ou terão tradução certificada para a língua portuguesa custeada pelo franqueador, e os contratantes poderão optar, no contrato, pelo foro de um de seus países de domicílio". 12 Sobre o assunto, v. NUNES, Thiago Marinho. Reflexões sobre a Internacionalidade da Arbitragem in Revista de Arbitragem GEARB. Belo Horizonte: N. 02, Jul./Dez. 2012, p. 252.282.
Texto de autoria de Thiago Marinho Nunes e Mariana Gofferjé Pereira Este breve ensaio traça algumas linhas do que os autores produziram recentemente em estudo em homenagem ao professor Cláudio Finkelstein, intitulado "Custos e Despesas na Arbitragem Doméstica e Internacional"1. A disciplina legal acerca das custas e despesas no procedimento arbitral encontra-se no art. 27 da Lei de Arbitragem ("LArb"), que possui a seguinte redação: "Artigo 27. A sentença arbitral decidirá sobre a responsabilidade das partes acerca das custas e despesas com a arbitragem, bem como sobre verba decorrente de litigância de má-fé, se for o caso, respeitadas as disposições da convenção de arbitragem, se houver". É de fácil percepção que o dispositivo acima transcrito não impõe quaisquer restrições à autonomia privada das partes em se tratando de alocação das custas e despesas com a arbitragem. Nesse sentido, a parte final do art. 27 da LArb, enaltece a prerrogativa das partes de pôr em prática sua vontade, seja para dividir o ônus de arcar com o custo do procedimento, ou para impô-lo totalmente ao vencido, ou, ainda, para dispor segundo o seu próprio entendimento. Na ausência de comando expresso das partes, fica a decisão a cargo do tribunal arbitral quando da prolação da sentença, devendo observar eventual regulamento de arbitragem aplicável2. A despeito de a norma legal ser derrogável pelas partes, o comando do art. 27 é no sentido de que a decisão sobre a alocação de custas e despesas no momento da prolação da sentença arbitral consiste em um dever, de modo que o tribunal arbitral possui a obrigação de proferir decisão a esse respeito3. As partes têm, por consequência, direito a obtenção de uma decisão relativa à responsabilidade pelo pagamento de custos e despesas, ainda que não tenham se manifestado a esse respeito durante o procedimento4, salvo se pactuado de modo diverso. Quanto à definição de custos e despesas com a arbitragem, nos parece mais adequado utilizar o critério da centralidade como o que, em tese, o que melhor define o que integra a jurisdição do tribunal arbitral. Segundo tal critério, os custos e despesas com a arbitragem são os gastos indispensáveis, relativos à administração do procedimento. Possuem conexão de ordem primária, por exemplo: honorários dos árbitros, despesas de viagem dos árbitros e do secretário do tribunal arbitral, se o caso, honorários de eventuais peritos apontados pelo tribunal arbitral, despesas com a realização de audiências, incluindo custos de serviços de estenotipia, intérpretes, etc., e, finalmente, custos administrativos da instituição administradora do procedimento. Assim, o tribunal arbitral possui discricionariedade para, ainda quando ausente qualquer pedido expresso nesse sentido, alocar tais expensas, caso assim entenda. Nesse contexto, podem surgir dúvidas quanto a possibilidade de reembolso dos honorários contratuais, que são pactuados exclusivamente entre a parte e seu patrono, sem qualquer ingerência ou interferência da contraparte. A questão é de grande relevância, uma vez que o gasto com representação legal na arbitragem pode muitas vezes ser expressivo, podendo em alguns casos ultrapassar largamente o custo com o procedimento5. A problemática advém do fato de que, ainda que se possa argumentar que os honorários contratuais constituem expensas de conexão primária com o procedimento arbitral, a LArb não se refere expressamente aos honorários advocatícios de sucumbência e confere às partes ampla discricionariedade para escolher, se desejarem, quem as representará no procedimento arbitral (art. 21, §3o da LArb). Diferentemente do que ocorre no processo judicial, no qual presença do advogado é legalmente exigida6, na arbitragem não necessariamente o instrumento de mandato - se houver - virá acompanhado da prestação de serviços de advocacia. De mais a mais, o valor das expensas a título de honorários advocatícios contratuais dependerá de quem será o profissional contratado. É certo que as custas e despesas constituem um elemento material da sentença e assim sendo, a questão pode ou não ser controvertida. Caso as partes reclamem o reembolso de honorários advocatícios, concordando ou não quanto ao reembolso dos honorários contratuais, o tribunal arbitral automaticamente possuirá jurisdição sobre a questão controvertida, pois haverá pedido específico nesse sentido - ainda que unilateralmente. A dúvida reside no momento em que as partes não tenham formulado esse pedido na convenção de arbitragem, no termo de arbitragem e nem durante o procedimento. Seria possível afirmar que a contratação do advogado representa custo e/ou despesa com a arbitragem e que, consequentemente, a retribuição pecuniária do procurador está entre os valores que podem ser objeto de reembolso pelos árbitros7? Quando a lei processual, o regulamento de arbitragem aplicável8 ou as partes não dispõem expressamente quanto aos honorários contratuais, entende-se que tal gasto integra, ao lado das despesas com pareceristas, peritos, etc., por elas nomeados, o custo das partes. Na realidade, praticamente todas os gastos próprios de cada parte estão abarcados nessa categoria. Por esse motivo, não sendo os honorários advocatícios caracterizados como custas e despesas com a arbitragem, não há que se falar em reembolso automático dos honorários contratuais pactuados ex parte9. A mesma lógica se aplica aos honorários de assistentes técnicos e pareceristas. De fato, grande parte das vezes se trata de gasto razoavelmente incorrido, que encontra fundamento do direito fundamental da parte de defesa. Nada obstante, ainda que seja adequado no caso concreto o ressarcimento, a categoria não se encaixa na regra prevista no art. 27 da LArb ("custas e despesas com a arbitragem"). Logo, não havendo pedido expresso nesse sentido, em tese, não caberia aos árbitros condenar as partes ao reembolso de tais verbas10-11. Daí a importância de as partes se preocuparem com alocação de custas e despesas com a arbitragem já no início da relação contratual. O ideal é que esteja previsto na convenção de arbitragem o que será objeto de ressarcimento e em que medida ocorrerá quando da prolação da sentença arbitral. Veja-se que a ideia não é esgotar o assunto na redação da convenção, mas fornecer ao tribunal arbitral um ponto de partida, dotando-o ao menos das linhas mestras para a decisão sobre custas e despesas. Em todo caso, o tribunal arbitral deve invariavelmente ser diligente para solicitar esclarecimentos às partes sobre as suas expectativas, de modo a evitar surpresas desagradáveis. Caso a alocação dos custos e despesas processuais não tenham sido objeto de debate, ou a menos de pedido expresso das partes, é prudente que o tribunal arbitral as convide a se manifestar - ainda que isso não seja necessário, em razão da norma diretiva do art. 27 da LArb. Por fim, a sentença arbitral também deve dispor, "se for o caso", sobre "verba decorrente de litigância de má-fé". O legislador houve por bem explicitar que o tribunal arbitral possui o poder de condenar a parte litigante de má-fé ao pagamento de multa a esse título, se assim julgar adequado, sempre por meio da sentença arbitral final. Nesse sentido, correta é a lição de Carlos Alberto Carmona ao defender que a penalidade "comporta aplicação oficiosa"12, isto é, os árbitros podem mesmo diante da ausência de pedido específico das partes, impor a condenação a esse título. Cumpre salientar que tal pecúnia não se confunde com as custas e despesas com a arbitragem, pois eventual dano processual não se relaciona com a derrota ou o sucesso no mérito do procedimento arbitral13. Mariana Gofferjé Pereira é graduanda em Direito pela PUC/SP. Assistente jurídica em Trindade Sociedade de Advogados. __________ 1 NUNES, Thiago Marinho e PEREIRA, Mariana Gofferjé. Custos e Despesas na Arbitragem Doméstica e Internacional. Direito Internacional e Arbitragem - Estudos em Homenagem ao Prof. Cláudio Finkelstein (coord. CASADO FILHO, Napoleão, QUINTÃO, Luísa e SIMÃO, Camila). São Paulo: Quatier Latin, 2019, pp. 539-552 2 Nesse sentido v. FICHTNER, José Antônio. MAHNHEIMER, Sérgio Nelson. MONTEIRO, André Luís. A Distribuição do Custo no Processo Arbitral. In: LEMES, Selma et. al. (eds.). Arbitragem: temas contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 270). 3 Como pondera Gary Born, nos casos de omissão da lei processual aplicável, há presunção de autoridade do árbitro para alocar custas: "This [American, French and Swiss] pratice reflects a general principle that, absent contrary indication in the parties' agreement, internacional arbitrators should be presumed to have authority to make and award on the costs of legal representation as part of their overall remedial powers". (BORN, Gary B. International Commercial Arbitration. 2. ed. The Hague: Kluwer Law International, 2014, pp. 3089 e 3095). 4 Paralelamente, no que concerne o processo judicial, vige o mesmo entendimento quanto a expressão "a sentença condenará o vencido", presente na legislação processual desde a edição do Código de Processo Civil de 1939. O Enunciado no 256 da Súmula do Supremo Tribunal Federal pacificou àquela época a dispensa de pedido expresso das partes para condenação em honorários. O legislador manteve a mesma premissa ao longo do tempo, tanto no CPC/73, quanto no CPC/15, tornando-a enfim explícita no regramento vigente. Cf. FICHTNER, José Antônio. MAHNHEIMER, Sérgio Nelson. MONTEIRO, André Luís. A Distribuição do Custo no Processo Arbitral. In: LEMES, Selma et. al. (eds.). Arbitragem: temas contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 249, nota de rodapé 46. 5 Uma pesquisa conduzida pelo Chartered Institute of Arbitrators (CIArb) em 2011 concluiu que cerca de 74% dos custos incorridos pelas partes era com serviços advocatícios (CIArb Costs of International Arbitration Survey. 2011. Acesso 6 de maio de 2019). 6 Cf. art. 1o, I do Estatuto da OAB. 7 A colocação de Ricardo de Carvalho Aprigliano quanto aos pedidos de ressarcimento formulados pelas é pertinente. O autor difere o pedido principal de reparação por um direito lesionado, do pedido de reembolso dos honorários contratuais dispendidos com a representação da parte solicitante, e conclui que "(.) como tudo o mais que permeia o processo arbitral, a decisão de pleitear tal reparação integral integra a esfera de autonomia das partes, não se podendo presumir que ao pedido principal deva ser agregado um pleito de ressarcimento das despesas com a contratação de advogados se não houver formulação de pedido específico" (APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Alocação de Custas e Despesas e a Condenação em Honorários Sucumbenciais em Arbitragem. In: CARMONA, Carlos Alberto et. al. (eds.). 20 anos da Lei de Arbitragem: homenagem à Petrônio R. Muniz. São Paulo: Atlas, 2016, p. 685). Mais além, Aprigliano observa que alguns dos artigos do Código Civil (Lei no 10.406/2002) preveem expressamente que são devidos honorários de advogado (e.g. arts. 389, 395 e 404, do Código Civil). Nesses casos especificamente, a lei material encarrega-se de assegurar o reembolso dos gastos com a representação. 8 Referem-se expressamente aos honorários advocatícios art. 10.4.1, do Regulamento de Arbitragem da CAM-CCBC; art. 15.6, do Regulamento de Arbitragem da CAM-CIESP/FIESP; e art. 38(1), do Regulamento de Arbitragem da CCI. O Regulamento de Arbitragem da CAMARB é omisso. 9 Em sentido contrário v. BERALDO, Leonardo de Faria, Curso de Arbitragem: nos termos da Lei no 9.307/96. São Paulo: Atlas, 2014, pp. 344-345. para quem a expressão do art. 27, da LArb abrange "(...) gastos com assistentes técnicos das partes, claro, ficam por conta de cada uma das partes e podem ser objeto de restituição ao final do processo. (...) os gastos com advogado estão, sem dúvida, dentro do conceito de 'custas e despesas com a arbitragem'". 10 Em sentido contrário, ver a lição de José Antônio Fichtner, Sérgio Nelson Mahnheimer e André Luís Monteiro Na sua visão dos referidos autores, a negativa do ressarcimento "(...) violaria o princípio maior de que o processo não deve ser fonte de prejuízo a quem tem razão e inibiria o litigante que sabe que está de acordo com a lei de utilizar todos os meios de defesa" (FICHTNER, José Antônio. MAHNHEIMER, Sérgio Nelson. MONTEIRO, André Luís. A Distribuição do Custo no Processo Arbitral. In: LEMES, Selma et. al. (eds.). Arbitragem: temas contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 274). 11 De todo modo, mister observar que não se trata de opor diretamente a quaisquer das partes os contratos celebrados com os advogados e experts da contraparte. Em verdade, o tribunal arbitral deve levá-los em conta como parâmetro e assim determinar o montante a ser ressarcido conforme o critério de alocação de custas e despesas adotado pelo tribunal arbitral, com base o princípio da relatividade dos contratos. Nesse sentido cf. FICHTNER, José Antônio. MAHNHEIMER, Sérgio Nelson. MONTEIRO, André Luís. A Distribuição do Custo no Processo Arbitral. In: LEMES, Selma et. al. (eds.). Arbitragem: temas contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 276. 12 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 375. Também se posicionam nesse sentido FICHTNER, José Antônio. MAHNHEIMER, Sérgio Nelson. MONTEIRO, André Luís. A Distribuição do Custo no Processo Arbitral. In: LEMES, Selma et. al. (eds.). Arbitragem: temas contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 270, pp. 280-281; e MARTINS, Pedro A. Batista. Apontamentos sobre a Lei de Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 292. 13 FICHTNER, José Antônio. MAHNHEIMER, Sérgio Nelson. MONTEIRO, André Luís. A Distribuição do Custo no Processo Arbitral. In: LEMES, Selma et. al. (eds.). Arbitragem: temas contemporâneos. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 281.
Os assuntos tratados no último escrito desta coluna basearam-se em matéria eminentemente de direito processual (litispendência e prevenção). Naquela oportunidade, algumas reflexões foram tecidas acerca da aplicação da regra processual da prevenção na arbitragem, dado o caráter principiológico da prevenção e sua utilidade no processo1. Tratar da aplicação do direito processual civil (mais precisamente, do Código de Processo Civil ou simplesmente "CPC") no âmbito da arbitragem constitui tema delicadíssimo e que deve ser tratado de forma extremamente cautelosa. Isso porque, como frisado no último escrito desta coluna, "no âmbito interno, por mais que os dispositivos do CPC não sejam aplicados à arbitragem, não há dúvidas de que seus princípios se aplicam". Não raro, as partes que contendem em procedimentos arbitrais invocam o CPC para a formulação de determinado pedido. Exemplo disso são as tutelas de urgência, requeridas, na maioria das vezes, com base no art. 300 e seguintes do CPC. Nesse caso, é preciso deixar claro que as normas contidas no CPC não se aplicam direta ou necessariamente ao procedimento arbitral, notadamente para a concessão de tutelas de urgência ou medidas liminares. Eventuais pedidos de urgência devem ser requeridos e apreciados pelo Árbitro Único ou Tribunal Arbitral com base no art. 22-B, caput e parágrafo único da lei 9.307/1996 ("LArb")2 ou de eventual norma regulamentar aplicável ao caso3. E, evidentemente, como base no princípio geral de cautela, imposto pela prática arbitral4. Da mesma forma, em matéria de apreciação de prova, não cabe a aplicação dos dispositivos do CPC previstos no art. 369 e seguintes do referido diploma legal. Como é cediço, é dever do julgador avaliar a pertinência da produção da prova requerida pelas partes, cabendo-lhe indeferir aquelas que não seriam necessárias ou nem mesmo úteis ao deslinde da controvérsia5. O princípio do livre convencimento é consagrado na prática da arbitragem, confirmada pela doutrina6 e jurisprudência brasileira7 e sem que haja qualquer vínculo dos dispositivos do CPC a respeito do assunto. Outro relevante ponto que tem suscitado debate no meio arbitral diz respeito à suposta aplicação do CPC diretamente à arbitragem diz respeito a aplicação das regras sobre honorários sucumbenciais previsto no referido diploma legal. Ainda que se entenda que o patrono da parte vencedora deva ser ressarcido pelos custos razoáveis que seu cliente despendeu durante o procedimento arbitral, não há automaticidade da aplicação do CPC no que diz respeito à alocação da verba sucumbencial. A arbitragem é regida pela LArb, em sistema autônomo, próprio, dissociado do CPC e, dependendo do caso, associada às regras constantes de determinado regulamento que seja aplicável. Salvo convenção em contrário das partes8, não se aplicam os dispositivos do CPC relativos à sucumbência na arbitragem9, mormente os percentuais estabelecidos naquele diploma processual10. Não se está aqui pretendendo afirmar que as regras do CPC sejam absolutamente inaplicáveis à arbitragem. Não há dúvidas acerca do caráter processual da arbitragem, que, como no processo civil, tem como fim o estabelecimento de uma prestação jurisdicional. Ambos os sistemas geram efeitos paralelos semelhantes11. Nesse sentido, cita-se a clássica lição de Francesco Carnelutti: "(...)Todavia, a meu aviso, com a arbitragem já estamos no terreno do processo, onde não creio que - diferentemente da transação e do processo estrangeiro - seja no caso de compreendê-la entre os equivalentes processuais. A razão está em que, à diferença do processo estrangeiro, o processo arbitral é regulado pelo nosso ordenamento jurídico não apenas no sentido de controle dos requisitos da sentença arbitral e dos seus pressupostos, mas também e acima disto, pela ingerência do Estado no desenvolvimento do próprio processo (...)"12. No entanto, suas estruturas sistêmicas são diferentes. À diferença do processo civil clássico, o processo arbitral é integralmente regido segundo a autonomia da vontade das partes, submetido a regras institucionalizadas (normalmente oriundas de regulamentos de arbitragem escolhidos de comum acordo pelas partes contendentes) e adaptadas ao caso concreto. Nesse sentido, Carlos Alberto Carmona defende que, de modo a evitar a processualização da arbitragem e sabendo-se que o árbitro, nas arbitragens domésticas, não está necessariamente vinculado aos dispositivos do Código de Processo Civil, pode ele "valer-se de mecanismos desconhecidos (porque o Código de Processo Civil não contempla), poucos conhecidos ou inacessíveis (porque a estrutura do Poder Judiciário tem conhecida deficiência econômica) ao juiz togado, de modo que o julgamento tenderá a ser de melhor qualidade"13. Como já dizia Donaldo Armelin, a arbitragem possui um sistema estrutural semelhante ao do processo civil, com a diferença de que quem julgará o litígio serão árbitros indicados pelas partes, imparciais e independentes, assim como o juiz estatal. Processo civil e arbitragem constituem, assim, "instrumentos heterônimos de solução de conflitos", na visão do saudoso mestre14. Em suma, reconhecer o caráter processual da arbitragem não significa obrigá-la a seguir o processo estatal. O CPC, repita-se, não se aplica à arbitragem. Seus dispositivos são próprios da máquina judiciária estatal e, à exceção dos seus princípios gerais, não se aplicam a qualquer arbitragem. __________ 1 Para acesso: Arbitragem legal. 2 Art. 22-B. Instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário. Parágrafo único. Estando já instituída a arbitragem, a medida cautelar ou de urgência será requerida diretamente aos árbitros. 3 A título de exemplo, cita-se o art. 9.1 do Regulamento de Arbitragem da CAMARB: "O Tribunal Arbitral, mediante requerimento de qualquer das partes ou quando julgar apropriado, poderá, por decisão devidamente fundamentada, deferir tutela de evidência ou de urgência, cautelar ou antecipada". 4 "(...) Qualquer das partes, diante da existência de [1] perigo de dano irreparável a [2] direito aparente, cuja certeza está sendo objeto do processo arbitral, pode solicitar ao árbitro a concessão de medida cautelar que assegure a eficácia do resultado do processo principal". STERSI DOS SANTOS, Ricardo Soares; LAMY, Eduardo de Avelar; PETEFFI DA SILVA, Rafael. Revista de Processo - RePro. Vol. 37. Nº 213. Nov. 2012, p. 326. 5 Nesse sentido, dispõe o art. 22 da LArb: Poderá o árbitro ou o tribunal arbitral tomar o depoimento das partes, ouvir testemunhas e determinar a realização de perícias ou outras provas que julgar necessárias, mediante requerimento das partes ou de ofício. No mesmo sentido, vide o art. 7.8 do Regulamento de Arbitragem do CAM-CCBC: "O Tribunal Arbitral adotará as medidas necessárias e convenientes para o correto desenvolvimento do procedimento, observados os princípios da ampla defesa, do contraditório e da igualdade de tratamento das partes". 6 Para Carlos Alberto Carmona: "Da mesma forma que o juiz togado, o árbitro deverá instruir a causa, ou seja, prepará-la para decisão, colhendo as provas úteis, necessárias e pertinentes para formar o seu convencimento" (ênfase acrescentada). CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. Um Comentário à lei 9.317/96. São Paulo: Atlas, 2009. p. 312-313. No mesmo sentido, é a lição de Pedro A. Batista Martins: "A produção da prova se sujeita a uma condição de admissibilidade, segundo os critérios de relevância e legalidade. [...] A relevância diz com a pertinência, a necessariedade e a utilidade da prova que a parte pretenda seja admitida no contexto do processo legal. Desse modo, o fato a provar deve ser relevante para o deslinde da controvérsia e, ademais, a prova há de se mostrar útil ao árbitro para fins da solução do caso concreto. A prova tem que resultar em um dado positivo suficiente a agregar valor ao conhecimento do árbitro sobre o fato controverso. Registre-se que é do árbitro o poder de admitir ou não as provas requeridas pelas partes. E não serão admitidas, necessariamente, todas as provas solicitadas. Tal não acarreta, como pensam e sugerem alguns advogados em arbitragem, violação ao devido processo legal e, consequentemente, a anulação da futura decisão arbitral". BATISTA MARTINS, Pedro. Panorâmica sobre as Provas na Arbitragem. In: JOBIM, Eduardo; MACHADO, Rafael Bicca (Coord.). Arbitragem no Brasil: aspectos jurídicos relevantes. São Paulo: Quartier Latin, 2008. Disponível aqui. Acesso em: 19 nov. 2019. 7 Nesse sentido: "PROCESSUAL CIVIL. ARBITRAGEM. AÇÃO ANULATÓRIA DE SENTENÇA ARBITRAL. INDEFERIMENTO DE REALIZAÇÃO DE PERÍCIA CONTÁBIL. NÃO OCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO. INVASÃO DO MÉRITO DA DECISÃO ARBITRAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO. 1. O indeferimento da realização de prova pericial pelo juízo arbitral não configura ofensa ao princípio do contraditório, mas consagração do princípio do livre convencimento motivado, sendo incabível, portanto, a pretensão de ver declarada a nulidade da sentença arbitral com base em tal argumento, sob pena de configurar invasão do Judiciário no mérito da decisão arbitral. 2. Recurso especial provido" (ênfase acrescentada). STJ, Recurso Especial no 1.500.667/RJ, rel. Min. João Otávio de Noronha, Terceira Turma, j. em 9.8.2016 8 Segundo Francisco Cahali: "Quanto aos honorários advocatícios, diversamente da sucumbência prevista no processo civil (art. 27 da lei 9.307/1996), não se faz menção expressa à sua imposição ao vencido. Porém, este custo, sem dúvida, integra a abrangente referência às "custas e despesas" com a arbitragem. Desta forma, salvo convenção ou regulamento em contrário, deve o árbitro também estabelecer na sentença a condenação ao pagamento da verba honorária em favor do vencedor. Podendo decidir como entender mais adequado, totalmente desvinculado dos critérios impostos pela legislação processual (incidência sobre o proveito econômico do vencedor), embora possam eles servir de parâmetro a ser ponderado na deliberação" (ênfase acrescentada). CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 219. 9 Ainda que se entenda, como frisou recente julgado emanado do Superior Tribunal de Justiça, que a sucumbência representaria um "princípio", conforme se infere da seguinte passagem do aresto: "Há situações em que, mesmo não sucumbindo no plano do direito material, a parte vitoriosa é considerada como geradora das causas que produziram o processo e todas as despesas a ele inerentes. Isso porque, para efeito de distribuição dos ônus sucumbenciais, ao lado do princípio da sucumbência, deve-se ter em mente o princípio da causalidade (...)". STJ, REsp nº 1.835.174-MS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJE 11/11/2019. 10 Nesse sentido, afirma Joaquim de Paiva Muniz: "Outro ponto controverso consiste na responsabilidade por custos do processo, incluindo honorários de advogados. Não existe sucumbência na arbitragem nos moldes do Código de Processo Civil, que prevê porcentagem do valor da causa pago como direito autônomo ao advogado. A praxe reside no painel arbitral condenar o perdedor a indenizar o vencedor por custos razoáveis com advogados e outros profissionais envolvidos, como assistentes técnicos, proporcionalmente ao resultado da sentença" (ênfase acrescentada). MUNIZ, Joaquim de Paiva. Guia Politicamente Incorreto da Arbitragem Brasileira: Visão Crítica de Vinte Anos de Sucesso. In: Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 50/2016, jul-set/2016, p. 213-227. No mesmo sentido, ver NUNES, Thiago Marinho e PEREIRA, Mariana Goffergé. Custos e Despesas na Arbitragem Doméstica e Internacional. Direito Internacional e Arbitragem - Estudos em Homenagem ao Prof. Cláudio Finkelstein (coord. CASADO FILHO, Napoleão, QUINTÃO, Luísa e SIMÃO, Camila). São Paulo: Quatier Latin, 2019, pp. 539-552. 11 O paralelismo dos efeitos das vias judicial e arbitral é assim explicado por Donaldo Armelin: "[...] até porque a via arbitral serve, assim como o processo civil, de veículo legal e constitucional para o acesso à Justiça, observando os mesmos princípios garantidores do devido processo legal guardadas as peculiaridades desses dois institutos" (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 79, out.-dez. 2007). 12 CARNELUTTI, Francesco. Sistema di diritto processuale civile. Pádua: Cedam, 1936. v. 1, p. 179 (tradução de Carlos Alberto Carmona em A arbitragem no processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 19). 13 CARMONA, Carlos Alberto. O processo arbitral. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 1, n. 1, p. 28, jan.-abr. 2004. No mesmo sentido, Carlos Alberto Carmona, em aclamado estudo sobre a flexibilização do procedimento arbitral, ensina: "Há quem sustente que a fonte natural para a integração das regras lacunosas será a lei processual. Não creio nisto. Deve o árbitro orientar-se pelos princípios do direito processual, não por qualquer lei processual" (ênfase acrescentada). CARMONA, Carlos Alberto. Flexibilização do Procedimento Arbitral. In: Revista Brasileira de Arbitragem, ano VI, n. 24, out./dez. 2009, p. 9 14 Nesse sentido, afirma Donaldo Armelin: "[...] apresenta, no seu conjunto, estrutura semelhante a do processo civil, até porque ambos são instrumentos heterônimos de solução de conflitos, nos quais emerge a existência de terceiro desinteressado ao qual se atribui autoridade suficiente para o deslinde do litígio" (Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 69, out.-dez. 2007).
terça-feira, 29 de outubro de 2019

Litispendência na arbitragem e prevenção

Instituto bastante conhecido do Direito Processual Civil, a litispendência constitui efeito que decorre da citação1. Tal fenômeno ocorre quando subsistem dois litígios tramitando em diferentes tribunais igualmente competentes, de uma mesma jurisdição, havendo identidade de partes, causa de pedir e pedido. No direito brasileiro, uma vez deflagrada a litispendência, um juiz provocado posteriormente renuncia a sua competência em favor do outro, provocado em primeiro lugar, sendo este considerado prevento. No campo da arbitragem, o fenômeno da litispendência pode ocorrer na medida em que dois Tribunais Arbitrais se julgam competentes para apreciar determinada demanda. Tal situação pode ocorrer quando houver margem de discussão que dê ensejo a interpretações diversas de uma convenção de arbitragem que permita a cada uma das partes iniciar, individualmente, o procedimento arbitral. Imagine-se a hipótese de que duas arbitragens oriundas ou não de uma mesma convenção de arbitragem sejam iniciadas, em tempos e modos distintos. Todos os requisitos da litispendência estão presentes, isto é, a identidade de partes, de causa de pedir e de pedidos. Como os Tribunais Arbitrais, já constituídos, devem agir diante dessa situação? Seria crível neste caso que se imperasse a regra processual da prevenção? Surge aqui a primeira dificuldade, que reside na polêmica aplicação do Código de Processo Civil ("CPC") na arbitragem. É certo que o processo civil e arbitragem constituem instrumentos heterônimos de solução de controvérsias, que possuem o mesmo ideal de justiça. Não há dúvidas acerca do caráter processual da arbitragem, que, como no processo civil, tem como fim o estabelecimento de uma prestação. No âmbito interno, por mais que os dispositivos do CPC não sejam aplicados à arbitragem, não há dúvidas de que seus princípios se aplicam2. Devido processo legal, princípio da ampla de defesa, contraditório, igualdade das partes, inter alia, constituem princípios de natureza processual-constitucional que se encontram dispostos na lei 9.307/96 ("LArb") e se aplicam a qualquer arbitragem3. Nessa toada, indaga-se se a regra processual da prevenção poderia ser enquadrada como princípio processual a ser aplicada por tribunais arbitrais? Entende-se que sim4. O instituto da prevenção, que não se confunde com a litispendência5, encontra-se expressamente disposto no art. 59, do CPC6. A importância do instituto da prevenção para a segurança das relações jurídicas é revelada pelo próprio CPC, que invoca a prevenção em diversos artigos7, todos com um único propósito, seja quando aplicados em primeira ou segunda instâncias: evitar decisões contraditórias em causas idênticas tramitando perante órgãos jurisdicionais diferentes, levando a sério o princípio da economia processual e da celeridade. Tamanha a importância do instituto da prevenção e de sua natureza principiológica, poder-se ia até mesmo cogitar que tal instituto ostentaria caráter de ordem pública processual8, o que, todavia, mereceria estudo mais aprofundado a respeito. O instituto da prevenção deve ser invocado, portanto, quando um Tribunal Arbitral é constituído anteriormente a outro Tribunal. Dessa forma, o Tribunal Arbitral que for posteriormente constituído deverá reconhecer que não possui jurisdição sobre a controvérsia, já que, de acordo com a regra da prevenção, prevalecerá o tribunal arbitral primeiramente constituído9. Trata-se exatamente do princípio da perpetuatio iurisdictionis, que é "norma determinadora da inalterabilidade da competência objetiva, a qual, uma vez firmada, deve prevalecer durante todo o curso do processo"10. O Direito Comparado traz interessantes exemplos no que diz respeito ao tratamento do instituto da prevenção em matéria arbitral. Em primeiro lugar, cita-se precedente oriundo do direito suíço. Trata-se de caso que o Tribunal Federal Suíço determinou a anulação de sentença arbitral proferida em uma arbitragem com sede da Suíça, que, por sua vez, confirmou a competência do Tribunal Arbitral, embora pendente uma ação judicial que tramitava no Panamá sobre o mesmo caso. Para caracterizar a prevenção, o Tribunal Federal Suíço aplicou o art. 9o da LDIP Suíça sobre litispendência11, estabelecendo a prioridade da corte preventa, por ter sido a primeira a ter sido acionada, diante de procedimentos concorrentes12. Um segundo exemplo são as regras criadas pela International Law Association ("ILA"), que propõem soluções para a problemática criada pela existência de demandas arbitrais paralelas: ILA Recommendations on Lis Pendens and Res Judicata and Arbitration. A Recomendação nº 1, de início, já traz implícita ideia de prevenção quando dispõe: "1. Um tribunal arbitral que se considera prima facie competente em relação à aplicação da convenção de arbitragem deveria, de acordo com o princípio competência-competência, dar prosseguimento ao procedimento arbitral (a "Arbitragem em Curso") e decidir sobre sua competência, sem considerar todos os outros procedimentos pendentes entre as mesmas partes perante uma jurisdição estatal ou outro tribunal arbitral, relativos a uma ou mais questões litigiosas idênticas, ou substancialmente idênticas àquelas submetidas ao tribunal arbitral da arbitragem em curso (o "Procedimento Paralelo")13. A existência de demandas paralelas e o risco da inexorável criação de decisões arbitrais conflitantes é algo que cria insegurança jurídica, o que é indesejável e intolerável em qualquer jurisdição. A aplicação da regra processual da prevenção na arbitragem encontra guarida nos princípios da celeridade, da economia processual e da eficiência, tão caros à arbitragem, evitando-se maiores dispêndios às partes, inclusive a eventual suscitação do Poder Judiciário para dirimir tal tipo de questão14. __________ 1 Na clássica lição de Pontes de Miranda: "A litispendência é efeito da citação. No sistema jurídico brasileiro, a relação jurídica processual inicia-se com o ato de ingresso ne a angularidade começa ao ser citado o demandado. A lide pende". PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil - Tomo III (Arts. 154 a 281). Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 226.2 Ver, nesse sentido: CARMONA, Carlos Alberto. O Processo Arbitral. In: Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: RT, V. 1, n. 1, jan-abr, 2004, p. 28. 3 Bruno Oppetit, ao ponderar sobre as diferenças da justiça estatal e justiça arbitral, lembrava que o ideal de justiça de ambas as jurisdições é o mesmo, com peculiares diferenças, e ressalvava que os princípios do contraditório, da igualdade das partes, e da ampla defesa estão sempre presentes, em qualquer litígio, sob pena de não existir um processo justo, íntegro. Nesse sentido, v. OPPETIT, Bruno. Justice étatique et justice arbitrale. Études offertes à Pierre Bellet. Paris: Litec, 1991, p. 422. 4 Tal ponto, entre outros, encontram-se desenvolvidos na seguinte publicação: NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Demandas Paralelas: A Visão do Árbitro. 20 Anos da Lei de Arbitragem - Homenagem a Petrônio R. Muniz (coord.: Carlos Alberto Carmona, Selma Ferreira Lemes e Pedro Batista Martins). São Paulo: Atlas, 2017, pp. 343-362 5 Segundo José Carlos Barbosa Moreira: "O fenômeno da prevenção, vale ressaltar de passagem, de modo nenhum se confunde com o da litispendência; mas a verificação desta, em se tratando de causas idênticas, ajuizadas perante órgãos de competência concorrente, importaria normalmente apuração da procedência, com que se teria instaurado um ou outro dos processos, para que subsistisse apenas o iniciado em data anterior - reconhecendo-se assim preventa a competência do órgão em que ela tivesse curso. O processo, posterior, é claro, ficaria impedido de prosseguir." MOREIRA, José Carlos Barbosa. Relações entre Processos instaurados sobre a mesma lide civil, no Brasil e em país estrangeiro. Estudos em Homenagem ao Professor Oscar Tenório. 1977, p. 365. 6 Determina o art. 58 do CPC: A reunião das ações propostas em separado far-se-á no juízo prevento, onde serão decididas simultaneamente. Em seguida, determina o art. 59 do mesmo diploma legal: O registro ou a distribuição da petição inicial torna prevento o juízo. 7 Destacam-se, além dos precitados arts. 58 e 59, os seguintes artigos do CPC: 60, 286, inciso III, 304, § 4o, 340, § 2o, 930, § único, 947, § 4o, 1.012, § 3o, inciso I, 1.029, § 5o, inciso I, e 1.037, § 3o. Todos, sem exceção, possuem um único intuito: garantir, por meio do instituto da prevenção, que não haja decisões conflitantes ou contraditórias, tudo em prol da economia e celeridade processual e, é claro, a bem da segurança das relações jurídicas. É nesse sentido, aliás, a posição da jurisprudência dos Tribunais Pátrios a respeito do assunto. Confira-se os seguintes julgados: PROCESSUAL - AÇÃO POPULAR - PREVENÇÃO - DISTRIBUIÇÃO - EXTINÇÃO - CONEXÃO. É a propositura da ação que previne a jurisdição. Havendo mais de uma vara, a ação considera-se proposta com a distribuição. Porém, não existindo ação correndo perante à vara cuja ação foi considerada proposta em primeiro lugar, por ter sido esta julgada extinta, não teria sentido alegar conexão entre esta (ação julgada extinta) e as demais (propostas posteriormente). O objetivo da prevenção é evitar decisões contraditórias. Recurso improvido. (ênfase acrescentada - STJ, Recurso Especial n° 178230 DF 1998/0043454-2, Primeira Turma, Rel. Min. Garcia Vieira, 8.9.1998). No mesmo sentido, v. julgado emanado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: AGRAVO DE INSTRUMENTO - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - REINTEGRAÇÃO DE POSSE - CONEXÃO - Ação revisional de contrato, anteriormente proposta - Necessidade de reunião dos processos - Medida de segurança jurídica a evitar julgamentos contraditórios e garantir a economia processual - Manutenção da decisão - Negado provimento (ênfase acrescentada - TJSP, Agravo de Instrumento n° 990.10.407457-6, 27ª Câmara de Direito Privado, Rel. Min. Hugo Crepaldi, j. em 9.11.2010. 8 APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem Pública e Processo. O Tratamento das Questões de Ordem Pública no Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2011, p. 106. 9 No âmbito do direito processual civil, pertinente é a lição de Pontes de Miranda a respeito do assunto: "A prevenção atua negativamente: propostas duas causas conexas, cada uma num juízo competente, o juiz da segunda perde a que foi aforada perante ele, isto é, sai da relação jurídica processual, que se havia estabelecido". PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil - Tomo III (Arts. 154 a 281). Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 226. No mesmo sentido, v. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. A "Perpetuatio Iurisdictionis" no código de processo civil brasileiro. In: Revista de Processo, vol. 4, Out-Dez, 1976, p. 13-37 e DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, 11ª ed., p. 107. 10 Nesse sentido v. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil - Teoria Geral do Direito Processual Civil e o Processo de Conhecimento. 55ª ed, vol I, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014, p. 290. 11 Loi Fédérale sur le droit international privé (LDIP) de 18.12.1987. Segundo o citado art. 9o da referida lei: "1. Quando uma ação tendo o mesmo objeto já pendente no exterior entre as mesmas partes, o tribunal suíço suspende a ação se é possível prever que jurisdição estrangeira proferirá, dentro de um prazo razoável, uma decisão que possa ser reconhecida na Suíça. 2. Para determinar quando uma ação foi introduzida na Suíça, a data do primeiro ato necessário para iniciar a instância é decisivo. A citação em conciliação é suficiente. 3. O tribunal suíço se julga incompetente desde que uma decisão estrangeira podendo ser reconhecida na Suíça lhe é apresentada". Tradução livre de Priscila Knoll Aymone (A Problemática dos Procedimentos Paralelos: Os Princípios da Litispendência e da Coisa Julgada em Arbitragem Internacional. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011, p. 38). 12 Nesse sentido v. LÉVY, Laurent e SCHLAEPFER, Anne Véronique. La suspension d'instance dans l'arbitrage international. Gazette du palais, n. 318/319, p. 18 e s., 15. Nov. 2001. Segundo Priscila Knoll Aymone, ao comentar essa decisão, aduz: "Na verdade, entendeu que a ordem pública - a necessidade de evitar decisões contraditórias - impõe ao árbitro suíço a obrigação de suspender o procedimento arbitral. Esta suspensão é imperativa desde que a sentença estrangeira possa ser reconhecida na Suíça" (A Problemática dos Procedimentos Paralelos: Os Princípios da Litispendência e da Coisa Julgada em Arbitragem Internacional. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011, p. 97). 13 Tradução livre de Priscila Knoll Aymone (A Problemática dos Procedimentos Paralelos: Os Princípios da Litispendência e da Coisa Julgada em Arbitragem Internacional. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011). 14 O que ocorreu por exemplo em um caso envolvendo duas empresas de São Paulo que discordavam da interpretação da clausula de arbitragem prevista em Contrato de Compra e Venda de Ações. A divergência de dava pelo fato de uma das partes entender que arbitragem deveria ser regida segundo as regras da CCI enquanto a outra entendia que a arbitragem seria ad hoc, sendo a CCI apenas autoridade de nomeação dos árbitros. O Tribunal Arbitral constituído sob a égide da CCI reconheceu a sua jurisdição, enquanto o Tribunal Arbitral Ad Hoc renunciou a sua jurisdição. Mas até que isso acontecesse, as partes recorreram ao Poder Judiciário do Estado de São Paulo, que, em decisão muito coerente, recusou-se a opinar acerca da questão, reconhecendo a capacidade dos previamente constituídos de decidirem sobre a sua própria jurisdição (Processo nº 583.00.2006.204517-7, DJ 20.9.2006).
I. Os diferentes métodos de produção de provas nos países de civil law e common law O objetivo dessas brevíssimas linhas é detectar as diferenças mais marcantes no sistema de produção de provas presente nos países de tradição romano-germânica, ou civil law, caso do Brasil, e nos países de common law, caso dos Estados Unidos da América, Inglaterra, entre outros, em vista da tentativa de harmonizar ambos os sistemas no âmbito da arbitragem, seja ela doméstica, seja internacional. No Brasil, assim como ocorre em outros países de civil law, o método tradicional de apresentação da prova se dá no momento em que determinado pleito é formulado, ou seja, quem alega deve provar o fato constitutivo de seu direito, conforme prevê o art. 373, inciso I do Código de Processo Civil ("CPC"). O destinatário da prova é, por regra, quem dirá o direito, ou seja, o juiz estatal (art. 370 do CPC). Normalmente, há a apresentação de prova documental junto com a petição inicial de determinada ação e a ulterior produção de provas, como perícia ou oitiva de testemunhas, se necessário. Em suma, nos países de civil law existe a exigência imediata em fundamentar uma pretensão jurídica por meio das provas que houver, que suportem os pleitos alegados. Já nos países de common law, as regras sobre a apresentação de provas são bastante diferentes em relação aos países de civil law. A preocupação maior do advogado no sistema da common law é ir à descoberta de todos os fatos do caso e, apenas após tal ato, formular um pleito jurídico. Trata-se aqui no sistema denominado "Discovery". No sistema de "Discovery" a busca pela produção das provas é realizada com a intervenção limitada de um juiz e por meio do qual cada parte disponibiliza à outra todos documentos referentes ao caso que estão em sua posse ou que possam estar sob o seu controle. Há verdadeira obrigação das partes em disponibilizar os elementos de prova que estejam a sua disposição, caso a sua exibição seja requerida pela contraparte. Trata-se de meio imprescindível nos países de common law para a obtenção da verdade no processo1. Um dos grandes objetivos do "Discovery" é o chamado "fishing expedition" i.e., a busca incessante por documentos que se espera encontrar em posse de seu adversário, sem mesmo antes ter formulado qualquer pretensão. Além disso, o "Discovery" tem como objetivo de definir o objeto do litígio; assegurar a integridade dos meios e objetos de prova até a audiência; fomentar eventual composição amigável entre as partes. Normalmente há a designação de uma audiência, cujo objetivo é explicar o conteúdo dos documentos, mediante a inquirição de testemunhas. Em caso de recusa, há a intervenção do Juiz estatal. Há leis que preveem sanções para eventual recusa a fornecer documentos (Ex. Federal Rules of Civil Procedure dos EUA). Enfim, trata-se de um sistema absolutamente diferente daquele oriundo dos países de civil law. Em razão dessas diferenças, pensa-se como melhor adaptar os interesses dos operadores do comércio e da arbitragem internacional. De modo a evitar um tamanho choque de culturas entre advogados e árbitros, a IBA - International Bar Association apresenta um conjunto de regras que conciliam os interesses das partes provenientes de países de civil law e common law. II. A tentativa de harmonização das regras sobre provas: o exemplo das regras elaboradas pela IBA Trata-se a IBA - International Bar Association de uma associação internacional cujo objetivo, inter alia, é criar regras (vinculantes ou não) a serem utilizadas pelos operadores da arbitragem internacional. No caso das regras sobre provas da IBA (originalmente intituladas "IBA Rules on the Taking of Evidence"), seu grande objetivo é ajustar ou combinar o uso de regras e técnicas de produção de provas oriundas de sistemas jurídicos distintos. As regras sobre provas providas pela IBA fundam-se na ideia de flexibilidade e pautam-se no princípio da boa-fé, isto é, as partes devem ter conhecimento prévio das provas que irão ser utilizadas em audiência. Tais regras constituem uma espécie de "soft law" ou direito não-estatal. Não são vinculantes, exceto quando as partes escolhem expressamente tais regras como suporte para a produção de provas2. Criadas no ano de 1983, lançadas em 1999 e finalmente adotadas pelo conselho da IBA em 29 de maio de 20103, a regras sobre provas da IBA estão dispostas num conjunto de nove artigos que sistematizam a forma de produção de provas - documentais, periciais, testemunhais - em arbitragens internacionais. Entre os pontos de maior importância nas regras sobre provas da IBA está na relativização do método do Discovery. E talvez o grande exemplo do esforço de se conciliar a prática do civil law com a da common law é o chamado "Exchange of documents". Segundo esse método, cada parte tem o direito de requerer, da outra parte, documentos que estejam em posse ou sob o controle desta última. Isso ocorre após a apresentação das alegações escritas e se dá por meio de uma tabela "Redfern" (ou "Redfern Schedule") dividida em quatro colunas diferentes: 1ª - identificação do documento; 2ª - breve descrição das razões pelas quais o documento é importante; 3ª - espaço para que a requerida faça eventuais objeções; 4ª - em branco, para decisão do Tribunal Arbitral. A única exceção de entrega é justamente quando os documentos solicitados são reputados confidenciais pelas partes, e desde que haja justificativa plausível para tanto. A recusa entrega dos documentos pelas partes pode ensejar penalidades a serem impostas pelo Tribunal Arbitral, a saber: a) inferência negativa - juízo de valor adotado pelos árbitros se o documento não é entregue; b) atribuição de penas de multa pelo descumprimento da decisão dos árbitros, o que a despeito de opiniões diversas, entende-se possível, uma vez que a atribuição de multa configura exercício do poder jurisdicional dos árbitros; c) a busca de auxílio do Poder Judiciário do local da arbitragem para forçar a parte recalcitrante a entregar os documentos recusados. Um dos grandes debates da arbitragem no Brasil é se tais regras poderiam ser aplicadas numa arbitragem totalmente doméstica, isto é, aquela regida exclusivamente pelo Direito brasileiro e sem pontos de conexão com ordenamento jurídico diverso4. Entende-se não há qualquer incompatibilidade na utilização de tais regras em arbitragens internas, pelas seguintes razões: a) não há óbice no direito brasileiro. Poderá o árbitro ou o tribunal arbitral tomar o depoimento das partes, ouvir testemunhas e determinar a realização de perícias ou outras provas que julgar necessárias, mediante requerimento das partes ou de ofício5; b) dependendo do regulamento aplicável, a liberdade dos árbitros é ainda maior (por exemplo, o art. 8.4 do Regulamento da CAMARB, contém previsão genérica que o Tribunal Arbitral deliberará acerca da produção de provas durante o curso do procedimento). III. A Prova testemunhal Em sede de arbitragem, a prova testemunhal é tomada da mesma forma que no processo civil tradicional, mas com certa dose de flexibilidade6. Normalmente, não se utiliza o sistema inquisitorial em que o advogado faz a pergunta para o juiz e este se dirige à testemunha. Utiliza-se muito o método anglo-saxão da "direct examination" e "cross examination", em que as perguntas são feitas diretamente pelo advogado da parte à testemunha. É possível ainda que em determinado procedimento arbitral (mesmo interno) os árbitros determinem que as partes apresentem declarações testemunhais por escrito ("witness statements"). Normalmente depõem as testemunhas que apresentaram tais declarações, sendo que as perguntas deverão estar de acordo com o que constar da declaração; reperguntas, porém, são normalmente facultadas aos advogados das partes. Perguntas indutivas ou especulativas são normalmente indeferidas. É lícito ao advogado apresentar impugnação à determinada pergunta pelo advogado da contraparte, cabendo a decisão ao Tribunal Arbitral. Muito se fala em "preparação de testemunhas". Apesar de constituir termo impróprio, trata-se de prática absolutamente lícita e prudente por parte dos advogados. Ouvem-se as testemunhas antes de sua indicação para saber sua versão dos fatos. O que não se pode admitir que um advogado prepare uma testemunha para que esta altere a verdade dos fatos. Isso censurável e viola a ética profissional. IV. Perícia e prova técnica Dependendo do caso, os árbitros necessitam de um auxílio técnico de modo a compreender determinadas questões. Assim como no processo judicial, um profissional é chamado para elucidar questões técnicas de determinada causa7. No entanto, diferentemente do processo judicial em que, em regra, um perito imparcial é nomeado pelo Juiz enquanto as partes indicam seus respectivos assistentes técnicos, em sede de arbitragem não existe uma regra fixa para a realização da prova pericial. Em uma arbitragem discutindo derivativos cambiais, por exemplo, é possível que os árbitros peçam às partes que antes mesmo da apresentação das suas alegações escritas, uma apresentação técnica do mercado de derivativos fosse feita para o Tribunal Arbitral. Em igual sentido, numa arbitragem discutindo avaliação de empresas, podem os árbitros decidir antes mesmo de realizar uma verdadeira audiência, que uma reunião de trabalho deva ser feita entre advogados das partes e ambos os assistentes técnicos de modo a acertarem pontos de convergência e deixarem claros pontos de divergência expostos em laudos técnicos apresentados. Há, ainda, a possibilidade de convocação de peritos-testemunhas, ou "expert witness" que depõem unicamente sobre aspectos técnicos da causa, com o compromisso de dizer o que creem, sob o ponto de vista técnico. Outro método difundo na prática internacional e já utilizado no Brasil, em arbitragens domésticas é o do conhecido "Protocolo Sachs". Segundo o Procotolo Sachs, cada parte apresenta uma lista de nomes de especialistas sobre a questão. O Tribunal Arbitral escolhe um de cada, formando uma dupla de peritos8. Por fim, outro ponto de discussão atual é se aplicaria ao Perito o dever de revelação, que normalmente cabe ao árbitro. Entende-se que sim, uma vez que um laudo técnico elaborado por Perito de confiança dos árbitros, influencia na convicção do árbitro, de modo que o perito, quando nomeado, deve revelar toda e qualquer situação que possa denotar dúvida sobre sua imparcialidade ou independência9. V. Considerações finais Diante de todos os itens aqui tratados, é possível concluir que: a) o sistema arbitral brasileiro dispõe de uma ampla flexibilidade na forma de produção das provas; b) tal flexibilidade que não afronta o direito processual brasileiro; c) é possível e recomendado o uso de regras IBA sobre provas em arbitragens internas; d) a flexibilidade do tratamento das provas importa no controle de tempo e custos exercido pelo Tribunal Arbitral. __________ 1 FARIA, Marcela Kohlbach, A produção de prova no procedimento arbitral, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 32/2012, jan-mar 2012. p. 207 - 226. 2 "Desenvolvida originalmente na esfera do direito internacional público, a fórmula soft law acabou se espalhando para outros campos do direito, notadamente o direito internacional privado e a sociologia jurídica. Em seu sentido mais genérico, aponta para todos os instrumentos regulatórios dotados de força normativa limitada, isto é, que em princípio não são vinculantes, não criam obrigações jurídicas, mas ainda assim produzem certos efeitos concretos aos destinatários." (ABBUD, André de Albuquerque Cavalcanti. Soft Law e produção de provas na arbitragem internacional. São Paulo: Atlas, 2014, p. 10). 3 Informações constantes do website da IBA. 4 Ver, nesse sentido, o estudo de RAVAGNANI, Giovani dos Santos. Regras da IBA sobre 'Taking of Evidence': compatibilidade com as normas processuais brasileiras. Revista de Processo, vol. 283/2018, pp. 565 - 606). 5 Nesse sentido, vide os art.s 2º e 22 da Lei de Arbitragem 6 Nesse sentido, ensinam Emmanuel Gaillard e John Savage: "How witnesses are examined is also left to the discretion of the arbitral tribunal [...]" GAILLARD, Emmanuel; SAVAGE, John. Introduction in Emmanuel Gaillard and John Savage (eds), Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration, (Kluwer Law International 1999). 7 Ver, nesse sentido, CARMONA Carlos Alberto. O processo arbitral. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 1, n. 1, p. 21-31, jan.-abr. 2004. 8 K. SACHS, "Protocol on Expert Teaming: A New Approach to Expert Evidence" in Arbitration Advocacy in Changing Times, ICCA Congress Series no. 15 (2011) p. 147. 9 A título de exemplo, confira a previsão contida no art. 8.5 do Regulamento de Arbitragem da CAMARB: "Em relação ao perito, aplicar-se-á o disposto nos itens 4.10, 411 e 5.1 deste Regulamento, cabendo ao Tribunal Arbitral decidir sobre eventual impugnação ao perito".
Um dos principais aspectos de caráter material que reveste a arbitragem é a autonomia das partes na escolha das regras do procedimento, na linha do que dispõe o art. 2.º, §§ 1.º e 2.º, da lei 9.307/1996 ("LArb"). As disposições acima referidas consagram a prevalência da mais ampla autonomia das partes para escolherem as regras de direito que regerão a arbitragem, regras estas que não só darão liberdade aos árbitros na condução do procedimento arbitral, mas também guiarão o direito material a ser aplicado na resolução da controvérsia2. Num primeiro momento, nota-se a autonomia das partes em adotarem a equidade na resolução de determinada controvérsia. Se autorizado a decidir ex aequo et bono, o árbitro está, na visão de Irineu Strenger, "liberado para julgar a disputa que lhe é submetida de acordo com os princípios da probidade e da justiça"3. O único fator capaz de afastar a vontade das partes na obtenção de uma decisão por equidade é tão somente a incidência da ordem pública, que prevalecerá sobre a vontade das partes. Além da escolha da equidade para que esta guie os árbitros na decisão a ser proferida, com base no sentimento de Justiça, em caso de arbitragem de direito, podem as partes escolher as regras de direito que regerão a controvérsia. Quando se fala em "regras de direito", na dicção do § 1.º do art. 2.º da LArb, no caso da arbitragem doméstica, está-se diante de regras impostas pelo direito nacional. Isso porque, pelo fato de haver, necessariamente, uma ordem jurídica de base, e em razão de, no Brasil, a sentença arbitral estar enquadrada como título executivo judicial (art. 515, inciso VII, do CPC), devem prevalecer as regras do direito interno para fins de regência do procedimento e mérito da arbitragem4. É certo que as partes poderão estipular que usos e costumes do comércio serão levados em conta na apreciação da matéria, tal como disposto na disposição legal acima mencionada. Nesse sentido, podem as partes estipular que, em um contrato bancário firmado no Brasil, os árbitros deverão considerar, em primeiro lugar, os usos e costumes do mercado financeiro, os princípios gerais de direito e, finalmente, as normas do direito civil. Da mesma forma, num contrato típico do agronegócio brasileiro, o de compra e venda de uma determinada comoditie agrícola, como a cana-de-açúcar, por exemplo, as partes poderão estipular que os árbitros levem em consideração diretrizes aplicadas pelos produtores de cana-de-açúcar para dirimir as dúvidas acerca de precificação5. No entanto, a autonomia da vontade para a escolha da lei aplicável à controvérsia deve se limitar ao direito nacional, eis que à arbitragem interna se impõe o direito interno6. Não se está querendo aqui afirmar que é impossível ou ilegal a eleição de uma lei estrangeira em uma arbitragem interna ou que o art. 2.º da LArb impossibilitaria as partes de escolher um direito estrangeiro para reger a controvérsia7. O que é preciso deixar claro é que não há cabimento para tal ato, até mesmo para a preservação da higidez do procedimento arbitral que tramita sob a esfera interna. A arbitragem interna é, como sustenta Jean Baptiste-Racine, integrada à ordem jurídica de um determinado país, eis que não existem condições de visualizar elementos de estraneidade8. A lógica de vincular a arbitragem interna à regência pelo direito interno, mesmo sabendo-se da autonomia posta na LArb, justifica-se por duas razões essenciais: em primeiro lugar, pela convergência dos pontos de conexão entre o contrato nacional e a lei nacional9. Em segundo lugar, em razão da internacionalidade da relação jurídica. Isto é, a eleição de uma lei estrangeira em um contrato interno e, posteriormente, em uma arbitragem doméstica jamais teriam o condão de conferir caráter internacional a um contrato. O que ocorre, com efeito, é o inverso: o caráter internacional do contrato é que motiva a autonomia das partes na eleição de uma lei estrangeira para reger a relação jurídica10. A eleição de uma lei estrangeira em uma relação contratual e em um procedimento arbitral está vinculada, de forma intrínseca, portanto, à internacionalidade da relação jurídica11. Vincular, pois, a resolução de uma controvérsia oriunda de um contrato nacional a uma lei estrangeira não seria apenas descabido, como entende Paulo Borba Casella12, ou causar estranheza, como considera Francisco Cláudio de Almeida Santos13, mas poderia caracterizar até mesmo uma espécie de "internacionalização fictícia" da relação jurídica e a consequente possibilidade de caracterização de fraude à lei, como entende Fabiane Verçosa14. Esse vínculo é importante inclusive para questões que envolvam delicados institutos jurídicos, como é o caso, por exemplo, da prescrição extintiva. Imagine-se hipótese de um contrato celebrado entre duas empresas brasileiras, formado e executado unicamente Brasil, sem qualquer liame com elementos estrangeiros. Eventuais pretensões jurídicas, decorrentes da violação de tal avença somente poderiam se sujeitar ao prazo de prescrição disposto na lei brasileira, ainda mais sabendo que a prescrição extintiva é considerada matéria de interesse social, de ordem pública do foro. Diferentemente seria o caso de o contrato possuir liames com mais de um ordenamento jurídico, considerando-se, para todos os fins jurídicos, internacional. A lei estrangeira, nesse caso, possui plena aplicabilidade, até mesmo em questões que envolvam o mesmo instituto da prescrição extintiva15, escolhido para a hipótese problemática exposta neste breve estudo. Diante do exposto, o que se pretende trazer à reflexão, portanto, não é a impossibilidade da eleição do direito estrangeiro para reger uma arbitragem na seara doméstica, mas tão somente chamar a atenção para o descabimento ou incompatibilidade de tal prática, à luz da teoria geral do direito internacional privado e do direito do comércio internacional. __________ 1 "Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes. § 1º Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. § 2º Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio". 2 Nesse sentido, aduz Carlos Alberto Carmona: "Ponto fundamental da arbitragem é a liberdade dos contratantes ao estabelecer o modo pelo qual o seu litígio será resolvido. Tal liberdade diz respeito ao procedimento a ser adotado pelos árbitros e ao direito material a ser aplicado na solução do litígio, de sorte que o dispositivo legal comentado, ao referir-se no parágrafo primeiro a 'regras de Direito', está-se reportando às regras de forma e de fundo [...]" (Arbitragem e processo: um comentário à lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 64). 3 STRENGER, Irineu. Comentários à Lei Brasileira de Arbitragem. São Paulo: LTr, 1998. p. 19 4 Diferentemente ocorrerá na arbitragem internacional, em que, aí sim, as partes terão ampla autonomia para a escolha da lei aplicável ao litígio, a despeito da disposição do art. 9º, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro de 1942, com redação dada pela lei 12.376/2010, segundo a qual, "Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem". 5 Exemplo disso são as regras do "Sistema Consecana/SP", elaborado no âmbito do Conselho dos Produtores de Cana-de-Açúcar, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo ("Consecana/SP"). Tal sistema contempla normas operacionais que norteiam a apuração da qualidade da cana-de-açúcar e, com base nessa qualidade, indica um critério para precificação da cana fornecida pelo produtor rural às usinas. 6 Nesse sentido, afirma João Bosco Lee: "O reconhecimento da autonomia da vontade é certamente uma revolução no direito internacional privado brasileiro e era mesmo imperativo para que a lei de arbitragem fosse eficaz, mas a sua extensão à arbitragem interna e é 'excessiva e descabida'. À arbitragem interna se impõe o direito interno". LEE, João Bosco. A lei 9.307/96 e o direito aplicável ao mérito do litígio na arbitragem comercial internacional. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, São Paulo: RT, v. 11, p. 355, 2001. Em sentido contrário, v. TIBURCIO, Carmen. A lei aplicável às arbitragens internacionais. In: MARTINS, Pedro A. Batista; GARCEZ, José Maria Rossani (Coord.). Reflexões sobre arbitragem. São Paulo: LTr, 2002. p. 100 7 Segundo Carlos Alberto Carmona, a utilização de uma lei estrangeira em uma arbitragem interna, apesar de ser possível, não constitui prática comum. Assim, afirma: "Reportar-se a uma lei estrangeira também não é prática comum (eu mesmo nunca vi ou ouvi relato de que alguém tenha feito tal escolha), embora - como disse - a autonomia das partes permita até mesmo a escolha de um procedimento regulado por lei estrangeira para reger uma arbitragem (CARMONA, Carlos Alberto. Flexibilização do procedimento arbitral. Revista Brasileira de Arbitragem, São Paulo: Thomson-IOB, n. 24, p. 12, out.-nov.-dez. 2009). 8 Nesse sentido, v. RACINE, Jean-Baptiste. Réflexions sur l'autonomie de l'arbitrage commercial international. Revue de l'Arbitrage, Paris: Comité français de l'arbitrage, n. 2, p. 352, 2005. Ainda, como bem afirma André de Carvalho Ramos, "o elemento de estraneidade é o laço que vincula determinada situação transnacional a outros Estados" (Curso de Direito Internacional Privado. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 66. 9 Nesse sentido, afirma Jean-Cristophe Pommier: "En présence d'un contrat interne, la seule loi compétente suscetible de le régir est celle cet ordre juridique interne vers lequel tous les points de rattachement convergente" (Principe d'autonomie et loi du contrat en droit international privé. Paris: Economica, 1992. p. 135). 10  Nesse sentido, segundo Ricardo Ramalho Almeida: "O que realmente constitui a especificidade do contrato internacional, em comparação com o contrato interno, é justamente a possibilidade de escolha da lei (ou das leis, ou das normas de direito) aplicável ao contrato e aos eventuais litígios dele decorrentes, assim como a possibilidade de escolha da jurisdição internacionalmente competente para a solução de controvérsias". (O Conceito de Contrato Internacional. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: RT, v. 53, 2017, p. 355, 2017. 11 Nesse sentido, v. OPPETIT, Bruno. Nota sobre a decisão proferida pela Corte de Apelação de Paris, 30/11/1972. Journal du Droit International, p. 394, 1973. Em idêntico sentido, v. LEE, João Bosco. A especificidade da arbitragem comercial internacional. In: CASELLA Paulo Borba (Coord.). Arbitragem: lei brasileira e praxe internacional. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 1999. p. 186. 12 Nesse sentido: "(...) parece descabido instaurar diversidade relevante de regência legal e extensão operacional da expressão da autonomia da vontade das partes em contratos regidos pelo direito interno, conforme se opte pela eleição de foro judicial ou convenção de arbitragem (...)". CASELLA, Paulo Borba (Coord.). Arbitragem: entre a praxe internacional, integração no Mercosul e o direito brasileiro. Arbitragem: lei brasileira e praxe internacional. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 1999. p. 500. 13 Nesse sentido: "(...) no âmbito interno, porém, soa-me estranho, por exemplo, num contrato de cessão de crédito com cláusula de arbitragem, firmado no Brasil, entre empresas brasileiras, ainda que a legislação brasileira não discipline expressamente aquela questão, aplicar-se a lei portuguesa, por escolha das partes. Ou firmado um contrato de seguro de vida ou de acidentes, com cláusula de arbitragem assinado no Brasil, entre partes nacionais, se estipule a aplicação da lei francesa ou do direito americano". SANTOS, Francisco Cláudio de Almeida. Os princípios fundamentais da arbitragem. In: CASELLA Paulo Borba (Coord.). Arbitragem: lei brasileira e praxe internacional. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 1999. p. 119-120 14 Nesse sentido: "Cumpre fazer uma última advertência quanto à possibilidade de escolha pelas partes de uma lei estrangeira no caso de uma arbitragem puramente doméstica. A referida 'internacionalização fictícia' da arbitragem em virtude da vontade das partes pode - repita-se, pode - configurar uma fraude à lei. Com efeito, ao elegerem um direito estrangeiro, as partes poderiam intencionalmente internacionalizar a arbitragem e descartar o direito interno, podendo caracterizar-se, assim, a fraude à lei". VERÇOSA, Fabiane. Arbitragem interna v. Arbitragem internacional: Breves contornos da distinção e sua repercussão no ordenamento jurídico brasileiro face ao princípio da autonomia da vontade. O direito internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Jacob Dolinger. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 440-441. 15 O que, aliás, foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça: "Em contratos internacionais, é admitida a eleição de legislação aplicável, inclusive no que tange à regulação do prazo prescricional aplicável. Prescrição afastada, in casu, diante da aplicação do prazo previsto na lei contratualmente adotada (lei do Estado de Nova Iorque - Estados Unidos da América)". RESP n.º 1.280.218/MG, Terceira Turma, rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 21.06.2016, DJ 12/8/2016.
Um dos grandes debates sobre arbitragem no Brasil que existe desde a promulgação da lei 9.307/96 ("Lei Brasileira de Arbitragem") e perduram até a atualidade gira em torno da autonomia da convenção de arbitragem. Sua previsão está disposta no art. 8º da LArb: "A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória". Ainda que tal regra tenha sido inserida em nossa legislação arbitral, até os dias de hoje, certas partes parecem ainda não compreender o cerne da aludida regra, haja vista que, não obstante os quase vinte e três anos de vigência da Lei de Arbitragem, o assunto ter sido levado a recente julgamento pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cujos detalhes teceremos mais adiante. Por ora, pensemos no que realmente representa a autonomia da convenção de arbitragem. Com efeito, por autonomia da convenção de arbitragem, entende-se, segundo a fórmula mais antiga da jurisprudência estrangeira, uma independência em relação ao contrato principal em que está inserida a convenção de arbitragem1. Fouchard, Gaillard e Goldman, bem ensinam o cerne do princípio da autonomia da convenção de arbitragem: "[...] Sem dúvida, o princípio da autonomia é o primeiro instrumento que permitirá ao árbitro estatuir sobre a sua própria competência. Graças a ele, o argumento, segundo o qual quando o contrato em si está maculado de um vício qualquer, perde toda a sua incidência direta sobre a convenção de arbitragem e, consequentemente, sobre a competência do árbitro. Permite, dessa forma, evitar qualquer injustiça acerca da competência fundada na ineficácia do contrato objeto da desavença. Nesta situação, autonomia e 'competência competência' se fortalecem mutuamente [...]"2. E quais seriam os efeitos de tal autonomia? Em primeiro lugar, pode-se afirmar que ela [autonomia] consistirá numa indiferença em relação o objeto do contrato principal, assim como a possibilidade de a convenção ser regida por um direito distinto. Em segundo lugar, a autonomia da convenção de arbitragem gera uma consequência direta - no princípio segundo o qual o árbitro deve estatuir sobre a sua própria competência (kompetenz-kompetenz). Por consequência lógica, diante de tais efeitos, nos parece correto afirmar que, se a convenção de arbitragem é autônoma em relação ao contrato principal onde ela está inserida, a apreciação de sua validade e abrangência passará automaticamente aos cuidados do Tribunal Arbitral ou Árbitro Único. Isto é, são os árbitros que decidirão sobre a sua própria competência, sob o manto da mencionada regra da kompetenz-kompetenz3. O que se discute nessas breves linhas não é uma proibição de o Poder Judiciário se imiscuir numa arbitragem. Ele pode, e deve sim interferir, no sentido da cooperação, como tivemos a oportunidade de explorar no último estudo publicado nesta coluna4. Mas há de se respeitar uma regra de simples cronologia e jamais de hierarquia. Nos valemos aqui dos sempre judiciosos ensinamentos de Fouchard, Gaillard e Goldman, que ensinam ser a kompetenz-kompetenz uma regra de prioridade, entendida sob o prisma cronológico5. Compete aos árbitros, em primeiro lugar, se pronunciarem acerca de questões relativas à competência ou mesmo sobre eventuais dubiedades contidas na convenção de arbitragem, sob reserva do ulterior controle do Poder Judiciário, quando de eventual fase pós-arbitral6. Desde a edição da lei 9.307/1996, além do surgimento importantes e percucientes estudos como dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre questões ligadas à arbitragem, a jurisprudência dos tribunais pátrios desenvolveu-se no sentido de dar credibilidade ao instituto da arbitragem, confirmando, inter alia, a mens legis da regra que estipula uma prioridade em favor do árbitro para decidir toda e qualquer questão que surja enquanto um procedimento arbitral estiver em curso. Nesse sentido, após quase vinte e três anos de vigência da Lei de Arbitragem no Brasil, é digno de nota recente julgado emanado do STJ, destacado anteriormente, em que, de forma brilhante, firmou o entendimento segundo o qual o efeito gerado pela mencionada regra da kompetenz-kompetenz prevista no art. 8º da Lei de Arbitragem confere uma prioridade temporal aos árbitros para decisão de toda e qualquer questão abarcada pela convenção de arbitragem, permitida, e claro, que eventuais processos correlatos possam ser levados ao Poder Judiciário somente após a emissão da sentença arbitral. O caso em exame tratava da discussão a respeito de uma cláusula de arbitragem inserida em negócio imobiliário que envolvia a aquisição de um edifício na cidade do Rio de Janeiro, incluindo a sua reforma e construção de um edifício garagem. Em primeira instância, o juízo rejeitou a preliminar de exceção de arbitragem, tendo sido tal decisão cassada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Levada a questão ao STJ, manteve-se a decisão de segunda instância. Segundo consta do acórdão de lavra da eminente Ministra Nancy Andrighi, o negócio jurídico imobiliário objeto dos autos possuía convenção de arbitragem para a resolução de controvérsias dele advindas. Diante disso, no entendimento da Ministra Nancy Andrighi, assim como de toda a composição da Terceira Turma do STJ, quando existente convenção de arbitragem válida em determinado negócio jurídico, prevalece a "precedência cronológica" dos árbitros para se manifestar sobre a sua própria competência. Dois pontos da ementa do aludido acórdão merecem destaque: "[...] 3. A convenção de arbitragem prevista contratualmente afasta a jurisdição estatal, impondo ao árbitro o poder-dever de decidir as questões decorrentes do contrato, além da própria existência, validade e eficácia da clausula compromissória" 4. Admitir que a decisão de Tribunal Arbitral formado para a resolução de outro litígio cumpra a necessidade de manifestação prévia dos árbitros seria uma verdadeira ofensa ao princípio da competência-competência [...]"7. A decisão acima mencionada merece aplausos e, num momento em que o instituto da arbitragem ganha cada vez mais credibilidade não só pelos seus usuários mas como pelo próprio Poder Judiciário, se destaca como uma decisão paradigmática no sentido de compreender não só a clausula compromissória mas a própria arbitragem como um sistema totalmente autônomo e independente de resolução de controvérsias em relação ao Poder Judiciário. __________ 1 É digno de nota a célebre decisão proferida pela Corte de Cassação Francesa, em 1963, no caso "Gosset": "Em matéria de arbitragem internacional, o acordo compromissório concluído separadamente ou incluso no ato jurídico do qual ele se faz parte, apresenta sempre, salvo circunstâncias excepcionais (...), uma completa autonomia jurídica, excluindo que ele possa ser afetado por uma eventual invalidade deste ato". Primeira Câmara Cível da Corte de Cassação Francesa, decisão datada de 07 de maio de 1963, Gosset, JCP, 1963.II.13405. Paris: Lexisnexis Jurisclasseur, nota de B. Goldman (tradução livre). 2 FOUCHARD, Philippe, GAILLARD, Emmanuel e GOLDMAN, Berthold. Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996, p. 229. 3 Tal regra gera um efeito de prioridade ao árbitro para a apreciação de certas questões colocadas em jogo por uma parte, como dúvidas acerca da validade e eficácia da convenção de arbitragem, por exemplo. O parágrafo único do mencionado art. 8º, deixou clara tal regra: "Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória". 4 O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o "juge d'appui". Acesso em 28/7/2019. 5 FOUCHARD, Philippe, GAILLARD, Emmanuel e GOLDMAN, Berthold. Traité de l'arbitrage commercial international. Paris: Litec, 1996, p. 415 6 Interessante, notar, todavia, a opinião de Pierre Mayer, para quem a regra da kompetenz-kompetenz não supõe nem um poder, nem uma competência. Ela se resume simplesmente na ausência de obrigação do árbitro de suspender o procedimento arbitral quando uma parte afirma que ele não é competente, propondo uma exceção de incompetência perante o Poder Judiciário. MAYER, Pierre. L'autonomie de l'arbitre International dans l'appréciation de sa propre compétence. In: Recueil des cours de l'académie de droit International de La Haye, t. 290, p. 345. 7 STJ, REsp n.º 1.656.643/RJ, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 09.04.2019, DJ 12.04.2019.  
Em todo procedimento arbitral existe uma sede. O chamado lugar da arbitragem é aquele em que, normalmente, o procedimento arbitral se desenvolve, onde as audiências são realizadas e, finalmente, onde a sentença arbitral é proferida, inter alia1. Trata-se de um elemento de operacionalidade da arbitragem, em que a sede se torna de suma importância, sobretudo para os efeitos práticos do procedimento arbitral2. E não só apenas para efeitos de operacionalidade funciona a sede da arbitragem. Com efeito, a lei da sede da arbitragem possui vocação para reger, de forma subsidiária, o procedimento arbitral. Isto é, na ausência de regras escolhidas pelas partes para reger o mérito da controvérsia ou mesmo questões de ordem processual, a lei da sede da arbitragem pode fornecer importantes subsídios para a resolução de determinadas questões3. E não somente a lei, mas o Poder Judiciário da sede exerce importante missão no sentido de dar assistência ao procedimento arbitral que se desenvolve sob o seu território, proferindo medidas de urgência, auxiliando na composição do tribunal arbitral, intimando testemunhas renitentes, inter alia. Como bem frisado por Carlos Alberto Carmona, trata-se de uma relação (entre o Poder Judiciário e a arbitragem) vista sob o prisma cooperativo (ou de "coordenação") e jamais de supremacia ou hierarquia (ou "subordinação")4. Um bom exemplo prático de relação de coordenação do Poder Judiciário com a arbitragem são as medidas de caráter acautelatório, utilizadas para prevenir direitos das partes5. O protesto interruptivo da prescrição (art. 202, inciso II do Código Civil), por exemplo, seria válido, de modo a resguardar o credor de quaisquer riscos de ver a sua pretensão julgada prescrita6. Outro exemplo de coordenação entre a jurisdição estatal e a arbitral, bastante recente, advém de julgado emanado do Superior Tribunal de Justiça, em que restou firmado o entendimento segundo o qual é possível aplicar as normas de penhora no rosto dos autos de procedimentos arbitrais, de modo que o Poder Judiciário possa oficiar o árbitro para que este indique, em sua decisão, caso seja favorável à parte executada, a existência de ordem judicial de constrição7. No entanto, é preciso frisar que as funções da sede são limitadas. Isso porque a sede da arbitragem, ainda que tenha a competência para a resolução de diversas questões, como a do controle da sentença arbitral, inter alia8, exerce o importante papel de juiz de apoio, ou, como chama a doutrina francesa, "juge d'appui"9, isto é, de apoio, assistência e colaboração com o procedimento arbitral. Do contrário, veríamos um sistema arbitral posto em xeque, com infindáveis intervenções judiciais no curso da arbitragem, desvirtuando-a por completo10. Portanto, não há uma automaticidade da regência do procedimento arbitral pela lei da sede da arbitragem, seja na arbitragem doméstica, seja na arbitragem internacional11. Deve-se ter sempre ter cautela sobre como interpretar o quão importante é a sede da arbitragem, sem que a lei de tal local cause interferências nefastas no procedimento arbitral. Judiciário e arbitragem funcionam dentro de um sistema de intercomunicação, em que o primeiro interfere no segundo apenas no sentido da eficácia. Como bem frisou Eduardo de Albuquerque Parente em sua obra "Processo Arbitral e Sistema"12, a participação do Judiciário na arbitragem não tira a autorreferência do sistema arbitral. Ambos os sistemas convivem sem qualquer interferência abrupta. __________ 1 No Direito brasileiro, a escolha da sede da arbitragem configura fator que define a nacionalidade da sentença arbitral, em virtude da redação do parágrafo único do art. 34 da lei 9.307/1996: "Considera-se sentença arbitral estrangeira a que tenha sido proferida fora do território nacional". 2 Nesse sentido, explica Adriana Braghetta: "A sede da arbitragem deve ter estrutura logística adequada para que os atos procedimentais, especialmente as audiências, se realizem sem percalços, apesar de não ser imprescindível que os atos procedimentais aconteçam na sede. A estrutura compreende hotéis, locomoção, tradução, possibilidade de obtenção de vistos, serviços de degravação das audiências, etc. No Brasil, por exemplo, ainda não é simples obter serviços de alta qualidade para gravação e degravação de audiências em línguas estrangeiras" (A escolha da sede da arbitragem. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, ano XXVI, p. 13, set. 2006). 3 É assim que entendia o saudoso Philippe Fouchard: "La loi du pays du territoire duquel se déroule l'arbitrage - ou du moins ou il est censé se dérouler - donne à celui-ci un cadre juridique, ou plus exactement le lui propose, car sa vocation à le régir est subsidiaire. C'est seulement en l'absence de règles autonomes tirées de la convention des parties et de la pratique, et à condition des parties et de la pratique, et à condition que les parties n'aient pas choisi une autre loi, que la loi du siège fournit à l'arbitrage les règles techniques qui lui permettent de se dérouler normalement. Telle est moins da tendance moderne des lois et des jurisprudences" (Suggestions pour accroître l'efficacité international des sentences arbitrales. Revue de l'Arbitrage, Paris: Comité français de l'arbitrage, n. 4. p. 667, 1998). 4 CARMONA. Carlos Alberto. Das Boas Relações entre os Juízes e os Árbitros. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, n.º 51, pp. 17-24, out. 1997. 5 Tais medidas restaram positivadas no novel art. 22-A da lei 9.307/1996: "Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência". 6 Nesse sentido, a lição de Eduardo de Albuquerque Parente (baseando-se em dispositivos do CPC/1973): "(...) Assim, havendo perigo de dano, situação de urgência na interrupção da prescrição, notando a parte requerente que não poderá aguardar certos atos do procedimento arbitral, seja a aceitação, seja a ordenação para citar, seja esta propriamente dita, deve se valer do sistema do processo estatal. (...) Há que ajuizar demanda cautelar para interromper a prescrição. O chamado protesto interruptivo de prescrição, a ser ajuizado perante o juiz estatal (CPC, arts. 867 a 873), que encerrará sua jurisdição assim que houver a citação. Aí sim, com os convenientes efeitos retroativos do parágrafo 1.º do art. 219 do Código de Processo Civil, que voltarão até o ajuizamento da demanda. Eis mais uma demonstração de como um sistema produz influência no outro e de maneira que ambos precisam trabalhar sem interferências abruptas/assistêmicas. No exemplo, temos a abertura cognitiva do sistema arbitral com o de direito material (prescrição) e processual estatal (medida de urgência)" (Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2010, pp.145-146). 7 Merece destaque o seguinte trecho da ementa do julgado em questão: "(...) Respeitadas as peculiaridades de cada jurisdição, é possível aplicar a regra do art. 674 do CPC/73 (art. 860 do CPC/15), ao procedimento de arbitragem, a fim de permitir que o juiz oficie o árbitro para que este faça constar em sua decisão final, acaso favorável ao executado, a existência da ordem judicial de expropriação, ordem essa, por sua vez, que só será efetivada ao tempo e modo do cumprimento da sentença arbitral, no âmbito do qual deverá ser também resolvido eventual concurso especial de credores, nos termos do art. 613 do CPC/73 (parágrafo único do art. 797 do CPC/15).". STJ, Terceira Turma, REsp n.º 1.678.224-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.05.2019, DJE 09.05.2019. 8 Nesse sentido v. POUDRET, Jean-François; BESSON, Sébastien. Comparative Law of International Arbitration. 2. ed. London: Sweet & Maxwell, 2007. p. 83. 9 Expressão utilizada no direito francês, para caracterizar o papel dos juízes estatais perante a arbitragem ("Juiz de Apoio"). No âmbito do direito francês, Philipe Fouchard discorre como o Presidente do "Tribunal de Grande Instance" coopera com o sistema da arbitragem, como, por exemplo na formação do Tribunal Arbitral. (La coopération du Président du Tribunal de Grande Instance à l'Arbitrage. Philippe Fouchard: Écrits - Droit de l'arbitrage e droit du commerce international. Paris: Comité français de l'arbitrage, 2007. p. 5-33). 10 Seria o caso aqui das nefastas medidas conhecidas como "anti-suit injunctions" utilizadas para a finalidade de paralisar um procedimento arbitral, para discutir aspectos que caberiam tao somente à decisão dos árbitros (eventuais defeitos na clausula compromissória, discussões acerva da arbitrabilidade da disputa, inter alia. Para referência acerca desse tema, ver NUNES, Thiago Marinho. A Prática das anti-suit injunctions no procedimento arbitral e seu recente desenvolvimento no direito brasileiro. Revista Brasileira de Arbitragem, Porto Alegre: Thomson-IOB, ano I, n. 5, p. 15-51, 2005. 11 Nesse sentido, a lição de Carlos Alberto Carmona: "Há quem sustente que a fonte natural para a integração das regras lacunosas será a lei processual. Não creio nisto. Deve o árbitro orientar-se pelos princípios do direito processual, não por qualquer lei processual. Se isto vale para a arbitragem doméstica, com maior razão serve para a arbitragem internacional, onde muitas vezes não há lei processual alguma a consultar, já que a 'sede' da arbitragem por vezes não tem qualquer elemento de conexão com as partes ou com a questão em disputa ('sede' neutra)" (Flexibilização do procedimento arbitral. Revista Brasileira de Arbitragem, São Paulo: Thomson-IOB, n. 24, p. 14, out.-nov.-dez. 2009). 12 PARENTE. Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e Sistema. São Paulo: Atlas, 2012.  
O Brasil, desde a edição da lei 9.307/96, adotou um sistema de arbitragem caracterizado como monista1. A referida lei estabelece o que seria uma arbitragem no âmbito doméstico, mas não tece qualquer comentário acerca da arbitragem internacional. Com efeito, quando do advento da lei 9.307/1996, notou-se a despreocupação do legislador brasileiro em fixar uma regra própria para caracterizar a arbitragem internacional. O sistema monista, adotado pelo legislador brasileiro, levou em conta apenas o que se pode chamar de internacionalidade da sentença arbitral. Portanto, adotou-se a fórmula preconizada pelo art. 34, parágrafo único, da Lei n.º 9.307/1996, segundo a qual "considera-se sentença arbitral estrangeira a que tenha sido proferida fora do território nacional". Isso implica afirmar que, quando proferida fora do território nacional, a sentença arbitral adquire caráter de sentença estrangeira. Pouco importa se as partes possuíam a mesma nacionalidade e que o procedimento arbitral tenha ocorrido em solo brasileiro. Sendo a sentença proferida e assinada em território estrangeiro, mesmo tendo o processo arbitral sido desenvolvido no Brasil, para fins legais, a sentença será sempre considerada estrangeira. A sentença arbitral, contudo, não será reputada estrangeira, se proferida em território brasileiro, ainda que por intermédio de uma instituição que não possua sede no Brasil (CCI, por exemplo), o que, aliás, já foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ")2. Ainda que em forma de tentativa, é de grande importância detectar quando uma arbitragem é internacional e, para tanto, o direito comparado é uma eficaz ferramenta para a análise da internacionalidade da arbitragem. Isso implica afirmar que, um breve estudo comparativo de diversas legislações estrangeiras, revela-se extremamente útil de modo a demonstrar a verdadeira essência da internacionalidade da arbitragem Com efeito, não são poucas as legislações sobre arbitragem que adotam diferentes critérios no que tange ao conceito da internacionalidade da arbitragem. Entre esses critérios, citam-se o geográfico, o econômico e o jurídico. Segundo o geográfico, a arbitragem é internacional quando possui contatos objetivos com mais de um ordenamento jurídico. Trata-se de critério seguido, por exemplo, no direito suíço, que determina que há arbitragem internacional se o tribunal arbitral tiver a sua sede na Suíça e se pelo menos uma das partes não tiver o seu domicílio ou residência habitual na Suíça. Portanto, dispõe o art. 176 da LDIP suíça: "[a]s disposições do presente capítulo se aplicam a toda arbitragem se a sede do tribunal arbitral se encontra na Suíça e ao menos uma das partes não possuía, no momento da conclusão da convenção de arbitragem, seu domicílio ou sua residência habitual na Suíça"3. Além do critério geográfico para definição de arbitragem internacional, existe o chamado critério econômico, também denominado de "objetivo", adotado, por exemplo, pelo direito francês que, ao editar a sua nova legislação sobre arbitragem, fez constar no art. 1.504 do Nouveau Code de Procédure Civile a determinação segundo a qual é internacional a arbitragem quando esta coloca em jogo os interesses do comércio internacional4. No mesmo sentido, é a disposição contida no art. 49. Item 1, da Lei Portuguesa de Arbitragem: "Entende-se por arbitragem internacional a que põe em jogo interesses do comércio internacional"5. Philippe Fouchard, grande defensor do critério econômico para a caracterização da internacionalidade da arbitragem, explica que a arbitragem é feita para o litígio, e não o litígio que é feito para a arbitragem, de modo que a internacionalidade da arbitragem deve ser definida pela substância da relação jurídica6. Finalmente, um dos critérios utilizados para a caracterização da internacionalidade da arbitragem é o que diz respeito à internacionalidade da relação jurídica. Esse critério é fundado em pura lição de direito internacional privado: sendo internacional o contrato que contenha a convenção de arbitragem, necessariamente o procedimento arbitral será internacional. O critério da internacionalidade da relação jurídica vem sendo adotado no direito brasileiro, o que se pôde verificar por meio de recentes julgados. Ao invés de utilizar o critério geográfico ou o econômico7, de modo a detectar a internacionalidade da arbitragem, a jurisprudência do STJ manifestou-se recentemente pela aplicação do critério da internacionalidade da relação jurídica. Determinados trechos da referida decisão merecem ser citados8: "(...)Verifica-se que o contrato de representação comercial em exame foi celebrado na Alemanha, por uma empresa brasileira e outra alemã, e estabeleceu cláusula arbitral convencionando que eventuais conflitos deveriam ser dirimidos pelo Direito alemão, por árbitros da Câmara de Comércio Internacional de Paris. Trata-se, portanto, de contrato internacional, com características que não correspondem exatamente às dos contratos internos, firmados para produzir efeitos integralmente dentro do país. [...]. Nos contratos internacionais, ganha relevo a aplicação dos princípios gerais de direito internacional em detrimento da normatização específica de cada país, o que justifica, na espécie em exame, a análise da cláusula arbitral convencionada entre as partes sob a ótica do Protocolo de Genebra de 1923" Por que não reunir ambos os critérios para fins de construção legislativa, enfatizando o que realmente é arbitragem internacional? Foi nesse sentido que, incorporando os critérios geográficos e econômicos, a lei espanhola de arbitragem, editada no ano de 2003 e revista em 2011, em uma clara noção e aplicação de puro direito comparado - pois investigou em outras legislações tais critérios -, adotou, em seu art. 3.º, a seguinte disposição9: Artículo 3. Arbitraje internacional. 1. El arbitraje tendrá carácter internacional cuando en él concurra alguna de las siguientes circunstancias: a) Que, en el momento de celebración del convenio arbitral, las partes tengan sus domicilios en Estados diferentes. b) Que el lugar del arbitraje, determinado en el convenio arbitral o con arreglo a éste, el lugar de cumplimiento de una parte sustancial de las obligaciones de la relación jurídica de la que dimane la controversia o el lugar con el que ésta tenga una relación más estrecha, esté situado fuera del Estado en que las partes tengan sus domicilios. c) Que la relación jurídica de la que dimane la controversia afecte a intereses del comercio internacional. 2. A los efectos de lo dispuesto en el apartado anterior, si alguna de las partes tiene más de un domicilio, se estará al que guarde una relación más estrecha con el convenio arbitral; y si una parte no tiene ningún domicilio, se estará a su residencia habitual. A junção dos fatores geográficos e econômicos10 realizada pela moderna lei espanhola de arbitragem, faz com que essa legislação seja a que, na atualidade, melhor atenda aos interesses dos operadores da arbitragem internacional. Não pairam dúvidas quanto à internacionalidade da arbitragem, tornando mais fácil a tomada de decisões pelos tribunais, em razão do próprio quesito "internacionalidade". Por mais louváveis que sejam os critérios acima colocados para definição da internacionalidade, sendo todos perfeitamente cabíveis para detectar o caráter internacional de um litígio, o que se deseja é que tais critérios estejam contemplados em um só ordenamento. Assim, quaisquer dúvidas acerca da internacionalidade cessariam de vez. O caminho atualmente seguido pelo direito brasileiro - utilização do critério da internacionalidade da relação jurídica - é bastante útil para detectar a internacionalidade de um procedimento arbitral, o que é importante para a resolução de questões que impliquem conflito de leis. Contudo, para que o Brasil siga na rota da modernidade, há de tomar como modelo o exemplo da lei espanhola, preenchendo lacunas jurídicas por meio do direito comparado11, o que certamente trará benefícios a advogados, juízes e árbitros, atuantes na seara da arbitragem doméstica e internacional. __________ 1 DIAS, Aline Henriques. Os Sistemas Monista e Dualista na Arbitragem Comercial. Revista Brasileira de Arbitragem (Comitê Brasileiro de Arbitragem-CBAr & IOB. Kluwer Law International, 2016, Vol. XIII, Issue 50, pp. 92-111. 2 Algumas passagens da ementa desta decisão merecem ser transcritas: "A determinação da internacionalidade ou não de sentença arbitral, para fins de reconhecimento, ficou ao alvedrio das legislações nacionais, conforme o disposto no art. 1º da Convenção de Nova Iorque (1958), promulgada pelo Brasil, por meio do decreto 4.311/02, razão pela qual se vislumbra no cenário internacional diferentes regulamentações jurídicas acerca do conceito de sentença arbitral estrangeira [...] No ordenamento jurídico pátrio, elegeu-se o critério geográfico (ius solis) para determinação da nacionalidade das sentenças arbitrais, baseando-se exclusivamente no local onde a decisão for proferida (art. 34, parágrafo único, da Lei nº 9.307/96) [...] Na espécie, o fato de o requerimento para instauração do procedimento arbitral ter sido apresentado à Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional não tem o condão de alterar a nacionalidade dessa sentença, que permanece brasileira". STJ, REsp n.º 1231554/RJ, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 24.05.2011, DJ 01.06.2011. 3 Loi Fédérale du 18 décembre 1987 sur le droit international privé (LDIP). No mesmo sentido dispõe a art. 1.º, item 3, da Lei Modelo da UNCITRAL sobre arbitragem comercial internacional do ano de 1985 (com as emendas adotadas no ano de 2006). Tradução livre. 4 Art. 1.504 do NCPC francês: "Est international l'arbitrage qui met en cause des intérêts du commerce international". 5 Lei 63/2011, de 14 de dezembro (versão atualizada). Para Dario Moura Vicente, o critério econômico de internacionalidade ostenta a vantagem de abranger "certos negócios que apresentam conexões com um só País, mas que, todavia, se encontram intrinsecamente ligados a uma operação econômica internacional". VICENTE, Dario Moura. Da Arbitragem Comercial Internacional: direito aplicável ao mérito da causa. Coimbra: Coimbra Editora, 1990, p. 40. 6 FOUCHARD, Philippe. Quand un arbitrage est-il international?. Phlippe Fouchard: Écrits - Droit de l'arbitrage e droit du commerce international. Paris: Comitê français de l'arbitrage, 2007. p. 261. 7 Em um caso isolado, entretanto, o Supremo Tribunal Federal admitiu a internacionalidade da arbitragem pelo seu critério econômico: "Não são fatores geográficos ou relativos ao domicílio das partes que o caracterizam como contrato internacional, em oposição aos contratos internos, mas, sobretudo, a finalidade do contrato, ou seja, o transporte marítimo de país a país, portanto transnacional, atividade econômica de apoio, principalmente, aos contratos de compra e venda entre pessoas de nacionalidades diversas, sujeitas a sistemas jurídicos diferentes, que acabam por vincular-se pela vontade das partes" (STJ, 3.ª Turma, REsp n.º 616/RJ, rel. Min. Cláudio Santos, j. 24.04.1990, RSTJ 37/263). 8 Nesse sentido, v. STJ, 3.ª Turma, REsp n.º 712566/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.08.2005, DJ 05.09.2005, p. 407. 9 Lei 60, de 23.12.2003. Texto integral. Acesso em 26.06.2019. 10 Segundo Fernando Mantilla-Serrano, os critérios para definir a internacionalidade da arbitragem na nova lei espanhola "são os mesmos recomendados pela Lei Modelo UNCITRAL. Adiciona-se ainda um critério de inspiração francesa, segundo a qual é internacional a arbitragem quando a relação jurídica básica - e não a controvérsia ela mesma - 'afeta os interesses do comércio internacional' - cf. art. 3.1c" (A nova Lei de Arbitragem na Espanha. Revista Brasileira de Arbitragem, São Paulo: Thomson-IOB, n. 2, p. 113, abr.-jun. 2004). 11 Como ponderou Leontin-Jean Constantinesco, "no curso do tempo, os juristas se tornam cada vez mais conscientes do fato de que as experiências dos outros povos constituem uma reserva indispensável para qualquer reforma jurídica válida". CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Tratado de direito comparado: introdução ao direito comparado. Edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 152.  
Há alguns anos (precisamente nos idos de 2009/2010) emergia no Brasil o tema da flexibilização do procedimento arbitral. A flexibilidade da arbitragem representava o tema da moda, num momento que a arbitragem ganhava força total no Brasil: a ideia de procedimento livre, com regras pré-fixadas pelas partes, com a utilização de instrumentos de soft law muito utilizados na prática da arbitragem internacional1 e sem ater-se às normas processuais do local da arbitragem. Tal tema foi objeto de percucientes estudos2, gerando até mesmo uma belíssima tese de doutoramento3, a qual tive a honra de apresentar sua resenha4. O escopo da flexibilização do procedimento arbitral é o de maximizar a autonomia da vontade das partes, aliado um eficaz controle dos árbitros, de modo que, estabelecendo-se as regras do jogo o mais cedo possível com flexibilidade5, o curso do procedimento arbitral transcorra de uma forma menos rígida, menos apegada aos cacoetes processuais. Ao final, a flexibilização do procedimento arbitral só terá o condão de ajudar os árbitros a prolatarem uma sentença justa, correta e exequível, nos termos do quanto convencionado pelas partes, caso a caso6. No entanto, faz-se uma importante indagação: devem os árbitros deixar as partes livres para fixarem o que bem entenderem ou devem eles colocar um certo "freio" nos anseios das partes, exercendo a sua função de controle e comando do procedimento arbitral? Não há dúvidas de que um dos grandes pilares da arbitragem, e talvez o maior deles, é a autonomia da vontade. Ora, são as partes que quiseram a arbitragem e elas é que regerão o procedimento arbitral. Nesse sentido, diversos países adotaram em suas legislações, regras segundo as quais pertencem às partes o controle procedimental da arbitragem. Elas é que decidem as regras do jogo. A Lei Suíça de Direito Internacional Privado (LDIP), por exemplo, prevê em seu art. 182 (1)7 que as partes podem, diretamente, ou referindo-se a um regulamento de arbitragem, regulamentar o procedimento arbitral; elas podem também submeter o procedimento à lei processual de sua livre escolha. Já a Lei Sueca de Arbitragem, vai mais além, ao prever na Seção 21 que o tribunal arbitral deverá tratar o litígio de maneira imparcial, apropriada e rápida, além de conformar-se com que as partes tiverem decidido, sem realizarem qualquer obstáculo8. O direito francês entende que o acordo realizado entre as partes, vincula diretamente os árbitros. Segundo a jurisprudência francesa, o desrespeito à vontade das partes caracteriza violação à ordem pública, de forma que, a título exemplificativo, a expiração do prazo fixado pelas partes para a prolação da sentença arbitral pode constituir motivo de anulação da dita sentença9. No entanto, apesar de a arbitragem ser fundada no princípio da autonomia da vontade das partes, sempre existirá um limite a tal autonomia, isto é, um freio a um descabido pedido das partes. Esse "freio" resume-se no poder atribuído aos árbitros para o controle do procedimento arbitral. O freio à autonomia, logicamente utilizado pelos árbitros, ocorrerá quando a liberdade conferida às partes for além do permitido, isto é, quando determinadas regras aplicadas forem contrárias à lei que rege o procedimento arbitral ou que violem questões de ordem pública. Como as partes visam, numa arbitragem, a obtenção de uma sentença exequível, pensa-se que o mais prudente é atribuir aos árbitros todo o controle do procedimento arbitral, tendo os árbitros amplos poderes para efetuarem qualquer decisão, ainda que tal decisão cause discórdia entre as partes. Nesse sentido, é preciso o art. 14.1 do Regulamento de Arbitragem da London Court of International Arbitration ("LCIA"), segundo o qual as partes limitam a sua própria liberdade prevendo que as suas escolhas deverão estar em consonância com as atribuições básicas do tribunal que deverão adotar procedimentos de acordo com as circunstâncias da arbitragem, evitando custos e atrasos desnecessários10. No entendimento de Charles Jarrosson, o controle da arbitragem é exercido totalmente pelo árbitro, deixando claro que a vontade das partes encontra o seu limite na jurisdicionalidade do poder conferido ao árbitro que, diante disso, terá a última palavra. Assim, os poderes do árbitro, em matéria procedimental se justificam pela necessidade de eficácia inerente à administração da Justiça11. Já Thomas Clay, entende que, o chamado "contrato de árbitro" procura atribuir a uma pessoa o poder de julgar. O aludido autor entende categoricamente que pertence ao árbitro todas as decisões relativas à condução da instância arbitral, sendo que a aprovação das partes sobre qualquer medida procedimental é desejável, mas não fundamental. O árbitro é, portanto, o comandante do processo arbitral, e o faz assim de acordo com o seu poder jurisdicional conferido contratualmente entre ele e as partes12. Apesar de raros os casos, como é frisado por Gabrielle Kaufmann-Kohler, deve-se consignar que uma excessiva flexibilidade atribuída às partes, sem o devido controle dos árbitros, pode acarretar a recusa da execução da sentença arbitral. Um dos mencionados raros casos, refere-se a uma decisão cujos fatos são, resumidamente, os seguintes: no contrato litigioso, as partes haviam fixado o direito turco com aplicável à arbitragem. O Tribunal Arbitral, com sede na Suíça, havia compreendido o direito turco como o direito material aplicável à arbitragem. Em fase de execução da sentença, perante a jurisdição turca, entendeu o juiz estatal que o direito aplicável à controvérsia se aplicava também ao procedimento, e tais regras procedimentais não haviam sido aplicadas pelos árbitros. A execução da sentença, em razão deste vício, restou indeferida13. Como visto, a flexibilidade do procedimento arbitral, por mais que importante para a eficácia da solução do litígio, deve ser controlada por quem detém o poder jurisdicional confiado pelas partes: os árbitros. Quanto maior a confiança as partes depositarem nos árbitros, mesmo tendo que renunciar a determinadas questões meramente formais, mais a arbitragem será eficaz e maiores serão as chances de se obter o fim máximo propiciado pela arbitragem: uma sentença exequível. __________ 1 A título de exemplo, é digno de nota a IBA Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration. 2 Ver, por todos, CARMONA, Carlos Alberto. Flexibilização da Arbitragem. Revista Brasileira de Arbitragem. Comitê Brasileiro de Arbitragem, CBAr & IOB, 2009, Volume X, Issue 24, pp. 07-21. 3 MONTORO, Marcos André Franco. Flexibilidade da Arbitragem. Acesso em 25.04.2019. 4 NUNES, Thiago Marinho. Resenha de livros: Flexibilidade do Procedimento Arbitral. Autor: Marcos André Franco Montoro. Revista Brasileira de Arbitragem (Comitê Brasileiro de Arbitragem, CBAr & IOB, 2013, Volume X, Issue 39, pp. 237-239. 5 Nesse sentido, o entendimento de Karl-Heinz Bockstiegel: "There are many ways of managing case efficiently, and it is one of the advantages of arbitration over court litigation that arbitral tribunals can shape a tailor made procedure that takes into account the many particularizes of each case (.) Although it is important to clarify the rules of the game as early as possible, it is also important to leave room for flexibility later in the proceedings (.)". BOCKSTIEGEL, Karl-Heinz. Presenting evidence in international arbitration. ICSID Review: Foreign Investment Law Journal, vol. 16, nº 1, Washington, 2001, pp. 01-09. 6 Nesse sentido, o entendimento de Steven A. Hammond: "One of the great strengths of arbitration is its procedural flexibility, which permits the process to be tailored to the particular needs of each case (.)". HAMMOND, Steven A. Making the case in international arbitration: a common law orientation to the marshalling and presentation of evidence. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, v. 5, n. 16, p. 171-196, jan.-mar. 2008. 7 Art. 182 (1) da Lei Suíça de Direito Internacional Privado, de 1987 (LDIP): "The parties may directly or by reference to rules of arbitration regulate the arbitral procedure; they may also subject the procedure to the procedural law of their choice". 8 Seção 21 da Lei Sueca de Arbitragem (Swedish Arbitration Act): "The arbitrators shall handle the dispute in an impartial, practical, and speedy manner. They shall act in accordance with the decisions of the parties, unless they are impeded from doing so". 9 Decisão proferida pela Primeira Câmara Cível da Corte de Cassação Francesa, em 28 de setembro de 1995 no caso Dubois ET Vandervalle c/ Boots Frites. Esta decisão foi publicada na Revue de L'Arbitrage 1996, p. 100 com comentários de Emmanuel Gaillard. 10 No original: "The parties and the Arbitral Tribunal are encouraged to make contact (whether by a hearing in person, telephone conference-call, video conference or exchange of correspondence) as soon as practicable but no later than 21 days from receipt of the Registrar's written notification of the formation of the Arbitral Tribunal". 11 JARROSSON, Charles. Qui tiens les rênes de l'arbitrage? Volonté des parties et autorité de l'arbitre. Revue de L'Arbitrage 1999, p. 601. 12 CLAY, Thomas. L'Arbitre. Paris: Dalloz, 2001. 13 KAUFMANN-KOHLER, Gabrielle, Qui contrôle l'arbitrage? Autonomie des parties, pouvoir des arbitres et principe d'efficacité in Liber Amicorum Claude Reymond - Autour de l'Arbitrage - Mélanges Offerts à Claude Reymond, Paris, Litec, 2004, p. 162.  
terça-feira, 26 de março de 2019

A prescrição e a arbitragem internacional

O tempo estabiliza e harmoniza as relações sociais. O direito, enquanto relação social normatizada, sofre influência do tempo, que, por meio dos prazos pré-fixados, baliza o adequado funcionamento da ordem jurídica. Dentre outras formas, a influência do tempo, como norma de caráter público, é evidenciada por meio do instituto da prescrição, cujo objetivo é eminentemente de interesse social, ao cessar situações de incerteza e instabilidade, com a punição do inerte. No Direito brasileiro, a lei 9.307/96 (Lei Brasileira de Arbitragem) instituiu definitivamente a arbitragem como método alternativo de resolução de controvérsias, ampliando o direito subjetivo de ação, ao permitir que as partes convencionem a via arbitral. Todavia, apesar de seu cunho processual, a lei, quando de sua edição em 1996, foi omissa quanto às consequências geradas pelos efeitos da prescrição (instituto de direito material) no âmbito da arbitragem. A razão de referida ausência tinha uma justificativa bastante plausível: a prescrição é um instituto de direito material e a Lei Brasileira de Arbitragem, um diploma processual, não havendo, pois, motivo para discussão a respeito daquele instituto em seu âmbito, ficando a solução por conta da lei material. Com a reforma da Lei de Arbitragem, por meio da lei 13.129/2015, após o surgimento de estudos a respeito do tema em foco1, a prescrição ganhou espaço no sistema arbitral brasileiro, com a edição do art. 19, parágrafo segundo o qual dispõe, inter alia, que a instituição da arbitragem interrompe a prescrição, retroagindo à data do requerimento de sua instauração. O tema da interrupção da prescrição na seara da arbitragem é instigante e certamente será objeto de um de nossos próximos escritos nesta Coluna. O que se pretende tratar neste artigo inaugural são outras questões tão relevantes quanto ao fator interrupção, notadamente aquele que diz respeito ao regime jurídico aplicável à prescrição quando se está diante de uma arbitragem internacional, em que diversas leis acabam sendo porventura invocadas pelas partes no âmbito do litígio (lei do Estado de uma das partes, lei da sede da arbitragem, a chamada lex arbitrii, lex executionis, lex causae, lex contractus, inter alia). Abre-se aqui um breve parêntesis: estamos tratando da arbitragem internacional, aquela que advém de um contrato internacional, coloca em jogo os interesses do comércio internacional e normalmente contempla litigantes provenientes de diferentes Estados. Na arbitragem interna, necessariamente ligada ao ordenamento jurídico interno, a prescrição terá de obedecer aos ditames do Código Civil ou de alguma lei material nacional aplicável ao caso. Assim, em atenção aos limites da ordem pública interna, devem prevalecer os usos e costumes, princípios e regras do direito brasileiro para fins de regência do procedimento e mérito da arbitragem interna, especialmente, diante da convergência dos pontos de conexão entre contrato nacional e lei nacional2. Já a arbitragem internacional é conhecida por sua amplíssima autonomia. Autonomia a ponto de Emmanuel Gaillard, com base na célebre lição de que o árbitro não possui foro ("l'arbitre na pas de for"), ir além (e com razão), afirmando que na arbitragem internacional o foro do árbitro é o mundo3. A ampla autonomia da arbitragem internacional se aplica ao livre direito das partes de eleger o direito aplicável à controvérsia. Essa autonomia se estende aos árbitros que, no silêncio das partes, possuem liberdade de decidir qual é a lei aplicável a determinado ponto jurídico em discussão. Tem-se aqui uma dupla autonomia da qual é dotado o árbitro internacional: (i) o árbitro é autônomo em relação às regras estatais de conflito (ausência de lex fori), mesmo a da sede da arbitragem; (ii) o árbitro pode livremente escolher a regra de conflito que aplicará ou mesmo descartar qualquer regra conflitual e aplicar, por exemplo, a lex mercatoria. Em termos práticos, em arbitragem internacional, a autonomia e liberdade dos árbitros para apreciar as questões de fundo do litígio são ainda maiores. Tal autonomia se reflete para o campo do Direito Material, especialmente quando o ponto em discussão é a ocorrência de prescrição. Num passado obscuro, alguns julgados emanados da CCI entendiam que a prescrição deveria ser submetida à lex arbitrii, o que equivocadamente foi decidido nos casos CCI nºs. 4.491/1984 e 5.460/19874. Com o passar do tempo, doutrina e jurisprudência arbitral consolidaram-se no sentido de, em arbitragens internacionais, submeter a prescrição à lei aplicável ao mérito da controvérsia (lex causae ou lex contractus), independentemente das disposições mandatórias da lex arbitrii. A importância do tratamento da prescrição no âmbito da arbitragem internacional é relevante, dada as peculiaridades da prescrição, tratada de diferentes formas nos sistemas jurídicos da civil law e da common law. No primeiro, aplica-se a tese substancialista da prescrição, já no common law, a tese processualista. Segundo o sistema jurídico da família romano­germânica, a prescrição é tratada como uma questão material, tendo seu foco no direito subjetivo à pretensão. No sistema da common law, a prescrição (statute of limitations ou limitation of actions) tem como foco o processo e não a pretensão5. Diante dessa diversificação dos sistemas, como lidar com a questão no âmbito da arbitragem internacional? O que importa, segundo a ampla jurisprudência arbitral desenvolvida no âmbito da arbitragem internacional, é que simplesmente exista prescrição. Pouco importa se trata-se de matéria de caráter processual ou substancial (quando muito, os efeitos da ocorrência da prescrição é que gerariam diferentes consequências nesse caso). O árbitro internacional está unicamente vinculado à lei que as partes escolheram para reger a controvérsia no contrato que contém a convenção de arbitragem e decidem sobre a ocorrência de prescrição ainda que tal lei classifique a prescrição como matéria de ordem pública processual, como ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos. Nesse sentido, o julgado proferido no Caso CCI nº 6.371 é emblemático. Nesse caso o Tribunal Arbitral afirmou em linhas claras que pouco importa a qualificação da prescrição para determinar a lei a ela aplicável. Resumidamente, um litígio havia surgido entre uma sociedade americana (requerida) e uma empresa tailandesa (requerente), concernente à anulação de um pedido de entrega de roupas. A requerida se recusara a receber as roupas encomendadas em razão da divergência de tamanho, em relação ao pedido original. A demanda, portanto, tratava de uma suposta violação contratual por parte da requerente. Fora estipulada como sede da arbitragem a cidade de Nova York, Estados Unidos. Em suas alegações de defesa, a requerida sustentara a ocorrência de prescrição, segundo as leis do Estado do Oregon, Estados Unidos, onde a infração teria ocorrido. O Tribunal Arbitral, verificando que a lei aplicável ao contrato, por escolha expressa das partes, era a lei do Estado de Nova York, pouco se importou com a qualificação processual atribuída à prescrição pelo direito americano e aplicou ao prazo prescricional esta última lei, dando vigência à lex causae para dirimir a alegação da defesa6. Em outro caso emblemático, visto que as partes sequer escolheram a lei que seria aplicável ao contrato litigioso e ao mérito da controvérsia, o Tribunal Arbitral foi além, e escolheu, por meio da chamada voie directe7 as regras constantes dos Princípios Unidroit para reger a prescrição8. Importante frisar que, em relação à prescrição, os Princípios Unidroit oferecem regras específicas dotadas de objetividade e condizentes com os anseios dos operadores da arbitragem comercial internacional (como por exemplo, fixação dos prazos prescricionais, regras sobre suspensão e interrupção da prescrição, efeitos da expiração do prazo prescricional, entre outras relevantes). Diante da ausência de uma ordem jurídica de base na arbitragem internacional, a qual, repita-se, funciona livre das amarras das leis estatais das partes litigantes ou mesmo da sede da arbitragem, é possível afirmar que prescrição atua de forma diferenciada. Isto porque, se por um lado a prescrição é um instituto que se situa nos confins da ordem pública interna, na esfera internacional, a prescrição se mantém a distância do campo da ordem pública internacional, isto é, a prescrição é algo que, poder-se-ia dizer, tolerável, no campo do direito internacional e, pois, da arbitragem internacional. Diante da diversidade de leis possíveis regentes da prescrição no campo da arbitragem internacional, o ideal seria a adoção de uma solução global. Por mais que a construção legislativa aplicável a um contrato internacional nasça por meio da vontade das partes, que escolherão o regime que melhor atenda os seus interesses, essa escolha é repleta de incertezas, o que, segundo Luiz Olavo Batista, levaria "à adoção de modelos especiais e à busca de uma normatividade própria ao comércio internacional e que afaste as incertezas e dificuldades"9. Enquanto uma regulamentação própria e de caráter intergovernamental não surge, a utilização das regras constantes dos Princípios Unidroit, na atualidade, em arbitragens internacionais, pode constituir um bom meio para regular as questões sobre prescrição, rendendo praticidade, simplicidade, objetividade e uniformidade aos operadores da arbitragem comercial internacional e, o mais importante, dando segurança jurídica ao sistema da arbitragem comercial internacional. __________ 1 Ver, notadamente: ARMELIN, Donaldo. Prescrição e arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 15, p. 65, out.-dez. 2007; ESGASHIRA, Fábio de Possídio. Arbitragem e prescrição. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: RT, n. 8, p. 36, jan.-mar. 2006; Mediação, São Paulo: RT, n. 8, p. 36, jan.-mar. 2006; NUNES, Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014. 2 Nesse sentido, v. LEE, João Bosco. A lei 9.307/96 e o direito aplicável ao mérito do litígio na arbitragem comercial internacional. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, São Paulo: RT, v. 11, p. 355, 2001. 3 Ver, nesse sentido, GAILLARD, Emmanuel. Aspects philosophiques du droit de l'arbitrage international. Leiden/Boston: Les livres de poche de l'académie de droit international de l'Haye, Martinus Nijhoff Publishers, 2008. p. 47. 4 Sentença proferida no caso CCI n.º 4.491 de 1985. In: JARVIN, Sigvard; DERAINS, Yves. Collection of ICC Arbitral Awards (1974-1985). The Netherlands: Kluwer Law, 1994. p. 539-542, nota de Sigvard Jarvin; entença proferida no caso CCI n.º 5.460 de 1987. In: JARVIN, Sigvard; DERAINS, Yves; ARNALDEZ, J.J. Collection of ICC Arbitral Awards (1986-1990). The Netherlands: Kluwer Law, 1994. p. 138. 5 Nesse sentido, v. Gustavo Kloh Muller Neves, que ressalva: "Vale ainda ressaltar que no sistema da common law, onde não se fala propriamente em prescription, mas em limitation of actions, a limitation é um fenômeno eminentemente processual" (Prescrição e decadência no direito civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 16). 6 Sentença preliminar proferida no caso CCI 6.371 de 1989. Bulletin de la cour intrnationale d'arbitrage de la CCI, Paris: ICC Publication, v. 13, n. 2, p. 64-67, 2002. 7 Ou "Escolha Direta". O método da escolha direta está previsto, por exemplo, no Regulamento de Arbitragem da CCI, art. 21(1): "As partes terão liberdade para escolher as regras de direito a serem aplicadas pelo tribunal arbitral ao mérito da causa. Na ausência de acordo entre as partes, o tribunal arbitral aplicará as regras que julgar apropriadas". 8 Princípios elaborados pela Unidroit (International Institute for de Unification of Private Law), edição de 2016, para o comércio internacional. O Capítulo 10 dos Princípios Unidroit 2016 é integralmente dedicado à prescrição. Acesso em 23/3/2019. 9 BAPTISTA, Luiz Olavo. Dos contratos internacionais: uma visão teórica e prática. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 129.